sábado, 23 de setembro de 2023

Ocorrida a prescrição cambial, o cheque perde os atributos cambiários

NOÇÕES GERAIS SOBRE CHEQUE

O que é o cheque?

O cheque é...

- uma ordem de pagamento à vista

- que é dada pelo emitente do cheque

- em favor do indivíduo que consta como beneficiário no cheque (ou seu portador)

- ordem essa que deve ser cumprida por um banco

- que tem a obrigação de pagar a quantia escrita na cártula

- em razão de o emitente do cheque ter fundos (dinheiro) depositados naquela instituição financeira.

 

“Trata-se de uma ordem de pagamento, na medida em que seu criador não promete efetuar pessoalmente o pagamento, mas promete que terceiro irá efetuar esse pagamento. Esse terceiro deverá ser um banco, no qual o criador do cheque deverá ter fundos disponíveis. À luz desses fundos, o banco efetuará o pagamento das ordens que lhe forem sendo apresentadas, vale dizer, o cheque se tornará exigível sempre no momento em que for apresentado ao sacado (vencimento sempre à vista).” (TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial. Vol. 2. São Paulo: Atlas, 2011, p. 218).

 

Personagens

a) emitente (sacador): aquele que dá a ordem de pagamento;

b) sacado: aquele que recebe a ordem de pagamento (o banco);

c) beneficiário (tomador, portador): é o favorecido da ordem de pagamento, ou seja, aquele que tem o direito de receber o valor escrito no cheque.

 

Título executivo

O cheque é título executivo extrajudicial (art. 784, I, do CPC 2015). Assim, se não for pago, o portador do cheque poderá ajuizar ação de execução contra o emitente e eventuais codevedores (endossantes, avalistas). Essa ação de execução é conhecida como “ação cambial”.

 

O que é o chamado “prazo de apresentação do cheque”?

É o prazo de que dispõe o portador do cheque para apresentá-lo ao banco sacado, a fim de receber o valor determinado na cártula.

Ex: João passa um cheque de 2 mil reais para Eduardo. O prazo de apresentação é o tempo que Eduardo tem para levar o cheque ao banco e receber o valor.

O prazo de apresentação começa a ser contado da data da emissão do cheque.

 

De quanto é o prazo de apresentação?

30 dias

Se o cheque é da mesma praça do pagamento (município onde foi assinado é o município da agência pagadora).

60 dias

Se o cheque for de praça diferente

 (município onde foi assinado é diferente do município da agência pagadora).

O prazo será de 30 dias se o local da emissão do cheque (preenchido pelo emitente) for o mesmo lugar do pagamento (local da agência pagadora impressa no cheque). Nesse caso, diz-se que o cheque é da mesma praça (mesmo município).

Ex: em um cheque de uma agência de São Paulo (SP), o emitente datou e assinou São Paulo (SP) como local da emissão.

O prazo será de 60 dias se o local da emissão do cheque (preenchido pelo emitente) for diferente do lugar do pagamento (local da agência pagadora impressa no cheque). Nesse caso, diz-se que o cheque é de outra praça.

Ex: em um cheque de uma agência de São Paulo (SP), o emitente datou e assinou Manaus (AM) como local da emissão.

 

Se o beneficiário apresenta o cheque ao banco mesmo após esse prazo, haverá pagamento?

SIM, mesmo após o fim do prazo de apresentação, o cheque pode ser apresentado para pagamento ao sacado, desde que não esteja prescrito.

 

Então para que serve esse prazo de apresentação?

A doutrina aponta três finalidades:

1)      O fim do prazo de apresentação é o termo inicial do prazo prescricional da execução do cheque.

2)      Só é possível executar o endossante do cheque se ele foi apresentado para pagamento dentro do prazo legal. Se ele foi apresentado após o prazo, o beneficiário perde o direito de executar os codevedores. Poderá continuar executando o emitente do cheque e seus avalistas.

Súmula 600-STF: Cabe ação executiva contra o emitente e seus avalistas, ainda que não apresentado o cheque ao sacado no prazo legal, desde que não prescrita a ação cambiária.

3)      O portador que não apresentar o cheque em tempo hábil ou não comprovar a recusa de pagamento perde o direito de execução contra o emitente, se este tinha fundos disponíveis durante o prazo de apresentação e os deixou de ter, em razão de fato que não lhe seja imputável (art. 47, § 3º, da Lei n.° 7.357/85).

 

Qual é o prazo prescricional para a execução do cheque?

6 meses, contados do fim do prazo de apresentação do cheque. Atente-se que o prazo prescricional somente se inicia quando termina o prazo de apresentação, e não da sua efetiva apresentação ao banco sacado. Logo, os seis meses iniciam-se com o fim do prazo de 30 dias (mesma praça) ou com o término do prazo de 60 dias (se de praças diferentes).

 

Mesmo estando o cheque prescrito, ainda assim será possível a sua cobrança?

