segunda-feira, 5 de setembro de 2022

A simples habilitação do advogado nos autos de processo conduzido por juiz que é seu inimigo não se enquadra, por si só, na situação do art. 256 do CPP

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Carlos foi denunciado pelo Ministério Público pela prática de um crime.

A ação penal foi distribuída para a 5ª Vara Criminal, que tem Mário como Juiz titular.

Na audiência, Carlos compareceu assistido por Ronaldo como seu advogado.

Ronaldo apresentou arguição de suspeição em face Mário alegando que eles (advogado e juiz) são inimigos. A defesa pediu o reconhecimento da suspeição prevista no art. 145, I, do CPC, aplicável no processo penal por força do art. 3º do CPP:

CPC/Art. 145. Há suspeição do juiz:

I - amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados;

 

CPP/Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

 

A defesa comprovou que, em outros processos, o magistrado excepto já foi reconhecido como suspeito para julgar processos que envolvam o referido advogado.

A despeito disso, o juiz excepto não aceitou a suspeição (art. 97 do CPP).

O Tribunal de Justiça, por sua vez, não reconheceu a suspeição no caso concreto sob o argumento de que a constituição de Ronaldo como advogado do réu foi uma manobra processual da defesa para afastar o juiz Mário da presidência da ação penal. Logo, deveria ser aplicada a parte final do art. 256 do CPP:

Art. 256. A suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la.

 

O Tribunal afirmou, ainda, que:

• não havia procuração conferida pelo réu ao advogado para atuar na causa;

• o advogado já atuou em outros casos envolvendo o magistrado e não arguiu sua suspeição.

A defesa interpôs recurso especial.

 

Para o STJ, o Tribunal de Justiça agiu corretamente neste caso?

NÃO.

 

Dimensão dúplice do art. 256 do CPP

O art. 256 do CPP tem dimensão dúplice, sendo fundamento na boa-fé objetiva e tendo como objetivo gerar uma economia comportamental.

No que se refere ao primeiro aspecto (boa-fé objetiva), o art. 256 do CPP impõe às partes processuais a observância de um standard comportamental mínimo, de forte carga moral.

No que tange ao segundo ponto (economia comportamental), esse dispositivo busca desestimular comportamentos aproveitadores, pois a parte mal-intencionada saberá de antemão que não conseguirá afastar da causa, com eventuais ofensas, um juiz cujo perfil lhe desagrade.

 

Art. 256 do CPP não pode ser aplicado a partir de meras conjecturas

A despeito da sua relevância, é certo que o art. 256 do CPP não pode ser aplicado com base em argumentos genéricos, intuições, conjecturas ou desconfianças.

Para a aplicação do art. 256 do CPP, é necessário que se decline precisamente o porquê de enxergar, na conduta do excipiente, a criação dolosa de uma hipótese de suspeição.

No caso concreto, o TJ afirmou que “a impressão que se tem é que o advogado excipiente ingressou nos autos com o objetivo de dar causa à suspeição”.

Para o STJ, essa argumentação não foi suficiente. Nada de concreto foi dito pelo Tribunal de Justiça a respeito da base fática de incidência do art. 256 do CPP. Não disse o TJ, por exemplo, que o advogado teria provocado o magistrado e o insultado a fim de gerar a suspeição – até porque a inimizade entre eles remonta pelo menos ao ano de 2005, 13 anos antes de ajuizada esta exceção. Também não se colhe do acórdão recorrido a indicação de nenhuma conduta eivada de má-fé ou dolo, praticada pelo causídico, para buscar o afastamento do juiz.

Na verdade, o único fato efetivamente imputado pelo Tribunal ao defensor foi sua suposta habilitação tardia na causa, como se esse fato tivesse alguma relação com o art. 256 do CPP. A lei não estabelece nenhum marco temporal final para o ingresso de representantes processuais, que podem se habilitar no processo a qualquer tempo, inclusive nas instâncias superiores.

