sábado, 22 de fevereiro de 2020

A cláusula de reajuste por faixa etária em contrato de seguro de vida é legal?




O que é o contrato de seguro?
No contrato de seguro, “o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados” (art. 757 do CC).
Em outras palavras, no contrato de seguro, uma pessoa física ou jurídica (chamada de “segurada”) paga uma quantia denominada de “prêmio” para que uma pessoa jurídica (“seguradora”) assuma determinado risco. Caso o risco se concretize (o que chamamos de “sinistro”), a seguradora deverá fornecer à segurada uma quantia previamente estipulada (indenização).
Ex.: João celebra um contrato de seguro do seu veículo com a seguradora X e todos os meses paga R$ 100,00 como prêmio; se, por exemplo, o carro for roubado (sinistro), a seguradora deverá pagar R$ 30 mil a título de indenização para o segurado.

Nomenclaturas utilizadas nos contratos de seguro
• Risco: é a possibilidade de ocorrer o sinistro. Ex.: risco de morte.
• Sinistro: o sinistro é o risco concretizado. Ex.: morte.
• Apólice (ou bilhete de seguro): é um documento emitido pela seguradora, no qual estão previstos os riscos assumidos, o início e o fim de sua validade, o limite da garantia e o prêmio devido e, quando for o caso, o nome do segurado e o do beneficiário.
• Prêmio: é a quantia paga pelo segurado para que o segurador assuma o risco. O prêmio deve ser pago depois de recebida a apólice. O valor do prêmio é fixado a partir de cálculos atuariais e o seu valor leva em consideração os riscos cobertos.
• Indenização: é o valor pago pela seguradora caso o risco se concretize (sinistro).

Imagine agora a seguinte situação hipotética:
João, em 2010, fez um contrato de seguro de vida em favor de sua esposa e filhos.
Na época, o segurado tinha 50 anos.
O contrato tinha duração de 5 anos.
Ao final do prazo de vigência do contrato, em 2015, João decidiu renová-lo por mais 5 anos.
Em 2020, encerrou-se o prazo novamente e João procurou a seguradora para fazer a renovação mais uma vez.
João, no entanto, surpreendeu-se porque o valor do prêmio cobrado pela seguradora para renovar o contrato estava 200% mais alto.
A funcionária da empresa explicou que incide esse aumento porque o segurado (João) entrou na faixa de 60 anos de idade e que, a partir daí, os preços sobem mesmo. A atendente mostrou que esse incremento do prêmio pela faixa de preço estava previsto na cláusula 5.4.2 do contrato de seguro assinado.
João ajuizou demanda pedindo a nulidade da cláusula de reajuste por faixa etária.
O autor argumentou que a cláusula de contrato de seguro de vida que estabelece o aumento do prêmio do seguro de acordo com a faixa etária mostra-se abusiva quando imposta ao segurado maior de 60 anos de idade e que conte com mais de 10 anos de vínculo contratual.
João pediu que fossem aplicadas, ao caso concreto, por analogia, as regras previstas para os contratos de plano de saúde na forma do art. 15, parágrafo único, da Lei nº 9.656/98:
Art. 15. A variação das contraprestações pecuniárias estabelecidas nos contratos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, em razão da idade do consumidor, somente poderá ocorrer caso estejam previstas no contrato inicial as faixas etárias e os percentuais de reajustes incidentes em cada uma delas, conforme normas expedidas pela ANS, ressalvado o disposto no art. 35-E.
Parágrafo único.  É vedada a variação a que alude o caput para consumidores com mais de sessenta anos de idade, que participarem dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º, ou sucessores, há mais de dez anos.

Para o requerente, a Lei nº 9.656/98 regula os planos e seguros de saúde, mas, diante da inexistência de lei específica para os seguros de vida, este diploma deveria ser aplicado por analogia.

