sábado, 17 de fevereiro de 2024

TCE pode impor condenação administrativa a Governadores e Prefeitos quando identificada sua responsabilidade pessoal em irregularidades no cumprimento de convênios entre estados e municípios, sem necessidade de aprovação do Legislativo

Tomada de contas especial

A Tomada de Contas Especial (TCE) é um processo administrativo realizado com o objetivo de apurar a responsabilidade pela ocorrência de dano à administração pública e de obter o respectivo ressarcimento.

 

Imputação de débito

A imputação de débito (ressarcimento ao erário) é imposta quando o Tribunal de Contas detecta que houve uma despesa indevida, que gerou prejuízo ao erário, devendo, portanto, haver a recomposição do dano sofrido pelo ente público. Ex: quando o gestor não consegue comprovar determinada despesa realizada, ele deverá ressarcir tais valores aos cofres públicos.

 

Multa

A multa, por sua vez, consiste em uma sanção aplicada por conta de um comportamento ilegal da pessoa fiscalizada. Exs: administrador que teve suas contas julgadas irregulares sem resultar débito; gestor que descumpriu alguma determinação do Tribunal de Contas; agente público que criou embaraço a uma inspeção efetuada pelo TC; servidor que sonegou processo, documento ou informação.

A finalidade da multa é a de fortalecer a fiscalização desempenhada pelo Tribunal de Contas, que certamente perderia em sua efetividade caso não houvesse a previsão de tal instrumento sancionador.

 

Feitos esses esclarecimentos, imagine agora a seguinte situação hipotética:

João foi prefeito de um Município do interior do Estado.

O Tribunal de Contas, ao apreciar as contas anuais desse Prefeito, decidiu instaurar procedimento de tomada de contas especial para apurar irregularidades na execução de um Convênio celebrado entre o Município e o Estado-membro.

Ao final dessa tomada de contas especial, o Tribunal de Contas considerou que parte das obrigações não foram executadas e que houve irregularidades na execução. Em razão disso, a Corte de Contas decidiu:

a) imputar a João o débito de R$ 35 mil em decorrência de inexecução de obrigações do convênio (é a chamada imputação de débito ou glosa); e

b) aplicar multa em desfavor de João no valor de R$ 10 mil em decorrência de irregularidades detectadas na execução do convênio.

 

O autor ingressou com ação anulatória contra o acórdão da Corte de Contas  argumentando que, à luz do art. 71, incisos I e II, da CF/88, o TCE não tem competência para “julgar” quaisquer contas de Prefeitos. A competência para julgar as contas de Prefeitos é exclusiva da Câmara de Vereadores.

O juiz julgou o pedido improcedente, tendo sido a sentença mantida pelo Tribunal de Justiça.

 

Recurso extraordinário

Ainda inconformado, João interpôs recurso extraordinário argumentando que, conforme jurisprudência do STF, apenas a Câmara Municipal possui competência para julgar as contas de governo e de gestão dos Prefeitos, sendo o papel do Tribunal de Contas meramente auxiliar, emitindo parecer prévio que só pode ser rejeitado por decisão de 2/3 dos membros da Câmara dos Vereadores.

Desse modo, alegou que a decisão do Tribunal de Contas violou expressamente os arts. 31, § 1º e 2º, e 71, I e II, da Constituição Federal:

Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.

§ 1º O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.

§ 2º O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.

(...)

 

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

(...)

 

O recorrente alegou que o julgamento pelo TCE afrontou o entendimento manifestado pelo STF no RE 848.826 (Tema 835) e no RE 729.744 (Tema 157):

Para os fins do artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64/1990, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos vereadores.

STF. Plenário. RE 848.826/DF, rel. orig. Min. Roberto Barroso, red. p/ o acórdão Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 10/8/2016 (Repercussão Geral – Tema 835) (Info 834).

 

O parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais do Chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por decurso de prazo.

STF. Plenário. RE 729.744/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/8/2016 (Repercussão Geral – Tema 157) (Info 834).

 

O STF concordou com os argumentos de João? O recurso extraordinário foi provido?

NÃO. Os Temas invocados pelo recorrente não se aplicam para o caso concreto. Vamos entender.

 

RE 729.744/MG (Tema 157)

Quanto ao RE 729.744, tratava-se de recurso interposto pelo Ministério Público Eleitoral contra acórdão do Tribunal Superior Eleitoral que havia mantido o deferimento de pedido de registro de candidatura ao cargo de prefeito, sob o entendimento de que a desaprovação das contas prestadas pelo Tribunal de Contas Estadual não seria apta a configurar a inelegibilidade do art. 1º, I, “g”, da LC 64/90, haja vista a ausência de decisão irrecorrível proferida pelo órgão competente, que no caso seria a respectiva Câmara Municipal.