No caso, o único fato efetivamente imputado pelo Tribunal ao defensor foi sua suposta habilitação tardia na causa, como se esse fato tivesse alguma relação com o art. 256 do CPP. Ora, a lei não estabelece nenhum marco temporal final para o ingresso de representantes processuais, que podem se habilitar no processo a qualquer tempo, inclusive nas instâncias superiores. No presente caso, o que o aresto impugnado narra é simplesmente o acréscimo de um advogado à defesa do réu, quando o feito ainda tramitava em primeiro grau de jurisdição, em seus estágios iniciais.

Se a simples habilitação do advogado nos autos fosse suficiente para atrair a aplicação do art. 256 do CPP, até mesmo seu direito fundamental à liberdade profissional (art. 5º, XIII, da CF/88) ficaria prejudicado, porque somente poderia exercer sua atividade advocatícia em processos fora da competência territorial do juízo excepto. Isso ofende, igualmente, a prerrogativa fundamental da advocacia contida no art. 7º, I, da Lei nº 8.906/94, que assegura ao advogado o direito de “exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional”.

O que a legislação determina é o completo oposto: com o reconhecimento da suspeição, é o juiz quem se remove da causa, nos termos do art. 99 do CPP, não cabendo atribuir ao advogado - sem lei autorizadora - a obrigação de afastar-se preventivamente dos processos conduzidos pelo magistrado suspeito, que seria o resultado prático decorrente da interpretação conferida pelo Tribunal de origem ao art. 256 do CPP.

 

Designação apud acta

Também não deve ser aceita a argumentação de que não havia procuração.

O art. 266 do CPP permite a constituição de defensor pelo réu em audiência, mesmo sem a apresentação de instrumento da mandato:

Art. 266.  A constituição de defensor independerá de instrumento de mandato, se o acusado o indicar por ocasião do interrogatório.

 

Trata-se da conhecida designação apud acta, peculiaridade do processo penal que privilegia a instrumentalidade das formas e a ampla defesa, facilitando o exercício da atividade advocatícia pela remoção de entraves burocráticos, diante da inequívoca manifestação de vontade da parte em constituir seu representante.

O art. 266 do CPP excepciona, assim, a regra geral de outorga de poderes ao advogado por escrito.

O STJ já validou, por diversas vezes, a aplicabilidade atual do art. 266 do CPP, que resistiu ao teste do tempo e passou incólume pelas diversas reformas do CPP, sem revogação tácita ou expressa de seu teor.

 

O fato de o advogado ter atuado em outras causas com o juiz não impede a arguição de suspeição neste

O fato de o advogado não ter suscitado a suspeição do magistrado em outros processos não é fundamento bastante para, por si só, permitir que o Judiciário feche os olhos a tão grave vício de parcialidade.

Fora das estritas hipóteses legais de superação da suspeição - excepcionalíssimas por natureza -, não é dado ao julgador criar formas de convalidação dessa deficiência na validade processual.

Se há alguma contradição na atuação do advogado ao não suscitar a suspeição enquanto representava outros clientes em outros processos, essa é uma questão a ser dirimida entre o causídico e seus representados, ou entre ele e a OAB, do ponto da eficiência de seu desempenho profissional. Por isso, seria possível pensar, em tese, numa eventual responsabilidade civil ou disciplinar do advogado por alguma deficiência no trabalho que prestou em outros processos, caso algum de seus clientes tenha sofrido prejuízo por um suposto lapso profissional.

 

Em suma:

 

DOD Plus

É possível aplicar, no processo penal, as hipóteses de suspeição previstas no art. 145 do CPC?

SIM. A jurisprudência do STJ reconhece que as hipóteses de suspeição previstas no art. 254 do CPP são exemplificativas, e, por isso, admite a aplicação do art. 145, IV, do Código de Processo Civil (STJ. 5ª Turma. AgRg no HC n. 699.936/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 8/3/2022).

Cuidado para não confundir:

• Rol de impedimentos (art. 252): taxativo.

• Rol de suspeições (art. 254): exemplificativo.


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