terça-feira, 24 de maio de 2022

A conversão do conteúdo das interceptações telefônicas em formato escolhido pela defesa não é ônus atribuído ao Estado

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

A Polícia Federal instaurou inquérito policial para investigar suposta organização criminosa que praticava crimes contra a administração pública.

Durante as investigações foram realizadas, com autorização judicial, interceptações telefônicas.

Depois que a operação foi deflagrada, disponibilizou-se à defesa dos investigados os arquivos digitais com os áudios das interceptações.

A defesa de João, um dos investigados, alegou e requereu o seguinte:

- a Polícia Federal utiliza nas interceptações um software que realiza a organização e indexação dos dados recebidos das operadoras de telefonia. Estas, por sua vez, utilizam para a coordenação e implementação das medidas o software Vigia, que contém os dados originais de como as interceptações telefônicas e telemáticas foram efetivamente realizadas;

- para que se possa realizar uma auditoria (e detectar a necessidade de uma perícia no material) necessário que seja apresentado o material original, diretamente do sistema Vigia, já que o sistema dos órgãos investigativos, por ser uma cópia, é impossível de ser periciado;

- daí é indispensável o acesso ao original - que permita a realização de perícias - a fim de atestar a regularidade das informações;

- portanto, requer o acesso aos arquivos originais no sistema Vigia.

 

O juízo indeferiu o pedido da defesa, que impetrou habeas corpus.

O TRF também negou o pleito, razão pela qual a defesa interpôs recurso ordinário ao STJ.

 

O STJ concordou com o pedido da defesa?

NÃO.

Conforme já explicado acima, a defesa pediu para ter acesso aos arquivos do sistema Vigia, utilizado pelas companhias de telefonia para viabilizar os procedimentos de interceptação telefônica autorizados pela Justiça no curso de investigações criminais.

O pedido se funda em alegada quebra de cadeia de custódia da prova, cuja comprovação, segundo a defesa, depende de acesso aos dados armazenados pelas operadoras de telefonia no mencionado sistema.

A Lei nº 9.296/96, que regulamenta as interceptações telefônicas, não faz qualquer exigência no sentido de que as conversas devam ser integralmente transcritas, bastando que se confira às partes acesso aos diálogos interceptados. Assim, de acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, não há necessidade de degravação dos diálogos objeto de interceptação telefônica em sua integralidade (STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1533480/RR, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/11/2015).

Para o STJ, os elementos de prova estão disponíveis para a defesa, de maneira que não se pode falar em vício por ser um formato de arquivo preferível a outro. A disponibilização dos arquivos com os diálogos interceptados supre a demanda da defesa quanto ao acesso do conteúdo das interceptações, em observância às garantias constitucionais no âmbito do processo penal democrático, não sendo viável a imposição de ônus ao Estado quanto à conversão dos arquivos digitais contendo os elementos de prova para o formato mais conveniente para a defesa.

A análise das nulidades no processo penal envolve, por um lado, a observância da regularidade formal, mas também a necessidade de preservação dos atos processuais, ainda que tenham sido realizados de maneira diversa da estabelecida na norma, sob pena de se privilegiar o formalismo em detrimento da substância dos atos.

Por isso, o reconhecimento do vício depende de demonstração concreta do prejuízo suportado pela parte, o que não ocorreu no caso sob exame.

A alegação de quebra de cadeia de custódia é feita de forma genérica e, portanto, não traz elementos que permitam vislumbrar qualquer ocorrência que comprometa a idoneidade das provas. Assim, os argumentos não se mostram suficientes para se concluir pela presença de qualquer mácula nas provas obtidas mediante o procedimento autorizado de interceptação telefônica.

Deve-se registrar, ainda, que a autenticidade das mídias é a regra, uma vez que os agentes investigadores possuem fé pública. Dessa forma, não cabe ao Poder Público demonstrar a autenticidade das interceptações, mas sim à parte impugnar sua veracidade, com fundamento em elementos concretos. Nesse contexto, não tendo o impetrante demonstrado eventual dúvida acerca da autenticidade das mídias em momento oportuno, não há se falar em disponibilização dos Sistemas “Guardião” ou “Vigia”, para tal finalidade.

Por tudo isso, não é viável o reconhecimento do vício indicado, pois, a teor do art. 563 do CPP, mesmo os vícios capazes de ensejar nulidade absoluta não dispensam a demonstração de efetivo prejuízo, em atenção ao princípio do pas de nullité sans grief.

 

Em suma:

A conversão do conteúdo das interceptações telefônicas em formato escolhido pela defesa não é ônus atribuído ao Estado.

STJ. 5ª Turma. AgRg no RHC 155.813-PE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 15/02/2022 (Info 731).


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