Nas razões daquele recurso extraordinário, apontava-se violação ao art. 31, § 2º, do texto constitucional, sustentando-se a tese de que, no silêncio do Poder Legislativo local ou no caso em que não atingido quórum qualificado de dois terços dos membros da câmara municipal para rejeição, deveria prevalecer o parecer do tribunal de contas no sentido da desaprovação das contas do prefeito, com a consequente declaração de sua inelegibilidade (art. 1º, I, “g”, da LC 64/90).

A referida tese, contudo, não prevaleceu. No voto condutor do Ministro Gilmar Mendes, seguido pela maioria, destacou-se que o entendimento segundo o qual o parecer conclusivo do Tribunal de Contas produziria efeitos imediatos, que se tornariam permanentes no caso do silêncio da Casa Legislativa, ofende a regra do art. 71, I, da Constituição Federal.

Assim, no julgamento do RE 729.744, Rel. Min. Gilmar Mendes, Plenário, DJe de 23/8/2017, Tema 157 da Repercussão Geral, o STF fixou a tese de que “o parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais do Chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por decurso de prazo”.

 

RE 848.826/DF (Tema 835)

Por sua vez, o RE 848.826 tratava-se de recurso interposto contra acórdão do TSE que havia mantido o indeferimento do registro de candidatura do recorrente ao cargo de deputado estadual, sob o fundamento de sua inelegibilidade, nos termos do art. 1º, I, “g”, da Lei Complementar nº 64/1990.

Sustentou-se a tese de que, como Prefeito, a rejeição de suas contas, ainda que na qualidade de ordenador de despesas, somente poderia ocorrer pela Câmara de Vereadores, e não pelo Tribunal de Contas, nos termos dos arts. 31, § 2º, 71, I, e 75, todos da Constituição Federal.

No exame desses fatos, o Pleno do STF decidiu pelo provimento do recurso extraordinário, para fins de autorizar o registro de candidatura do recorrente.

Prevaleceu o entendimento de que cabe tão somente à Câmara Municipal o julgamento das contas anuais do Prefeito, independente da natureza das contas. O Plenário deste Supremo Tribunal Federal assentou, desse modo, no julgamento do RE 848.826, que, em se tratando do julgamento das contas do Prefeito, a eficácia impositiva do parecer prévio do Tribunal de Contas está sujeita ao crivo da Câmara Municipal.

 

Caso concreto

O caso concreto ora em apreço não envolve:

1) a discussão de inelegibilidade (já enfrentada no caso supramencionado);

2) nem o julgamento das contas anuais do Poder Executivo municipal.

 

O caso concreto está relacionado à possibilidade, ou não, de imputação administrativa de débito e multa a ex-prefeito, pelos Tribunais de Contas, em procedimento de tomada de contas especial, decorrente de irregularidades na execução de convênio firmado entre entes federativos (no caso, os entes estadual e municipal).

A decisão do TCE no caso aqui tratado não afronta o que o STF decidiu no RE 848.826-RG (Tema 835). Isso porque ali o STF limitou-se a vedar a utilização do parecer do Tribunal de Contas como fundamento suficiente para rejeição das contas anuais dos Chefes do Poder Executivo Municipal e do consectário reconhecimento de inelegibilidade, razão pela qual entendeu ser imprescindível para tal fim o julgamento das contas do chefe do executivo pelo Poder Legislativo. O Tema 835 ficou limitado ao aspectos da inelegibilidade prevista no art. 1º, inciso I, alínea “g”, da LC 64/90.

No Tema 835, o STF afirmou que, para fins de inelegibilidade, compete ao Legislativo o julgamento das contas do Prefeito. Isso, contudo, não têm o condão de impedir o Tribunal de Contas de exercer sua atividade fiscalizatória.

Nesse ponto, destaca-se que, embora a titularidade da função de controle externo seja do Poder Legislativo, os Tribunais de Contas possuem competências próprias, exercidas sem participação direta deste Poder.

Como se extrai do texto constitucional e da legislação de regência da matéria, as atribuições dos Tribunais de Contas não se restringem ao auxílio ao legislativo, de modo a abranger não só o exame das prestações de contas (art. 71, I e II, da Constituição) como também a atividade de fiscalização (art. 71, IV, V e VI, da Constituição). As Cortes de Contas podem realizar, por exemplo, inspeções e auditorias por iniciativa própria ou, ainda, para apurar denúncias, e não apenas por solicitação do Poder Legislativo.

Assim, considerando a margem de independência desses órgãos, bem como sua autonomia no exercício da atividade fiscalizadora, é incorreto falar, de forma genérica, que os Tribunais de Contas não podem proceder à tomada de contas especial e, eventualmente, estabelecer sanções administrativas aos Chefes do Executivo municipal.

Desse modo, os entendimentos firmados pelo STF nos Temas 157 e 835 não impedem que se reconheça a possibilidade de os Tribunais de Contas aplicarem sanções nos Prefeitos independentemente de aprovação pela Câmara de Vereadores.

Esse tem sido o entendimento do STF:

Por se tratar de aplicação de recursos federais disponibilizados a Município mediante convênio, isto é, de recursos que não pertenciam à municipalidade, mostra-se desnecessária a confirmação do parecer do Tribunal de Contas da União pela Câmara Municipal respectiva, a fim de que o título executivo se torne exigível.