A tese de João encontra amparo na jurisprudência atual do STJ? Essa cláusula é nula pelo fato de João ter mais de 60 anos e contar com mais de 10 anos de contrato?
NÃO. Essa tese já foi acolhida pelo STJ, no entanto, atualmente, não é mais aceita.
Prevalece, atualmente, que, em regra, a cláusula de reajuste por faixa etária em contrato de seguro de vida é legal (válida).
Vamos entender abaixo as razões que levaram o STJ a decidir assim.

Fator etário integra o risco do contrato
O fator etário, ou seja, a idade do segurado, integra diretamente o risco tanto do contrato de seguro saúde quanto do contrato de seguro de vida. Isso porque é óbvio que o avanço da idade aumentar o risco de sinistro em ambos os contratos, ou seja, aumenta os riscos de doença e de morte.
Apenas a título de curiosidade, o gasto per capta com procedimentos médicos das pessoas da última faixa etária (acima de 59 anos) é 6,8 vezes mais alto do que o gasto da primeira (até 18 anos) e é mais que o dobro dos gastos da faixa etária anterior (de 54 a 58 anos) (CECHIN, José. Fatos da vida e o contorno dos planos de saúde. In: Planos de saúde: aspectos jurídicos e econômicos. Luiz A. F. Carneiro (coord). Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 208).
Essa última faixa apresenta, portanto, um elevado desvio padrão, ou seja, os ocupantes dessa faixa se distanciam muito dos números das pessoas das demais faixas.

Técnicas de gestão de risco (técnicas de compensação do desvio de risco)
Para suportar esse desvio do padrão de risco as seguradoras se utilizam de diversas técnicas de gestão de
risco. Alguns exemplos das técnicas que são adotadas:
a) a dispersão dos riscos: a seguradora se compromete a garantir apenas riscos isolados, de modo que um evento não afete todos os segurados ao mesmo tempo;
b) pulverização do risco: técnica através da qual a seguradora limita sua cobertura em um valor, e tudo que exceder sua capacidade é transferido a outro segurador pelo resseguro ou cosseguro;
c) seleção dos riscos (art. 757 CC): o segurador elimine o fator de risco, seja excluindo a cobertura de riscos elevados (p. ex., de doença preexistente à contratação), seja recusando a proposta de seguro; e
d) a formação de reservas técnicas.

Nesse sentido: PETERSON, Luiza Moreira. O risco no contrato de seguro. São Paulo: Roncarati, 2018, p. 114).

Qual técnica é utilizada no caso dos seguros/planos de saúde?
No caso dos seguros/planos de saúde, a legislação impõe às seguradoras uma técnica que mais se aproxima da pulverização do risco, pois o desvio de risco verificado na faixa etária dos assistidos idosos deve ser suportado, em parte, pelos clientes mais jovens, numa espécie de solidariedade intergeracional.

Qual é a técnica utilizada no caso dos seguros de vida?
No âmbito dos contratos de seguro de vida, não há uma norma impondo às seguradoras a adoção de um ou outra técnica de compensação do “desvio de risco” dos segurados idosos.
Diante da ausência de norma específica para a proteção dos segurados idosos nos contratos de seguro de vida, a jurisprudência da 3ª Turma do STJ aplicava, por analogia, a norma do art. 15 da Lei dos Planos de Saúde, acima transcrito. Nesse sentido: STJ. 3ª Turma. REsp 1.376.550-RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 28/4/2015 (Info 561).
Essa posição, no entanto, mudou.

Não se deve aplicar a analogia porque são contratos de natureza distintas
Não é possível aplicar, por analogia, a Lei dos Planos de Saúde para os contratos de seguro de vida. Isso porque são contratos que possuem natureza distintas e protegem bens de relevância diferente.
• Direito assistência à saúde (plano de saúde): está diretamente relacionada com o princípio da dignidade da pessoa humana;
• Direito à indenização do seguro de vida: direito que não extrapola, em regra, a esfera patrimonial dos beneficiários desse contrato.

