segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

De quem é a competência para julgar a ação civil para perda de cargo do Promotor de Justiça?



Imagine a seguinte situação hipotética:
Chegaram indícios no Ministério Público de que João, Promotor de Justiça vitalício, teria praticado crime no exercício de suas funções.
Diante disso, a Corregedoria do Ministério Público instaurou Processo Administrativo Disciplinar para apurar o suposto delito.
Após a instrução, foi prolatada decisão no PAD concluindo pela prática do crime e recomendando a propositura de ação penal contra o referido Promotor.

Neste PAD, o Promotor poderia ter sido demitido? Se um membro do Ministério Público pratica uma infração disciplinar grave, ele poderá ser condenado, em processo administrativo, à pena de demissão?
NÃO. Os membros do MP gozam de vitaliciedade e somente podem perder o cargo por sentença judicial transitada em julgado (art. 128, § 5º, I, “a”, da CF/88).
Além da CF/88, essa vitaliciedade foi regulamentada pelo art. 38, § 1º da Lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do MP) e pelo art. 57, XX, da LC 75/93 (Estatuto do MPU). Essas leis preveem que é necessária a propositura de uma ação civil para a decretação da perda do cargo contra o membro do Ministério Público que tiver praticado uma infração disciplinar grave.

Processo penal
O Procurador-Geral de Justiça ofereceu denúncia contra João no Tribunal de Justiça.
Ao final do processo, o Promotor foi condenado a uma pena de 2 anos e 3 meses de reclusão.
A pena privativa de liberdade foi substituída por penas restritivas de direito.
A condenação criminal transitou em julgado.

O Tribunal de Justiça, ao condenar o Promotor de Justiça pela prática do crime, poderia ter determinado a perda do cargo, com base no art. 92, I, “a”, do CP?
NÃO. Relembre o que diz o art. 92, I, “a”, do Código Penal:
Art. 92. São também efeitos da condenação:
I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo:
a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;
(...)

A perda do cargo com base no art. 92, I, do CP não pode ser aplicada aos membros do Ministério Público considerando que eles são regidos por normas previstas na legislação específica:
Assim, para que possa ocorrer a perda do cargo do membro do Ministério Público, são necessárias duas decisões. A primeira, condenando-o pela prática do crime e a segunda, em ação promovida pelo Procurador-Geral de Justiça, reconhecendo que o referido crime é incompatível com o exercício de suas funções, ou seja, deve existir condenação criminal transitada em julgado, para que possa ser promovida a ação civil para a decretação da perda do cargo (art. 38, §2º, da Lei nº 8.625/93).
O art. 92 do Código Penal não se aplica aos membros do Ministério Público condenados criminalmente porque o art. 38 da Lei nº 8.625/93 disciplina o tema, sendo norma especial (específica), razão pela qual deve esta última prevalecer em relação à norma geral (Código Penal).
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1409692/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 23/05/2017.

As regras sobre a perda do cargo de membro do Ministério Público estadual estão previstas em norma especial, qual seja, Lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), que dispõe que a perda do referido cargo somente pode ocorrer após o trânsito em julgado de ação civil proposta para esse fim.
STJ. 5ª Turma. REsp 1.251.621-AM, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 16/10/2014 (Info 552).

Confira como a legislação especial (Lei nº 8.625/93) tratou sobre o tema:
Art. 38. Os membros do Ministério Público sujeitam-se a regime jurídico especial e têm as seguintes garantias:
I - vitaliciedade, após dois anos de exercício, não podendo perder o cargo senão por sentença judicial transitada em julgado;
II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público;
III - irredutibilidade de vencimentos, observado, quanto à remuneração, o disposto na Constituição Federal.
§ 1º O membro vitalício do Ministério Público somente perderá o cargo por sentença judicial transitada em julgado, proferida em ação civil própria, nos seguintes casos:
I - prática de crime incompatível com o exercício do cargo, após decisão judicial transitada em julgado;
II - exercício da advocacia;
III - abandono do cargo por prazo superior a trinta dias corridos.
§ 2º A ação civil para a decretação da perda do cargo será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o Tribunal de Justiça local, após autorização do Colégio de Procuradores, na forma da Lei Orgânica.