STF. 2ª Turma. ARE 1.430.075-AgR, Rel. Min. Nunes Marques, julgado em 18/10/2023.

 

Na ocasião, o Min. Nunes Marques, relator, assim destacou em seu voto:

“(...) o Supremo, ao julgar o RE 848.826 (Tema n. 835/RG), ministro Roberto Barroso, assentou que ‘a apreciação das contas de prefeitos, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores’.

Essa ótica, todavia, não se amolda ao caso concreto. Consta do acórdão prolatado na origem que se trata, na espécie, ‘de aplicação de recursos federais do Fundo Nacional de Saúde disponibilizados, por meio do Convênio 1.333/1999, ao Município. Logo, não se cuida no caso dos autos de recursos que pertenciam ao Município, sendo insubsistentes as alegações do recorrente no sentido de que deveria haver confirmação do parecer do TCU pela Câmara Municipal, a fim de que o título se torne exigível’. Inaplicável, portanto, o Tema n. 835 da repercussão geral.”

 

A mesma distinção também foi feita pela Ministra Cármen Lúcia em decisão monocrática proferida no RE 1.353.347, DJe de 19 de janeiro de 2022:

 “No julgamento do Recurso Extraordinário n. 848.826, Relator o Ministro Roberto Barroso, Tema 835 da repercussão geral, este Supremo Tribunal assentou que a apreciação das contas de prefeitos, de governo e as de gestão, é exercida pelas Câmaras municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes e cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores.

Não é o caso, entretanto, de aplicação desse tema de repercussão geral. Na espécie, trata-se de atribuição de Tribunal de Contas estadual para aplicar multa administrativa por uso indevido de repasses do convênio proveniente do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb.

(...)

Este Supremo Tribunal assentou que a competência para apreciar a licitude ou não dos atos de gestão de recursos púbicos provenientes de repasse de convênios estaduais ou federais aos Municípios é do respectivo Tribunal de Contas.”

 

Desse modo, permanece intacta - mesmo após o julgamento dos Temas 157 e 835 - a competência geral dos Tribunais de Contas para fiscalização, julgamento e aplicação de sanções contra o chefe do Poder Executivo municipal, independentemente de posterior ratificação pelo Poder Legislativo. Logo, os Tribunais de Contas possuem competência para o julgamento de tomadas de contas especiais em face de ocupantes dos cargos de Chefes do Poder Executivo Municipal.

O fato de o Tribunal de Contas exercer atribuições não deliberativas no julgamento das contas anuais do chefe do Poder Executivo não exclui o dever de aplicar, no âmbito das suas demais competências, as consequências atinentes ao pleno exercício das atividades fiscalizatória e sancionatória.

Nesse contexto, as Cortes de Contas possuem sua parcela de independência e autonomia, de modo que exercem, para além daquelas desenvolvidas em apoio efetivo ao Poder Legislativo, competências exclusivas, cuja realização e efetivação ocorrem de forma plena.

 

Em suma:

Os Tribunais de Contas, ao apreciarem as contas anuais do respectivo chefe do Poder Executivo, podem proceder à tomada de contas especial (TCE) e, por conseguinte, condenar-lhe ao pagamento de multa ou do débito ou, ainda, aplicar-lhe outras sanções administrativas previstas em lei, independentemente de posterior aprovação pelo Poder Legislativo local.

STF. Plenário. ARE 1.436.197/RO, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 19/12/2023 (Repercussão Geral – Tema 1287) (Info 1121).

 

Na espécie, a imputação de débito e multa resultante da constatação de irregularidades na execução de convênio, após o julgamento em TCE, não se confunde com a análise ordinária das contas anuais, a qual se materializa pela elaboração de parecer prévio, de natureza meramente opinativa, elaborado em sessenta dias a contar do recebimento daquelas (art. 71, I, CF/88):

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

 

Trata-se de hipótese de responsabilização pessoal amparada em previsão expressa no texto constitucional (art. 71, VI e VIII), motivo pelo qual é inaplicável ao caso a tese firmada no Tema 835 da repercussão geral:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

(...)

VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município;

(...)

VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

 

Veja a tese fixada pelo STF:

No âmbito da tomada de contas especial, é possível a condenação administrativa de Chefes dos Poderes Executivos municipais, estaduais e distrital pelos Tribunais de Contas, quando identificada a responsabilidade pessoal em face de irregularidades no cumprimento de convênios interfederativos de repasse de verbas, sem necessidade de posterior julgamento ou aprovação do ato pelo respectivo Poder Legislativo.

STF. Plenário. ARE 1.436.197/RO, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 19/12/2023 (Repercussão Geral – Tema 1287) (Info 1121).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada (Tema 1.287 da repercussão geral) e reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria para conhecer do agravo e negar provimento ao recurso extraordinário, fixando a tese supracitada.


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