SIM. Com o fim do prazo de prescrição, o beneficiário não poderá mais executar o cheque. Diz-se que o cheque perdeu sua força executiva. No entanto, mesmo assim, o beneficiário poderá cobrar o valor desse cheque por outros meios, quais sejam:

1) Ação de enriquecimento sem causa (“ação de locupletamento”): prevista no art. 61 da Lei do Cheque (Lei nº 7.357/85). Essa ação tem o prazo de 2 anos, contados do dia em que se consumar a prescrição da ação executiva.

2) Ação de cobrança (ação causal): prevista no art. 62 da Lei do Cheque. O prazo é de 5 anos, nos termos do art. 206, § 5º, I, CC.

3) Ação monitória.

 

Desse modo, estando o cheque prescrito (sem força executiva), ele poderá ser cobrado do emitente por meio de ação monitória?

SIM. O beneficiário do cheque poderá ajuizar uma ação monitória para cobrar do emitente o valor consignado na cártula. Existe até uma súmula que menciona isso: Súmula 299-STJ: É admissível a ação monitória fundada em cheque prescrito.

 

Características do cheque enquanto título de crédito

O cheque é um título de crédito. Logo, submete-se aos princípios da literalidade, da abstração, da autonomia das obrigações cambiais e da inoponibilidade das exceções pessoais a terceiros de boa-fé.

a) Literalidade: os direitos resultantes do título são válidos pelo que nele se contém, mostrando-se ineficazes, do ponto de vista cambiário, escritos (como a quitação, o aval e o endosso) que não estejam na própria cártula. Existe uma frase que espelha este princípio: “O que não está escrito no título não existe no mundo cambiário”.

b) Autonomia: o possuidor de boa-fé exercita um direito próprio, que não pode ser atrapalhado por conta de relações jurídicas anteriores entre o devedor e antigos possuidores do título. Assim, o possuidor de boa-fé do título de crédito não tem nada a ver com o fato de o título ter vícios ou defeitos anteriores. Se ele é o atual possuidor e está de boa-fé, tem direito ao crédito (obs: existem algumas exceções ao princípio da autonomia, que não interessam no momento).

c) Abstração: os títulos de crédito, quando circulam, ficam desvinculados da relação que lhe deu origem. Ex: João comprou um notebook de Ricardo, entregando-lhe uma nota promissória. Ricardo endossou a nota promissória para Rui. Ricardo acabou nunca levando o computador para João. Rui (que estava de boa-fé) poderá cobrar de João o crédito constante da nota promissória e o fato do contrato não ter sido cumprido não poderá ser invocado para evitar que João pague o débito. Isso porque, como o título circulou, ele já não tem mais nenhuma vinculação com o negócio jurídico que lhe deu origem.

 

Os princípios acima elencados têm por objetivo conferir segurança jurídica ao tráfego comercial e à circulação do crédito. Se a pessoa que recebeu um título de crédito (aparentemente válido) pudesse ficar sem o dinheiro por força de vícios anteriores ou por conta de uma quitação que não consta na cártula, isso geraria um enorme risco ao portador, o que desestimularia as pessoas a aceitarem títulos de crédito.

 

OPOSIÇÃO DE EXCEÇÃO PESSOAL AO PORTADOR DE CHEQUE PRESCRITO

Imagine a seguinte situação hipotética:

Maria contratou João para fazer os móveis de sua casa.

Ficou combinado que Maria iria pagar R$ 10 mil em 5 cheques “pré-datados” (pós-datados) de R$ 2 mil, que deveriam ser descontados um em cada mês.

João não entregou os móveis e sumiu, razão pela qual Maria determinou ao banco a sustação dos cheques, nos termos do art. 36 da Lei nº 7.357/85 (Lei do Cheque):

Art. 36. Mesmo durante o prazo de apresentação, o emitente e o portador legitimado podem fazer sustar o pagamento, manifestando ao sacado, por escrito, oposição fundada em relevante razão de direito.

 

Ação monitória proposta por terceiro de boa-fé

O que fez João? Repassou os cheques, como forma de pagamento, para Pedro.

Assim, Pedro adquiriu, de boa-fé, os cheques de João por meio de endosso.

Pedro tentou sacar os cheques, mas não conseguiu recebê-los em virtude de estarem sustados.

Diante disso, Pedro procurou um advogado para saber sobre seus direitos.

O advogado verificou que Pedro demorou muito para agir e, portanto, os cheques já estavam prescritos.

Mesmo assim, o advogado disse que tinha uma solução: Pedro poderia ajuizar uma ação monitória contra Maria, a emitente dos cheques.

Assim, Pedro, portador das cártulas já prescritas, ingressou com ação monitória contra Maria.

 

Contestação

Maria contestou a demanda alegando que os cheques foram emitidos para pagamento de um serviço que não foi realizado.

Assim, como a parte contratada não cumpriu sua obrigação, ela afirmou que tem o direito de sustar os cheques e não pagar a quantia que está ali prevista.

O que Maria alegou foi aquilo que, em direito cambiário, é chamado de “exceção pessoal”.

