sábado, 30 de novembro de 2019

Lei de Abuso de Autoridade - parte 3



DECRETAR CONDUÇÃO COERCITIVA DESCABIDA OU SEM PRÉVIA INTIMAÇÃO DE COMPARECIMENTO
Art. 10. Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

NOÇÕES GERAIS SOBRE A CONDUÇÃO COERCITIVA
Condução coercitiva
Condução coercitiva consiste em capturar a testemunha, o perito, o ofendido, o investigado ou o réu e levá-lo, ainda que contra a sua vontade, à presença de uma determinada autoridade para que seja ouvido, identificado ou pratique outros atos de interesse da investigação ou da ação penal.

Natureza jurídica
A condução coercitiva, embora não listada no rol das medidas cautelares diversas da prisão dos arts. 319 e 320 do CPP, também funciona como medida cautelar de coação pessoal (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 694).

Espécies
A legislação prevê a possibilidade, em tese, da condução coercitiva de:
a) testemunha:
Art. 218. Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.

b) perito:
Art. 278. No caso de não-comparecimento do perito, sem justa causa, a autoridade poderá determinar a sua condução.

c) ofendido (vítima):
Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações.
§ 1º Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade.

d) investigado (fase pré-processual) ou réu (fase processual):
Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
Parágrafo único. O mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no art. 352, no que lhe for aplicável.

A condução coercitiva é sempre determinada pelo magistrado?
Não. A legislação prevê a possibilidade de que outras autoridades também determinem a condução coercitiva. Veja alguns exemplos:
• autoridade policial;
• membros do Ministério Público;
• Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI).

Condução coercitiva do investigado na deflagração de operações policiais
Nos últimos anos temos visto diversas “operações” da Polícia Federal nas quais há ordens judiciais de condução coercitiva de investigados para que sejam interrogados.
Vamos entender como isso funcionava.
A condução coercitiva para interrogatório nas operações policiais é a ordem judicial, materializada em um mandado, por meio do qual a polícia fica autorizada a levar o investigado, compulsoriamente, para a Delegacia (ou outro lugar escolhido) a fim de que ali ele seja interrogado, no dia e horário escolhidos pela autoridade policial.
Em geral, o objetivo idealizado para a condução coercitiva é que o órgão de investigação criminal atue com o “fator surpresa”, fazendo com que o investigado preste suas declarações no interrogatório sem ter tido muito tempo para refletir naquilo que irá responder e sem ter tido a oportunidade de conversar com os outros investigados ou ainda de conhecer quais os outros elementos informativos que a polícia já dispõe contra ele.
Por isso, normalmente, o mandado de condução coercitiva é cumprido logo no início do dia, por volta das 6h, ao mesmo tempo em relação a todos os investigados naquela operação. A polícia chega à residência do investigado, explica o mandado, pede que ele se vista e já segue com ele imediatamente para a Delegacia, onde já há um Delegado esperando para conduzir o interrogatório.
Vale ressaltar que, na condução coercitiva, o investigado é obrigado a comparecer à Delegacia, mas lá poderá permanecer em silêncio e não responder a qualquer das perguntas formuladas.
Importante destacar também que o investigado, durante o interrogatório, poderá se fazer acompanhar por advogado ou Defensor Público.
O caso mais famoso de condução coercitiva ocorreu com o ex-Presidente Lula. O Juiz Federal Sérgio Moro, a requerimento da Polícia Federal, deferiu a condução coercitiva de Lula, que foi efetivada em 04/03/2016, tendo o ex-Presidente sido levado para prestar interrogatório em uma sala no aeroporto de Congonhas.
Confira a explicação de Vladimir Aras para a condução coercitiva:
“A condução coercitiva autônoma – que não depende de prévia intimação da pessoa conduzida – pode ser decretada pelo juiz criminal competente, quando não cabível a prisão preventiva (arts. 312 e 313 do CPP), ou quando desnecessária ou excessiva a prisão temporária, sempre que for indispensável reter por algumas horas o suspeito, a vítima ou uma testemunha, para obter elementos probatórios fundamentais para a elucidação da autoria e/ou da materialidade do fato tido como ilícito.
Assim, quando inadequadas ou desproporcionais a prisão preventiva ou a temporária, nada obsta que a autoridade judiciária mande expedir mandados de condução coercitiva, que devem ser cumpridos por agentes policiais sem qualquer exposição pública do conduzido, para que prestem declarações à Polícia ou ao Ministério Público, imediatamente após a condução do declarante ao local do depoimento. Tal medida deve ser executada no mesmo dia da deflagração de operações policiais complexas, as chamadas megaoperações.
Em regra, para viabilizar a condução coercitiva será necessário demonstrar que estão presentes os requisitos para a decretação da prisão temporária, mas sem a limitação do rol fechado (numerus clausus) do art. 1º da Lei 7.960/89. A medida de condução debaixo de vara justifica-se em virtude da necessidade de acautelar a coleta probatória durante a deflagração de uma determinada operação policial ou permitir a conclusão de uma certa investigação criminal urgente.
Diante das circunstâncias do caso concreto, a prisão temporária pode ser substituída por outra medida menos gravosa, a partir do poder geral de cautela do Poder Judiciário, previsto no art. 798 do CPC e aplicável ao processo penal com base no art. 3º do CPP. Tal medida cautelar extranumerária ao rol do art. 319 do CPP reduz a coerção do Estado sobre o indivíduo, limitando-a ao tempo estritamente necessário para a preservação probatória, durante a fase executiva da persecução policial.
De fato, a condução coercitiva dos suspeitos sempre será mais branda que a prisão temporária; a medida restringe de modo mais suave a liberdade pessoal, somente enquanto as providências urgentes de produção de provas (cumprimento de mandados de buscas, por exemplo) estiverem em curso.
Se o legislador permite a prisão temporária por (até) 5 dias, prorrogáveis por mais 5 dias nos crimes comuns, a condução coercitiva resolve-se em um dia ou menos que isto, em algumas horas, mediante a retenção do suspeito e sua apresentação à autoridade policial para interrogatório sob custódia, enquanto as buscas têm lugar. Ou seja, a condução sob vara deve durar apenas o tempo necessário à instrução preliminar de urgência, não devendo persistir por prazo igual superior a 24 horas, caso em que se trasveste em temporária.
Sendo menos prolongada que as prisões cautelares, a condução coercitiva guarda ainda as mesmas vantagens que a custódia temporária, pois permite que a Polícia interrogue todos os envolvidos no mesmo momento, visando a evitar, pela surpresa, as versões “combinadas” ou que um suspeito oriente as declarações de uma testemunha ou a pressione, na fase da apuração preliminar, ou que documentos ou ativos sejam suprimidos, destruídos ou desviados.” (ARAS, Vladimir. Debaixo de vara: a condução coercitiva como cautelar pessoal autônoma. Disponível em: https://vladimiraras.blog/2013/07/16/a-conducao-coercitiva-como-cautelar-pessoal-autonoma/>; acesso em 27 ago. 2018.