A regra do art. 15 da Lei nº 9.656/98 justifica-se para os planos de saúde porque o idoso, muitas vezes depois de pagar o plano de saúde por anos, acabava impossibilitado de continuar com os pagamentos mensais no momento em que mais precisava da assistência médica e hospitalar devido aos aumentos desproporcionais no valor do prêmio.
Hipótese bem diversa é a dos contratos de seguro de vida, cuja contratação tem por objetivo garantir um dinheiro para que a família do segurado receba como indenização em caso de sua morte. Ao contratar um seguro de vida, o segurado busca, em regra, proteger seus dependentes financeiros. Assim, os seus beneficiários designados terão direito ao capital estipulado na apólice para enfrentar, pelo menos por um período, as adversidades decorrentes da possível redução da renda familiar, caso o segurado venha a falecer de forma inesperada.

Comprometimento do equilíbrio financeiro do contrato
Desse modo, como não há previsão legal, não se pode proibir que as seguradoras estabeleçam em seus contratos de segurado de vida uma cláusula de reajuste por faixa etária, cobrando um prêmio maior dos segurados idosos, para compensar o desvio de risco verificado nessa classe de segurados.
Se o Poder Judiciário fizesse a revisão desta cláusula para simplesmente eliminar o reajuste da faixa etária dos idosos isso comprometeria o equilíbrio financeiro do contrato de seguro de vida, pois todo o desvio de risco dos idosos passaria a ser suportado pelo fundo mútuo, sem nenhuma compensação no valor do prêmio.

Não importa que o segurado já tenha mais de 10 anos de contrato
O fato de o segurado já ter mais de 10 anos de contrato não modificada a situação. Isso porque o regime financeiro do contrato de vida é o da repartição simples. Logo, os prêmios arrecadados do segurado ao longo da vigência do contrato destinam-se ao pagamento dos sinistros ocorridos naquele período do contrato. Não se trata de contrato de capitalização. A seguradora não guarda para o futuro.
Assim, findo o prazo do contrato, pouco importa quantas vezes ele tenha sido renovado. Isso porque não há uma reserva matemática vinculada a cada participante.

Esse é também o entendimento da 4ª Turma do STJ:
A previsão de reajuste por implemento de idade, mediante prévia comunicação, quando da formalização da estipulação da nova apólice, não configura procedimento abusivo, sendo decorrente da própria natureza do contrato.
STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 632.992/RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 19/03/2019.

Em suma:
Em regra, é válida a cláusula de reajuste por faixa etária em contrato de seguro de vida.
Essa cláusula somente não será válida nos casos em que o contrato já tenha previsto alguma outra técnica de compensação do “desvio de risco” dos segurados idosos, como nos casos de constituição de reserva técnica para esse fim, a exemplo dos seguros de vida sob regime da capitalização (em vez da repartição simples).
STJ. 3ª Turma. REsp 1.816.750-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 26/11/2019 (Info 663).

Mudança de entendimento
Vale ressaltar que o julgado acima representa uma mudança de entendimento.
Assim, por favor, faça anotações em seus livros e materiais de estudo:
No Info 561 do STJ, o seguinte julgado está SUPERADO:
A cláusula de contrato de seguro de vida que estabelece o aumento do prêmio do seguro de acordo com a faixa etária mostra-se abusiva quando imposta ao segurado maior de 60 anos de idade e que conte com mais de 10 anos de vínculo contratual.
STJ. 3ª Turma. REsp 1376550-RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 28/4/2015 (Info 561).

A tese 3 do Jurisprudência em Teses do STJ (edição 98) também está SUPERADA:
3) Em decorrência da aplicação analógica do parágrafo único do art. 15 da Lei n. 9.656/1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, é abusiva a cláusula que estabelece fatores de aumento do prêmio do seguro de vida de acordo com a faixa etária após o segurado completar 60 anos de idade e ter mais de 10 anos de vínculo contratual.



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