Repare que o § 2º ainda prevê que a ação civil para a decretação da perda do cargo somente pode ser ajuizada pelo Procurador-Geral de Justiça quando previamente autorizado pelo Colégio de Procuradores, o que constitui condição de procedibilidade, juntamente com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Com efeito, em se tratando de normas legais de mesma hierarquia, o fato de a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público prever regras específicas e diferenciadas das do Código Penal para a perda de cargo, em atenção ao princípio da especialidade (lex specialis derogat generali) deve prevalecer o que dispõe a Lei Orgânica.

Como seria se fosse um Procurador da República (membro do MPF)?
Neste caso, a ação civil para perda do cargo deveria ser proposta pelo Procurador-Geral da República, após autorização do Conselho Superior do MPF. Nesse sentido, confira o inciso XX do art. 57 da LC 75/93 (que versa sobre os membros do MPU):
Art. 57. Compete ao Conselho Superior do Ministério Público Federal:
(...)
XX - autorizar, pela maioria absoluta de seus membros, que o Procurador-Geral da República ajuíze a ação de perda de cargo contra membro vitalício do Ministério Público Federal, nos casos previstos nesta lei;

Voltando ao caso concreto: o que deve ser feito agora? João foi condenado criminalmente, mas não perdeu o cargo no processo criminal. Como ele poderá perder o cargo?
O Procurador-Geral de Justiça deverá, após ser autorizado pelo Colégio de Procuradores, ajuizar ação civil contra o Promotor pedindo a perda de seu cargo. É o que prevê, como já vimos acima, o § 2º do art. 38 da Lei nº 8.625/93:
Art. 38 (...)
§ 1º O membro vitalício do Ministério Público somente perderá o cargo por sentença judicial transitada em julgado, proferida em ação civil própria, nos seguintes casos:
I - prática de crime incompatível com o exercício do cargo, após decisão judicial transitada em julgado;
II - exercício da advocacia;
III - abandono do cargo por prazo superior a trinta dias corridos.
§ 2º A ação civil para a decretação da perda do cargo será proposta pelo Procurador-Geral de Justiça perante o Tribunal de Justiça local, após autorização do Colégio de Procuradores, na forma da Lei Orgânica.

Onde o PGJ deverá propor essa ação?
No Tribunal de Justiça, conforme determina o § 2º do art. 38.

A situação mudaria se o Promotor de Justiça estivesse em disponibilidade? Se João estivesse em disponibilidade também teria que se cumprir o § 2º do art. 38, ou seja, seria necessária ação civil de perda do cargo proposta pelo PGJ no TJ?
SIM. Isso porque o membro do Ministério Público quando colocado em disponibilidade não perde o vínculo com a Administração Pública, recebendo seus proventos integrais e sendo assegurada a contagem do tempo de serviço como se em exercício estivesse.
Assim, quando o Promotor é colocado em disponibilidade não há uma perda definitiva do cargo.

A explicação acima feita vale também para os casos de improbidade administrativa?
NÃO. Haveria diferenças. Vou explicar com calma.
De acordo com o § 4º do art. 37 da CF/88, se a pessoa praticar um ato de improbidade administrativa, estará sujeita às seguintes consequências:
• suspensão dos direitos políticos;
• perda da função pública;
• indisponibilidade dos bens e
• ressarcimento ao erário.

O membro do Ministério Público pode ser processado e condenado por ato de improbidade administrativa?
SIM. É pacífico o entendimento de que o Promotor de Justiça (ou Procurador da República) pode ser processado e condenado por ato de improbidade administrativa, com fundamento na Lei nº 8.429/92.

