terça-feira, 17 de maio de 2022

A natureza e a quantidade da droga podem ser utilizadas para não reconhecer o tráfico privilegiado (art. 33, § 4º da Lei de Drogas)?

 

 

 

Tráfico privilegiado (art. 33, § 4º da Lei nº 11.343/2006)

A Lei de Drogas prevê, em seu art. 33, § 4º, a figura do “traficante privilegiado”, também chamada de “traficância menor” ou “traficância eventual”:

Art. 33 (...)

§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

 

Qual é a natureza jurídica deste § 4º?

Trata-se de uma causa de diminuição de pena.

 

Redução: de 1/6 a 2/3

O magistrado tem plena autonomia para aplicar a redução no quantum que reputar adequado de acordo com as peculiaridades do caso concreto. Vale ressaltar, no entanto, que essa fixação deve ser suficientemente fundamentada e não pode utilizar os mesmos argumentos adotados em outras fases da dosimetria da pena (STF HC 108387, 06.03.12). Dito de outra forma, não se pode utilizar os mesmos fundamentos para fixar a pena-base acima do mínimo legal e para definir o quantum da redução prevista neste dispositivo, sob pena de bis in idem.

ý (Delegado PC/RS 2018 FUNDATEC) Aquele que pratica conduta de tráfico de drogas, descrita no caput do artigo 33 da referida Lei, pode ter sua pena reduzida nos mesmos patamares propostos no Código Penal para a minorante da tentativa, desde que seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. (errado)

 

Jurisprudência em Teses do STJ (ed. 131)

Tese 25: Diante da ausência de parâmetros legais, é possível que a fração de redução da causa de diminuição de pena estabelecida no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 seja modulada em razão da qualidade e da quantidade de droga apreendida, além das demais circunstâncias do delito.

 

Vedação à conversão em penas restritivas de direitos

O STF já declarou, de forma incidental, a inconstitucionalidade da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, constante deste § 4º do art. 33, de modo que é possível, segundo avaliação do caso concreto, a concessão da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, desde que cumpridos os requisitos do art. 44 do CP.

 

Requisitos:

Para ter direito à minorante prevista no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006, é necessário o preenchimento de quatro requisitos autônomos:

a) primariedade;

b) bons antecedentes;

c) não dedicação a atividades criminosas; e

d) não integração à organização criminosa.

 

ý (Promotor MP/MG 2019) São requisitos para o reconhecimento do tráfico privilegiado que o agente seja primário, de bons antecedentes e boa conduta social, que não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. (errado)

 

Se o réu não preencher algum desses requisitos, não terá direito à minorante. São requisitos cumulativos:

Jurisprudência em Teses do STJ

Tese 22: A causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei de Drogas só pode ser aplicada se todos os requisitos, cumulativamente, estiverem presentes.

 

Esse benefício se aplica para quais delitos?

• Art. 33, caput: tráfico de drogas.

• Art. 33, § 1º, I:  importar, exportar, produzir, adquirir, vender, guardar matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas.

• Art. 33, § 1º, II: semear, cultivar, fazer a colheita de plantas que são matéria-prima para preparação de drogas.

• Art. 33, § 1º, III: utilizar local ou bem de sua propriedade, posse, administração guarda ou vigilância, ou consentir que alguém utilize para o tráfico ilícito de drogas.

• Art. 33, § 1º, IV: vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

 

þ (Juiz de Direito TJ-MS 2020 FCC) No que concerne à lei de drogas, cabível a redução da pena de um sexto a dois terços para o agente que tem em depósito, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, desde que primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. (CERTO)

 

Tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006) não é crime equiparado a hediondo

Veja o que diz o novo § 5º do art. 112 da LEP:

Art. 112 (...)

§ 5º Não se considera hediondo ou equiparado, para os fins deste artigo, o crime de tráfico de drogas previsto no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. (Lei nº 13.964/2019 – Pacote Anticrime)

 

ý (Juiz Federal TRF2 2017) Presente a causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006, por ser o agente primário, de bons antecedentes, não dedicado a atividades criminosas e não integrante de organização criminosa, ainda assim é hediondo o crime de tráfico por ele praticado. (errado)

 

Feita essa revisão geral sobre o tema, imagine agora a seguinte situação adaptada:

João foi condenado pela prática de tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006).

O juiz negou a aplicação do § 4º do art. 33 da LD alegando que a quantidade e a variedade de drogas apreendidas (225g de cocaína, 70g de maconha, 10g de crack e 10 frascos de lança perfume) levam à presunção de que o agente se dedicava a atividades criminosas. Confira-se trecho da decisão:

“Na terceira fase, tenho que é incabível a aplicação da causa de diminuição prevista no § 4º do art. 33 da Lei de Drogas, uma vez que a quantidade, a natureza e a diversidade das drogas apreendidas evidenciam que o réu não era um traficante eventual, dedicando-se, portanto, à prática de atividades criminosas.”

 

Para o STJ, essa decisão foi correta?

NÃO.

A natureza e a quantidade da droga são fatores preponderantes no momento da dosimetria da pena em condenações envolvendo tráfico de drogas. Isso está previsto no art. 42 da Lei nº 11.343/2006:

Art. 42. O juiz, na fixação das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no art. 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente.

