domingo, 4 de setembro de 2022

O crime tipificado no art. 2º da Lei 8.176/91 é permanente ou instantâneo?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

A Polícia Federal descobriu que, em uma fazenda localizada no interior da Bahia, estava ocorrendo a atividade de extração clandestina de areia.

Isso é algum problema? É proibida a lavra clandestina de areia?

Sim. A extração ilegal de areia pode configurar, em tese, dois crimes diferentes:

• o delito do art. 2º da Lei nº 8.176/91; e

• o crime do art. 55 da Lei nº 9.605/98.


Art. 2º Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo.

Pena: detenção, de um a cinco anos e multa.

 

Art. 55. Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida:

Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.

 

A areia é um recurso mineral pertencente à União. Compete à União, mediante autorização, conceder a terceiros o direito de minerar. Nesse sentido:

A previsão contida no art. 2º da Lei 8.176/91 tem por objeto a preservação de bens e matérias-primas que integrem o patrimônio da União, de modo que a exploração, seja qual for a matéria-prima, requer a devida autorização estatal, não importando a natureza do respectivo ato, mas tão somente que haja autorização para tanto.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp n. 1.944.475/PB, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 28/9/2021.

 

Além disso, a retirada ilegal de areia pode ocasionar a erosão acelerada e a compactação do solo. Logo, essa lavra deve ser acompanhada de medidas compensatórias dos danos causados ao meio ambiente.

 

É possível se reconhecer o concurso de crimes entre o art. 2º da Lei nº 8.176/91 e o art. 55 da Lei nº 9.605/98?

SIM. Isso porque tutelam bens jurídicos diferentes:

Os crimes tipificados nos arts. 2º da Lei n. 8.176/1991 e 55 da Lei n. 9.605/1998 visam à tutela de bens jurídicos diversos. Enquanto este delito tem por finalidade a proteção do meio ambiente, quanto aos recursos encontrados no solo e no subsolo, aquele tem por objeto a preservação de bens e matérias-primas que integrem o patrimônio da União.

A jurisprudência do STJ, em diversas situações, já afastou o conflito aparente de normas e, em vista da lesividade a bens jurídicos distintos, reconheceu o concurso formal de crimes.

STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1.856.109/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 16/6/2020.

 

É inaplicável o princípio da especialidade entre os delitos dos arts. 2º da Lei n. 8.176/1991 e 55 da Lei n. 9.605/1998, porquanto tutelam bens jurídicos diversos: o primeiro protege a ordem econômica e o último, o meio ambiente. Aplica-se, ao caso, o concurso formal de crimes.

STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp n. 1.156.802/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 6/8/2019.

 

Para a configuração desses delitos é indispensável a realização de perícia por serem crimes materiais que deixam vestígio?

NÃO.

Os crimes previstos nos artigos 2º da Lei 8.176/1991 e 55 da Lei 9.605/1998 são formais, ou seja, não exigem resultado naturalístico para a sua consumação, razão pela qual ainda que haja efetivo dano não há que se falar em indispensabilidade de perícia para a sua comprovação.

Na espécie, a ação penal foi instruída com o parecer técnico elaborado pelo Departamento de Produção Mineral, o que é suficiente para a comprovação da materialidade delitiva, uma vez que tal documento atestou a usurpação de matéria-prima da União e a exploração de recurso natural, o que inclusive foi verificado in loco.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC n. 539.223/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 3/12/2019.

 

Voltando ao caso concreto:

De acordo com o inquérito, no local foram encontrados tratores realizando escavações e caminhões transportando areia na localidade. Os agentes estimaram o volume lavrado em 400m³ de areia, precificados, à época, em quase R$ 2 milhões.

As investigações constataram que houve três períodos de extração ilegal de areia no local: em março de 2016, em junho de 2016 e dezembro de 2016.

Em razão desse fato, o Ministério Público ofereceu denúncia pela prática da conduta típica descrita no art. 2º, da Lei nº 8.176/91 c/c o art. 55, da Lei nº 9.605/88.

Na denúncia, o Procurador da República narrou que o crime do art. 2º da Lei nº 8.176/91 foi praticado em continuidade delitiva considerando que houve três extrações de areia.

O réu se defendeu argumentando que crime do art. 2º da Lei nº 8.176/91 é de natureza permanente, de modo que, embora a conduta delituosa de extração tenha sido constatada em três ocasiões distintas, trata-se de um crime único, devendo ser afastada a regra da continuidade delitiva.

 

O STJ acolheu os argumentos do MPF ou da defesa? O crime do art. 2º da Lei nº 8.176/91 é instantâneo ou permanente?

A tese invocada pela defesa é acolhida pelo STJ. Trata-se de crime permanente.

 

Instantâneo x permanente

A diferença entre o crime instantâneo e o permanente estabelece-se a partir do lapso temporal em que verificada a consumação delitiva.

No crime instantâneo não se verifica um prolongamento da atividade delitiva, sendo quase que imediata a prática do verbo nuclear do tipo e o resultado (lesão do bem jurídico).

No crime permanente, a própria natureza do bem jurídico tutelado no tipo viabiliza um prolongamento da consumação, de modo que a conduta delitiva se protrai no tempo, só cessando por vontade do autor.

 

Por que é permanente?

O crime de usurpação por exploração de matérias-primas pertencentes à União (art. 2º da Lei nº 8.176/91), envolve, como regra geral, uma ação contínua do agente no sentido de explorar o recurso mineral objeto de usurpação, notadamente porque essa exploração só é possível mediante a prática de múltiplas condutas que vão além da extração em si.

Em outras palavras, essa atividade envolve, quase sempre, uma continuidade de atos.

Mesmo quando a extração é interrompida por alguns dias ou meses, é possível falarmos que a consumação se prolongou nos casos em que o agente mantém no local a estrutura e as máquinas utilizadas para a extração. Isso porque, neste caso, fica evidente que o processo de extração está pronto para ser retomado, não tendo o agente intencionalmente cessado o crime.

Considerando a natureza da atividade, é possível concluir que, enquanto verificada essa exploração, ou seja, a prática de múltiplas condutas visando a extração do bem mineral, sem evidência de que o agente ativo intencionalmente cessou a atividade, a hipótese é de crime permanente.

 

Em suma:

É hipótese de crime permanente, a conduta tipificada no art. 2º da Lei nº 8.176/91, na modalidade de usurpação por exploração de matérias-primas pertencentes à União, enquanto verificada a prática de múltiplas condutas visando a extração do bem mineral, sem evidência de que o agente ativo intencionalmente cessou a atividade extrativa.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.998.631-BA, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 07/06/2022 (Info 740).



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