quinta-feira, 26 de maio de 2022

Se a polícia entra na residência especificamente para efetuar uma prisão, ela não pode vasculhar indistintamente o interior da casa porque isso seria “pescaria probatória”, com desvio de finalidade

 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

Policiais militares realizavam policiamento ostensivo em determinado bairro, momento em que avistaram João em atitude por eles considerada suspeita.  

Ao ser abordado, João identificou-se como Pedro da Silva Albuquerque, que é o nome de seu irmão. Ele fez isso porque possuía contra si um mandado de prisão decorrente de uma condenação por tráfico de drogas.

O que João não sabia é que também havia uma mandado de prisão contra seu irmão.

Quando os policiais descobriram e falaram que havia um mandado de prisão contra Pedro, João conseguiu fugir e saiu correndo pelos becos do bairro.

A equipe policial localizou a residência de João e foi atendida pela sua companheira, uma adolescente de 16 anos. Os policiais alegam que a adolescente autorizou que eles entrassem na casa.

Ao fazerem uma minuciosa revista na residência encontraram, no interior de um dos quartos, uma caixa contendo porções de maconha, em tese, preparadas para a venda, além de munições de arma de uso permitido.

Posteriormente, os policiais encontraram João escondido em um cemitério, dentro de uma cripta, tendo sido preso.

 

A defesa argumentou que houve ofensa à garantia da inviolabilidade de domicílio. A questão chegou até o STJ. O tribunal concordou com a alegação?

SIM.

 

Inviolabilidade de domicílio

A CF/88 prevê, em seu art. 5º, a seguinte garantia:

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

 

A inviolabilidade do domicílio é uma das expressões do direito à intimidade do indivíduo.

 

Entendendo o inciso XI:

Só se pode entrar na casa de alguém sem o consentimento do morador nas seguintes hipóteses:

Durante o DIA

Durante a NOITE

• Em caso de flagrante delito;

• Em caso de desastre;

• Para prestar socorro;

• Para cumprir determinação judicial (ex: busca e apreensão; cumprimento de prisão preventiva).

• Em caso de flagrante delito;

• Em caso de desastre;

• Para prestar socorro.

 

 

Assim, guarde isso: não se pode invadir a casa de alguém durante a noite para cumprir ordem judicial.

Por se tratar de medida invasiva e que restringe sobremaneira o direito fundamental à intimidade, o ingresso em morada alheia deve se circunscrever apenas ao estritamente necessário para cumprir a finalidade da diligência, conforme se extrai da exegese do art. 248 do CPP, segundo o qual, “Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência”.

 

Flagrante delito

Vimos acima que, havendo flagrante delito, é possível ingressar na casa mesmo sem consentimento do morador, seja de dia ou de noite.

Um exemplo comum no cotidiano é o caso do tráfico de drogas. Diversos verbos do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 fazem com que este delito seja permanente:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

 

Assim, se a casa do traficante funciona como boca-de-fumo, onde ele armazena e vende drogas, a todo momento estará ocorrendo o crime, considerando que ele está praticando os verbos “ter em depósito” e “guardar”.

 

Diante disso, havendo suspeitas de que existe droga em determinada casa, será possível que os policiais invadam a residência mesmo sem ordem judicial e ainda que contra o consentimento do morador?

SIM. No entanto, no caso concreto, devem existir fundadas razões que indiquem que ali está sendo cometido um crime (flagrante delito). Essas razões que motivaram a invasão forçada deverão ser posteriormente expostas pela autoridade, sob pena de ela responder nos âmbitos disciplinar, civil e penal. Além disso, os atos praticados poderão ser anulados.

O STF possui uma tese fixada sobre o tema:

A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.

STF. Plenário. RE 603616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015 (repercussão geral – Tema 280) (Info 806).

 

O STJ também possui alguns julgados a respeito do assunto:

A existência de denúncia anônima da prática de tráfico de drogas somada à fuga do acusado ao avistar a polícia, por si sós, não configuram fundadas razões a autorizar o ingresso policial no domicílio do acusado sem o seu consentimento ou sem determinação judicial.

STJ. 5ª Turma. RHC 89.853-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/02/2020 (Info 666).

STJ. 6ª Turma. RHC 83.501-SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 06/03/2018 (Info 623).

 

O ingresso regular da polícia no domicílio, sem autorização judicial, em caso de flagrante delito, para que seja válido, necessita que haja fundadas razões (justa causa) que sinalizem a ocorrência de crime no interior da residência.

A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente, embora pudesse autorizar abordagem policial em via pública para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o seu consentimento e sem determinação judicial.

STJ. 6ª Turma. REsp 1574681-RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 20/4/2017 (Info 606).

 

Abuso de autoridade

Veja o novo crime inserido pela Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade):

Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa.

§ 1º Incorre na mesma pena, na forma prevista no caput deste artigo, quem:

I - coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;

II - (VETADO);

III - cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas).

§ 2º Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre.

 

Vale ressaltar, no entanto, que, para a configuração do delito, é indispensável a presença do dolo acrescido de elemento subjetivo especial, nos termos do art. 1º, § 1º da Lei nº 13.869/2019:

Art. 1º (...)

§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

 

STJ disse que se a polícia entra na residência especificamente para efetuar uma prisão, ela não pode vasculhar indistintamente o interior da casa porque isso seria uma “pescaria probatória”, com desvio de finalidade

Admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade.

STJ. 6ª Turma. HC 663.055-MT, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 22/03/2022 (Info 731).