Inconstitucionalidade da condução coercitiva para interrogatório
O STF, recentemente, decidiu que não é válida a condução coercitiva do investigado ou do réu para interrogatório no âmbito da investigação ou da ação penal.
O CPP, ao tratar sobre a condução coercitiva, prevê o seguinte:
Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
O STF declarou que a expressão “para o interrogatório” prevista no art. 260 do CPP não foi recepcionada pela Constituição Federal.
Assim, caso seja determinada a condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, tal conduta poderá ensejar:
• a responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade
• a ilicitude das provas obtidas
• a responsabilidade civil do Estado.
STF. Plenário. ADPF 395/DF e ADPF 444/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgados em 13 e 14/6/2018 (Info 906).


ANÁLISE DO TIPO PENAL DO ART. 10
Em que consiste o delito:
CONDUÇÃO COERCITIVA E ABUSO DE AUTORIDADE (ART. 10 DA LEI)
Decretar condução coercitiva de...
• testemunha ou
• investigado
1) de forma manifestamente descabida; ou
2) sem que a testemunha ou investigado tenham sido previamente intimados para comparecerem espontaneamente ao juízo.

Perceba, portanto, que existem duas hipóteses em que haverá abuso de autoridade na condução coercitiva:
1) quando ela for manifestamente descabida; ou
2) quando a autoridade judicial não der oportunidade para que a testemunha ou o investigado compareçam espontaneamente ao juízo.

A primeira hipótese abrange a segunda. Isso porque se a testemunha ou o investigado não foram previamente intimados para comparecerem espontaneamente, essa condução coercitiva é abusiva, desproporcional, ou seja, é manifestamente descabida já que não houve recusa.

Sujeito ativo
Se o intérprete fizer uma leitura apressada do art. 10 poderá defender a ideia de que apenas o magistrado é sujeito ativo deste delito. Isso porque a parte final do tipo penal fala em “comparecimento ao juízo”.
Essa, contudo, não é a melhor intepretação.
Conforme explicado acima, existem duas hipóteses em que a decretação da condução coercitiva poderá ensejar a responsabilização criminal pelo art. 10:
1) quando a condução coercitiva for manifestamente descabida ou
2) quando a condução coercitiva for decretada sem prévia intimação de comparecimento ao juízo.