 

Abrindo um parêntese para explicar o que são “exceções pessoais”

Juridicamente, um dos sentidos da palavra “exceção” é o de defesa. Assim, o termo “exceção” pode ser utilizado como sinônimo de defesa em alguns casos.

Em direito cambiário, quando falamos em “exceções pessoais”, estamos querendo dizer que são defesas que a pessoa que emitiu o título de crédito possui em relação àquele em favor de quem foi emitido o título de crédito.

Ex: Pedro quer comprar um celular de Mário e emite uma nota promissória. A origem da nota promissória é a compra e venda (trata-se da causa subjacente/causa debendi). O celular apresenta vício e, por isso, Pedro não paga o valor da nota promissória e devolve o celular. Se Mário executar essa nota promissória, Pedro poderá invocar, como exceção pessoal, que a causa subjacente não se concretizou. Trata-se de uma exceção pessoal do emitente em relação ao beneficiário do título.

As exceções pessoais podem ser invocadas (alegadas) pelo emitente para deixar de pagar o beneficiário do título. No entanto, em regra, as exceções pessoais não podem ser utilizadas contra pessoas de boa-fé que receberam o título. Isso está previsto no art. 916 do Código Civil:

Art. 916. As exceções, fundadas em relação do devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé.

 

Assim, se Mário já havia passado a nota promissória para Juliana, uma terceira pessoa, e ela estava de boa-fé, Juliana poderá executar o título cobrando o valor de Pedro. Este, coitado, ficará com o celular quebrado e terá que pagar o valor do título para Juliana. Obviamente que, depois, Pedro poderá tentar cobrar de Mário aquilo que foi pago. No entanto, repito, não poderá invocar contra Juliana sua exceção pessoal porque o título circulou e agora encontra-se com alguém considerado terceiro de boa-fé.

 

Fechando o parêntese e voltando ao caso concreto:

Pedro contra argumentou dizendo que Maria não pode invocar essa exceção pessoal porque o cheque é um título de crédito e ele (Pedro) é terceiro de boa-fé.

Logo, deve ser aplicado ao caso concreto, o princípio da autonomia. Desse princípio, surge o conhecido princípio da inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé, consagrado pelo art. 25 da Lei do Cheque (Lei nº 7.357/85):

Art. 25. Quem for demandado por obrigação resultante de cheque não pode opor ao portador exceções fundadas em relações pessoais com o emitente, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador o adquiriu conscientemente em detrimento do devedor.

 

Quem tem razão neste caso: Pedro ou Maria?

Maria.

De fato, o cheque, por ser um título de crédito, é regido pelo princípio da autonomia. Uma das decorrências da autonomia é o princípio da inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé, consagrado pelo art. 25 da Lei do Cheque (Lei nº 7.357/85).

Justamente por conta disso, a jurisprudência afirma que o devedor somente pode opor ao portador do cheque exceções fundadas na relação pessoal com o próprio portador ou em aspectos formais e materiais do título, a não ser que constatada a má-fé deste.

Logo, se não for caracterizada a ma-fé do portador, deve ser preservada a autonomia do título cambial.

 

Peculiaridade do caso: os cheques já estavam prescritos

No caso concreto, os cheques que embasaram o ajuizamento da ação monitória já estavam prescritos.

Vimos acima que, mesmo o cheque estando prescrito, ele pode ser cobrado.

No entanto, se o cheque está prescrito, ele perde as suas características cambiárias, tais quais a autonomia, a independência e a abstração.

Assim, como o cheque prescrito perdeu a autonomia, não se aplica mais o conhecido princípio da inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé, previsto no art. 25 da Lei do Cheque (Lei nº 7.357/85). Na prática, isso significa que o réu da ação monitória – que está sendo cobrado pelo cheque prescrito – poderá sim opor exceções pessoais, ou seja, argumentos de defesa baseados na relação pessoal que ele (devedor) tinha com o destinatário do cheque, ainda que esse cheque agora esteja sendo cobrado por um terceiro de boa-fé.

 

Em suma:

É possível a oposição de exceção pessoal ao portador de cheque prescrito. 

STJ. 3ª Turma. REsp 1.669.968-RO, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 08/10/2019 (Info 658).

 

O STJ reiterou esse entendimento no julgado noticiado neste Informativo:

 

Se o cheque estiver prescrito e, por conseguinte, extintas suas características cambiárias, a pretensão se fundará no fato jurídico que precedeu e motivou a sua emissão, impedindo que uma parte enriqueça de forma indevida à custa da outra.

Ocorrida a prescrição cambial, o cheque perde os atributos cambiários, sendo possível, na ação monitória, a discussão do negócio jurídico subjacente e a oposição de exceções pessoais a portadores precedentes ou ao próprio emitente do título.

Com a oposição de embargos monitórios, o rito torna-se comum, admitindo a discussão de todas as matérias pertinentes à dívida, como valores, encargos, inexigibilidade ou até mesmo a própria legitimidade da obrigação, sendo imperioso que o juiz cumpra o saneamento do processo.


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