 

Segundo Alexandre Morais da Rosa:

Fishing Expedition ou Pescaria Probatória é a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem 'causa provável', alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém. [É] a prática relativamente comum de se aproveitar dos espaços de exercício de poder para subverter a lógica das garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade, a vida privada, enfim, violando-se direitos fundamentais, para além dos limites legais. O termo se refere à incerteza própria das expedições de pesca, em que não se sabe, antecipadamente, se haverá peixe, nem os espécimes que podem ser fisgados, muito menos a quantidade” (ROSA, Alexandre Morais da, Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos, 1ª ed., Santa Catarina: Emais, 2021, p. 389-390).

 

Sobre o desvio de finalidade no Direito Administrativo, Celso Antonio Bandeira de Mello ensina:

“Em rigor, o princípio da finalidade não é uma decorrência do princípio da legalidade. É mais que isto: é uma inerência dele; está nele contido, pois corresponde à aplicação da lei tal qual é; ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi editada. Por isso se pode dizer que tomar uma lei como suporte para a prática de ato desconforme com sua finalidade não é aplicar a lei; é desvirtuá-la;

é burlar a lei sob pretexto de cumpri-la. Daí por que os atos incursos neste vício — denominado 'desvio de poder' ou 'desvio de finalidade' — são nulos. Quem desatende ao fim legal desatende à própria lei” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo, 27 ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 106).

 

O agente responsável pela diligência deve sempre se ater aos limites da medida. Assim, a medida deve estar vinculada à justa causa para a qual excepcionalmente se admitiu a restrição do direito fundamental à intimidade. Obviamente, é possível o encontro fortuito de provas. O que não se admite é que o interior da casa seja vasculhado indistintamente.

No caso dos autos, o ingresso em domicílio foi amparado na possível prática de crime de falsa identidade, na existência de mandado de prisão e na suposta autorização da esposa do acusado para a realização das buscas.

A despeito disso, o interior da casa foi indistintamente vasculhado, tendo havido desvio de finalidade.

O STJ apontou também outras irregularidades no ingresso.

 

O crime de falsa identidade não justificava a entrada na residência

O primeiro fundamento - crime de falsa identidade - não justificava a entrada na casa do réu, porque, no momento em que ingressaram no lar, os militares ainda não sabiam que o acusado havia fornecido anteriormente à guarnição os dados pessoais do seu irmão, o que somente depois veio a ser constatado. Não existia, portanto, situação fática, conhecida pelos policiais, a legitimar o ingresso domiciliar para efetuar-se a prisão do paciente por flagrante do crime de falsa identidade, porquanto nem sequer tinham os agentes públicos conhecimento da ocorrência de tal delito na ocasião.

 

O art. 293 do CPP foi descumprido e não se tinha certeza se o foragido estava na casa

No caso concreto, não foi cumprido o art. 293 do CPP, que diz:

Art. 293.  Se o executor do mandado verificar, com segurança, que o réu entrou ou se encontra em alguma casa, o morador será intimado a entregá-lo, à vista da ordem de prisão. Se não for obedecido imediatamente, o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à força na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor, depois da intimação ao morador, se não for atendido, fará guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão.

Parágrafo único.  O morador que se recusar a entregar o réu oculto em sua casa será levado à presença da autoridade, para que se proceda contra ele como for de direito.

 

Além disso, não se sabia - com segurança - se o réu estava na casa, visto que não fugiu da guarnição para dentro do imóvel com acompanhamento imediato em seu encalço; na verdade, o acusado tomou rumo ignorado, com notícia de que provavelmente estaria escondido dentro do cemitério, mas os agentes foram até a residência dele “colher mais informações”.

 

Desvio de finalidade

Mesmo se admitida a possibilidade de ingresso no domicílio para captura do acusado - em cumprimento ao mandado de prisão ou até por eventual flagrante do crime de falsa identidade -, a partir das premissas teóricas acima fundadas, nota-se, com clareza, a ocorrência de desvirtuamento da finalidade no cumprimento do ato. Isso porque os objetos ilícitos foram apreendidos no chão de um dos quartos, dentro de uma caixa de papelão, a evidenciar que não houve mero encontro fortuito enquanto se procurava pelo réu - certamente portador de dimensões físicas muito superiores às do referido recipiente -, mas sim verdadeira pescaria probatória dentro do lar, totalmente desvinculada da finalidade de apenas capturar o paciente.

 

Não é crível que a adolescente tenha autorizado o ingresso

Por fim, quanto ao último fundamento, as regras de experiência e o senso comum, somados às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes policiais de que a esposa do paciente - adolescente de apenas 16 anos de idade - teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso no domicílio do casal, franqueando àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em desfavor de seu cônjuge.

Ademais, não se demonstrou preocupação em documentar esse suposto consentimento, quer por escrito, quer por testemunhas, quer, ainda e especialmente, por registro de áudio-vídeo.

 

Conclusão

A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em violação da norma constitucional que consagra direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela derivados, porque decorrentes diretamente dessa diligência policial.

É preciso ressalvar, contudo, que a condenação pelo crime do art. 307 do CP (falsa identidade) não é atingida pela declaração de ilicitude das provas colhidas a partir da invasão de domicílio, eis que a prática do delito, ao que consta, foi anterior ao ingresso dos agentes no lar do acusado.

 

Em suma, o que decidiu o STJ:

Reconheceu a ilicitude das provas obtidas a partir da violação do domicílio do acusado, bem como de todas as que delas decorreram, e, por conseguinte, absolvê-lo das imputações relativas aos crimes do art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) e do art. 14 da Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento).


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