A segunda hipótese é, de fato, restrita às autoridades judiciais, ou seja, apenas o magistrado poderá praticar considerando que somente ele pode determinar o comparecimento da testemunha ou investigado ao juízo.
Contudo, a primeira hipótese pode ser praticada por outras autoridades, como é o caso do Delegado de Polícia, do membro do Ministério Público e do presidente de CPI.
Assim, se o Delegado de Polícia decretar condução coercitiva manifestamente descabida, poderá ser responsabilizado pelo crime do art. 10 da Lei.

Juiz que decreta condução coercitiva do investigado na deflagração de operações policiais
Se o juiz decretar condução coercitiva do investigado para interrogatório em desacordo com o que decidiu o STF nas ADPF 395 e 444: comete o crime do art. 10. Isso porque o STF já afirmou que não cabe condução coercitiva nesses casos.

Sujeito passivo
É possível identificar duas vítimas:
• a Administração da Justiça;
• a testemunha ou o investigado que submetido ao constrangimento de ser objeto de condução coercitiva indevida.

Prévia intimação de comparecimento
A intimação prévia da testemunha ou do investigado deve ser pessoal.

Elemento subjetivo
Dolo acrescido do elemento subjetivo especial (finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal).
Não se pune a conduta culposa. Ex: juiz expediu o mandado de intimação prévia; testemunha não compareceu; magistrado determinou a condução coercitiva e depois se atestou que a testemunha não havia recebido a intimação anterior; mesmo que fique demonstrado que o juiz foi negligente por não ter conferido o efetivo cumprimento do mandado, não haverá crime.

Só haverá crime em caso de testemunha ou investigado
Se o juiz determinou a condução coercitiva do perito ou do ofendido, não haverá o crime do art. 10 mesmo que essa condução tenha sido manifestamente descabida ou sem prévia intimação dos destinatários. Isso porque o tipo penal fala apenas em testemunha ou investigado.

“Investigado” abrange também o réu?
Penso que o STJ responderá que sim. Isso porque existem precedentes daquele Tribunal analisando o crime do art. 2º, § 1º da Lei nº 12.850/2013 e dizendo que a palavra “investigação” não se limita à fase do inquérito policial. A “investigação” da infração penal se prolonga durante toda a persecução criminal, que abarca tanto o inquérito policial quanto a ação penal iniciada com o recebimento da denúncia. Nesse sentido, confira trecho da ementa do julgado mencionado do STJ:
(...) 3. A tese de que a investigação criminal descrita no art. 2º, § 1º, da Lei n. 12.850/13 cinge-se à fase do inquérito, não deve prosperar, eis que as investigações se prolongam durante toda a persecução criminal, que abarca tanto o inquérito policial quanto a ação penal deflagrada pelo recebimento da denúncia. Com efeito, não havendo o legislador inserido no tipo a expressão estrita "inquérito policial", compreende-se ter conferido à investigação de infração penal o sentido de persecução penal, até porque carece de razoabilidade punir mais severamente a obstrução das investigações do inquérito do que a obstrução da ação penal. Ademais, sabe-se que muitas diligências realizadas no âmbito policial possuem o contraditório diferido, de tal sorte que não é possível tratar inquérito e ação penal como dois momentos absolutamente independentes da persecução penal. (...)
STJ. 5ª Turma. HC 487.962/SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 28/05/2019.

Não apenas processos criminais
Vale ressaltar que a condução coercitiva pode ser decretada não apenas em investigações ou processos criminais. É possível que isso ocorra em outros casos, como, por exemplo:
• em inquérito civil;
• em procedimentos do ECA;
• em processos cíveis;
• em processos trabalhistas.

Consumação
O crime se consuma com a decretação, ou seja, com a prolação da decisão determinando a condução coercitiva, ainda que ela não se consuma.
Trata-se, portanto, de crime formal, que não depende da produção de resultado naturalístico.
Desse modo, imagine que o juiz decreta a condução coercitiva do investigado mesmo sendo manifestamente descabida. Antes que a providência seja cumprida, o investigado consegue do Tribunal uma ordem em habeas corpus cassando a decisão de 1ª instância. Em tese, o crime estará consumado mesmo não tendo havido a efetiva condução coercitiva.

Suspensão condicional do processo
Como a pena mínima é igual a 1 ano, cabe suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/95).

Competência
A competência para julgamento deste crime dependerá das funções desempenhadas pela autoridade que determinou a condução coercitiva.
Ex: se a condução coercitiva for decretada pelo magistrado que estiver atuando em função judicante de natureza federal, a competência será da Justiça Federal. É o caso, por exemplo, de um Juiz Federal, de um Juiz do Trabalho, de um Juiz Militar ou mesmo de um Juiz de Direito atuando em processo de competência delega (ex: causas previdenciárias – art. 109, § 3º, da CF/88).
Em caso contrário, a competência será da Justiça Estadual.





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