 

O STJ, interpretando esse dispositivo, apontou três importantes conclusões:

1) a natureza e a quantidade da droga devem ser valoradas na primeira etapa da dosimetria da pena. Isso porque o art. 42 da LD afirma que esses dois vetores preponderam sobre as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP (que são analisados na primeira fase da dosimetria).

2) a natureza e a quantidade da droga não podem ser utilizadas concomitantemente na primeira e na terceira fases da dosimetria, nesta última para descaracterizar o tráfico privilegiado ou modular a fração diminuição de pena;

3) supletivamente, a natureza e a quantidade da droga podem ser utilizadas na terceira fase da dosimetria da pena, para afastamento da diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2016, apenas quando esse vetor for conjugado com outras circunstâncias do caso concreto que, unidas, caracterizem a dedicação do agente à atividade criminosa ou a integração a organização criminosa:

 

Nesse sentido:

As circunstâncias da natureza e da quantidade da droga apreendida devem ser levadas em consideração apenas em uma das fases do cálculo da pena, sob pena de bis in idem.

STF. Plenário. ARE 666334 RG, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 03/04/2014 (Repercussão Geral – Tema 712).

 

A utilização concomitante da natureza e da quantidade da droga apreendida na primeira e na terceira fases da dosimetria, nesta última para descaracterizar o tráfico privilegiado ou modular a fração de diminuição de pena, configura bis in idem, expressamente rechaçado no julgamento do Recurso Extraordinário n. 666.334/AM, submetido ao regime de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal (Tese de Repercussão Geral n. 712).

A utilização supletiva desses elementos para afastamento do tráfico privilegiado somente pode ocorrer quando esse vetor seja conjugado com outras circunstâncias do caso concreto que, unidas, caracterizem a dedicação do agente à atividade criminosa ou à integração a organização criminosa (STJ. 3ª Seção. REsp 1887511/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 09/06/2021).

STJ. 3ª Seção. REsp 1887511/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 09/06/2021.

 

No caso concreto acima narrado, a natureza e a quantidade da droga foram utilizadas indevidamente na terceira fase da dosimetria e sem que esses vetores estivessem conjugados com outras circunstâncias, razão pela qual o STJ entendeu indevida a fundamentação.

 

Em suma:

 

Em razão de ter importantes informações, vale a pena ler a ementa do julgado:

(...) 2. A dosimetria da reprimenda penal, atividade jurisdicional caracterizada pelo exercício de discricionariedade vinculada, realiza-se dentro das balizas fixadas pelo legislador.

3. O tratamento legal conferido ao crime de tráfico de drogas traz peculiaridades a serem observadas nas condenações respectivas; a natureza desse crime de perigo abstrato, que tutela o bem jurídico saúde pública, fez com que o legislador elegesse dois elementos específicos - necessariamente presentes no quadro jurídico-probatório que cerca aquela prática delituosa, a saber, a natureza e a quantidade das drogas - para utilização obrigatória na primeira fase da dosimetria.

4. O tráfico privilegiado é instituto criado para beneficiar aquele que ainda não se encontra mergulhado nessa atividade ilícita, independentemente do tipo ou do volume de drogas apreendidas, para implementação de política criminal que favoreça o traficante eventual.

5. No julgamento do RE n. 666.334/AM, submetido ao regime de repercussão geral (Tese n. 712), o STF fixou o entendimento de que a natureza e a quantidade de entorpecentes não podem ser utilizadas em duas fases da dosimetria da pena.

6. A Terceira Seção do STJ, no julgamento do REsp n. n. 1.887.511/SP (DJe de 1º/7/2021), partindo da premissa fixada na Tese n. 712 do STF, uniformizou o entendimento de que a natureza e a quantidade de entorpecentes devem ser necessariamente valoradas na primeira etapa da dosimetria, para modulação da pena-base.

7. Não há margem, na redação do art. 42 da Lei n. 11.343/2006, para utilização de suposta discricionariedade judicial que redunde na transferência da análise dos vetores “natureza e quantidade de drogas apreendidas” para etapas posteriores, já que erigidos ao status de circunstâncias judiciais preponderantes, sem natureza residual.

8. Apenas circunstâncias judiciais não preponderantes, previstas no art. 59 do Código Penal, podem ser utilizadas para modulação da fração de diminuição de pena do tráfico privilegiado, desde que não utilizadas para fixação da pena-base.

9. Configura constrangimento ilegal o afastamento do tráfico privilegiado por presunção de que o agente se dedica a atividades criminosas, derivada unicamente da análise da natureza ou da quantidade de drogas apreendidas; da mesma maneira, configura constrangimento ilegal a redução da fração de diminuição de pena por esse mesmo e único motivo.

10. Agravo regimental de fls. 321-326 não conhecido e agravo regimental de fls. 313-319 desprovido.

(AgRg no REsp 1985297/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUINTA TURMA, julgado em 29/03/2022, DJe 06/04/2022)

 

Observação pessoal: a interpretação que era feita do Tema 712 do STF era no sentido de que a natureza e quantidade da droga poderiam ser utilizadas na primeira ou na terceira fase da dosimetria. Era como se fosse uma escolha do julgador. O STJ, neste julgado, afirma que não existe essa discricionariedade. Com base no art. 42 da LD, a natureza e a quantidade devem ser utilizadas na primeira fase. Supletivamente, elas também poderiam ser utilizadas na terceira fase quando conjugadas com outras circunstâncias do caso concreto que, unidas, caracterizem a dedicação do agente à atividade criminosa ou a integração a organização criminosa.


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