Vimos acima que o membro do MP goza de vitaliciedade e que a Lei nº 8.625/93 e a LC nº 75/93 preveem a necessidade de o PGJ ou PGR ajuízem ação civil de perda do cargo. Mas e no caso da improbidade administrativa? O membro do MP pode ser réu em uma ação de improbidade de que trata a Lei nº 8.429/92 e, ao final, ser condenado à perda do cargo mesmo sem ser adotado o procedimento da Lei nº 8.625/93 e da LC nº 75/93?
SIM. É possível, no âmbito de ação civil pública de improbidade administrativa, a condenação de membro do Ministério Público à pena de perda da função pública prevista no art. 12 da Lei nº 8.429/92.

Mas e a LC nº 75/93 e a Lei nº 8.625/93?
Para o STJ, essas leis não tratam sobre improbidade administrativa e, portanto, nada interferem nas disposições da Lei nº 8.429/92.
Em outras palavras, existem as ações previstas na LC 75/93 e na Lei nº 8.625/93, mas estas não excluem (não impedem) que o membro do MP também seja processado e condenado pela Lei nº 8.429/92. Os dois sistemas convivem harmonicamente. Um não exclui o outro.
“A previsão legal de que o Procurador-Geral de Justiça ou o Procurador-Geral da República ajuizará ação civil específica para a aplicação da pena de demissão ou perda do cargo, nos casos elencados na lei, não obsta que o legislador ordinário, cumprindo o mandamento do § 4º do art. 37 da CF, estabeleça a pena de perda do cargo do membro do MP quando comprovada a prática de ato ímprobo, em ação civil pública própria para sua constatação.” (REsp 1.191.613-MG).

Quem irá propor a ação de improbidade administrativa contra o membro do MP? Exige-se que seja o PGJ ou PGR?
NÃO. A ação de improbidade contra o membro do Ministério Público deverá ser proposta pelo Promotor de Justiça ou Procurador da República, ou seja, pelo membro do MP que atua em 1ª instância.

Legitimidade para ajuizar a ação contra o membro do MP
• Se a ação a ser ajuizada for a da LC 75/93 ou a da Lei nº 8.625/93, nestes casos, a competência é exclusiva do PGR ou do PGJ.
• Se a ação a ser ajuizada for uma ação de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92), esta será proposta “pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada” (art. 17). Não há, portanto, competência exclusiva do Procurador-Geral. Percebe-se que o a Lei nº 8.429/92 ampliou a legitimação ativa.

Dessa forma, não há somente uma única via processual adequada à aplicação da pena de perda do cargo a membro do MP.

Vimos que a ação civil pela perda do cargo contra o Promotor de Justiça (em nosso exemplo, João) deverá ser proposta pelo PGJ e a competência para julgá-la é do TJ. Isso vale também para a ação de improbidade administrativa?
NÃO. Conforme já explicado, se a ação a ser ajuizada for uma ação de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92), esta pode ser proposta pelo Promotor de Justiça e tramitará em 1ª instância.
Assim, se um Promotor de Justiça pratica um ato de improbidade administrativa, outro Promotor de Justiça irá ajuizar contra ele uma ação de improbidade que será julgada em 1ª instância por um Juiz de Direito.

O que decidiu o STJ no Info 662:
Ação Civil de perda de cargo de Promotor de Justiça cuja causa de pedir não esteja vinculada a ilícito capitulado na Lei nº 8.429/92 deve ser julgada pelo Tribunal de Justiça.
STJ. 2ª Turma. REsp 1.737.900-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 19/11/2019 (Info 662).

AÇÃO CIVIL DE PERDA DE CARGO PROPOSTA CONTRA PROMOTOR DE JUSTIÇA
1) Se for uma ação de
improbidade administrativa:
2) Se a causa de pedir não estiver vinculada a ilícito capitulado na Lei nº 8.429/92:
A ação pode ser proposta por um Promotor de Justiça ou pela pessoa jurídica interessada.
A ação deverá ser proposta pelo Procurador-Geral de Justiça.
A ação será julgada pelo juízo de 1ª instância.
A ação deverá ser julgada pelo Tribunal de Justiça.
É regida pela Lei nº 8.429/92.
É regida pela Lei nº 8.625/93.



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