Dizer o Direito

sábado, 7 de janeiro de 2023

A prerrogativa de foro não se estende a terceiro que compartilhe imóvel com autoridade não investigada

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Carla estava sendo investigada por tráfico de drogas e associação para o tráfico.

O juiz autorizou a realização de busca e apreensão na residência onde mora Carla.

A medida foi cumprida, tendo sido apreendidos diversos materiais que pertenciam à investigada.

Até aí, tudo bem, não se imaginava que haveria maiores controvérsias.

O problema é que Carla morava em um apartamento com a sua mãe Regina.

Regina, por sua vez, é Promotora de Justiça. Ela argumentou, então, que a busca e apreensão realizada em sua residência foi nula considerando que a ordem judicial foi exarada por um juiz de 1ª instância e os membros do Ministério Público possuem foro por prerrogativa de função, sendo julgados pelo Tribunal de Justiça (e não pelos juízos em 1ª instância).

Assim, segundo argumentou Regina, quem deveria ter autorizado a busca e apreensão em sua casa teria que ser um Desembargador do Tribunal de Justiça (e não um juiz de 1ª instância).

 

O argumento invocado foi acolhido pelo STJ?

NÃO.

Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que, segundo a orientação fixada pelo STF na Questão de Ordem na AP 937, o foro por prerrogativa de função é restrito a crimes cometidos ao tempo do exercício do cargo e que tenham relação com este. Vale ressaltar, contudo, que o STJ já decidiu que:

A competência para o julgamento de crime praticado por Promotor de Justiça, em contexto que não guarda relação com as atribuições do cargo, é do Tribunal de Justiça, revelando-se inviável a extensão do entendimento exarado pelo STF na QO na AP 937.

STJ. 5ª Turma. HC 684.254-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 23/11/2021.

 

Assim, prevalece o entendimento de que, mesmo se o Promotor de Justiça praticar um crime fora do exercício de suas funções, a competência para julgá-lo seria do Tribunal de Justiça.

 

Ocorre que a presente situação é diferente. Não se está tratando de crime cometido por membro do Ministério Público, mas sim de infração praticada por um familiar seu.

O foro “privilegiado” consiste em uma garantia conferida a determinadas autoridades para assegurar-lhes o livre exercício do cargo. Não se trata de imunidade penal ou de garantia de não ser importunado.

No caso, considerando que a pessoa que a Promotora de Justiça não é objeto da investigação, não há razão para se estender à sua filha a prerrogativa de foro, ainda que compartilhem o mesmo domicílio.

Sobre o tema, o STF também já decidiu que a prerrogativa de foro se relaciona à autoridade, e não à titularidade de um imóvel. No julgamento da Reclamação 36.956/SP, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, ficou definido que a questão central para validar a admissibilidade da diligência é a incomunicabilidade do seu resultado com o titular da prerrogativa de foro. Confira as palavras do Ministro Gilmar Mendes na oportunidade:

“(...) o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento de que a prerrogativa de foro junto à Corte se relaciona à autoridade, e não à titularidade de um imóvel. Na ocasião do julgamento da Reclamação 24.473/SP, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, ficou definido que a questão central para validar a admissibilidade de diligência e de qualquer medida invasiva, deferida por juízo diverso do STF, é a incomunicabilidade do resultado da diligência com o titular da prerrogativa de foro.

Mais recentemente, na Reclamação 25.537/DF (Rel. Min. Edson Fachin), o Plenário reafirmou sua jurisprudência no sentido de que a Constituição Federal não elegeu o local da realização da diligência como fator de determinação da competência desta Corte.”

 

Ficou demonstrado, na situação concreta, que foram apreendidos unicamente bens de exclusiva propriedade da investigada Carla e estritamente relacionados com a prática criminosa, não tendo sido apreendidos bens ou materiais pertencentes à autoridade com foro privativo, razão pela qual não há que se falar em ilegalidade da diligência.

 

Em suma:

A prerrogativa de foro não se estende a terceiro que compartilhe imóvel com autoridade não investigada. 

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.020.411/SC, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 25/10/2022 (Info 759).

 

DOD Plus – julgado correlato

Em casos como o acima narrado, o fundamental é saber se a pessoa com foro por prerrogativa de função acabou sendo também, indiretamente, investigada, ou seja, se também foram colhidos materiais que pertenciam à autoridade.

Nesse sentido, confira esse outro caso no qual o STF reconheceu a ilicitude da diligência:

 

Busca e apreensão ordenada contra o marido da Senadora, mas cujo cumprimento ocorreu no imóvel funcional onde ambos residem: deve-se observar as regras de foro privativo

Paulo Bernardo era investigado e o juiz de 1º grau determinou, contra ele, busca e apreensão.

Ocorre que Paulo Bernardo residia com a sua esposa, a Senadora Gleisi Hoffmann, em um imóvel funcional cedido pelo Senado.

Desse modo, a busca e apreensão foi realizada neste imóvel funcional.

O STF entendeu que esta prova foi ilícita (art. 5º, LVI, da CF/88) e determinou a sua inutilização e o desentranhamento dos autos de todas as provas obtidas por meio da referida diligência.

O Supremo entendeu que a ordem judicial de busca e apreensão foi ampla e vaga, sem prévia individualização dos bens que seriam de titularidade da Senadora e daqueles que pertenciam ao seu marido.

Diante disso, o STF entendeu que o juiz, ao dar essa ordem genérica, acabou por também determinar medida de investigação contra a própria Senadora. Logo, como ela tinha foro por prerrogativa de função no STF (art. 102, I, “b”, da CF/88), somente o Supremo poderia ter ordenado qualquer medida de investigação contra a parlamentar federal. Isso significa que o juiz de 1ª instância usurpou uma competência que era do STF.

Reconheceu, por conseguinte, a ilicitude da prova obtida (art. 5º, LVI, da CF/88) e de outras diretamente dela derivadas.

STF. 2ª Turma. Rcl 24473/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 26/6/2018 (Info 908).


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