terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

O estabelecimento de critérios de classificação para a escolha de licitantes em credenciamento é ilegal



Obrigatoriedade de licitação
Como regra, a CF/88 impõe que a Administração Pública somente pode contratar obras, serviços, compras e alienações se realizar uma licitação prévia para escolher o contratante (art. 37, XXI).
O inciso XXI do art. 37 da CF/88 afirma que a lei poderá especificar casos em que os contratos administrativos poderão ser celebrados sem esta prévia licitação. A isso, a doutrina denomina “contratação direta”.
Assim, a regra na Administração Pública é a contratação precedida de licitação. Contudo, a legislação poderá prever casos excepcionais em que será possível a contratação direta, sem licitação.

Contratação direta
A Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93) prevê três grupos de situações em que a contratação ocorrerá sem licitação prévia. Trata-se das chamadas licitações dispensadas, dispensáveis e inexigíveis. Vejamos o quadro comparativo abaixo:
Dispensada
Dispensável
Inexigível
Art. 17
Art. 24
Art. 25
Rol taxativo
Rol taxativo
Rol exemplificativo
A lei determina a não realização da licitação, obrigando a contratação direta.
A lei autoriza a não realização da licitação. Mesmo sendo dispensável, a Administração pode decidir realizar a licitação (discricionariedade).
Como a licitação é uma disputa, é indispensável que haja pluralidade de objetos e pluralidade de ofertantes para que ela possa ocorrer. Assim, a lei prevê alguns casos em que a inexigibilidade se verifica porque há impossibilidade jurídica de competição.
Ex.: quando a Administração Pública possui uma dívida com o particular e, em vez de pagá-la em espécie, transfere a ele um bem público desafetado, como forma de quitação do débito. A isso chamamos de dação em pagamento (art. 17, I, "a").
Ex.: compras de pequeno valor (inciso II).
Ex.: contratação de artista consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública para fazer o show do aniversário da cidade.

Inexigibilidade
O art. 25 da Lei nº 8.666/93 trata sobre inexigibilidade de licitação nos seguintes termos:
Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
I - para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes;
II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
III - para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.

Conforme já explicado, os incisos do art. 25 são meramente exemplificativos.
Uma hipótese de inexigibilidade de licitação que não está prevista nos incisos do art. 25 é o chamado credenciamento.

Credenciamento
O credenciamento é uma hipótese de inexigibilidade de licitação na qual “a Administração aceita como colaborador todos aqueles que, atendendo as motivadas exigências públicas, manifestem interesse em firmar contrato ou acordo administrativo.” (TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas comentadas. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 348).
Desse modo, o credenciamento é um procedimento por meio do qual a Administração Pública anuncia que precisa de pessoas para fornecer determinados bens ou para prestarem algum serviço e que irá contratar os que se enquadrem nas qualificações que ela exigir. Após esse chamamento público, os interessados podem se habilitar para serem contratados.
Fala-se que é uma hipótese de inexigibilidade de licitação porque não haverá competição (disputa) entre os interessados. Todos os interessados que preencham os requisitos anunciados serão considerados “credenciados” e estarão aptos a serem contratos.
Conforme explica Joel de Menezes Niebuhr:
“Outra hipótese de inexigibilidade de licitação pública, que é cada vez mais frequente, relaciona-se ao denominado credenciamento, porquanto todos os Interessados em contratar com a Administração Pública são efetivamente contratados, sem que haja relação de exclusão. Como todos os interessados são contratados, não há que se competir por nada, forçando-se reconhecer, por dedução, a inviabilidade de competição e a inexigibilidade de licitação pública.
(...)
Seguindo essa linha de raciocínio, nas hipóteses em que o interesse público demanda contratar todos os possíveis interessados, todos em igualdade de condições, não há que se cogitar de licitação pública, porque não há competição, não há disputa.
Em apertadíssima síntese: a licitação pública serve para regrar a disputa de um contrato; se todos são contratados, não há o que se disputar, inviável é a competição e, por corolário, está-se diante de mais um caso de inexigibilidade, quer queira ou não queira o legislador.” (Licitação Pública e Contrato Administrativo. 4ª ed., Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 119).

O credenciamento é previsto expressamente na lei?
NÃO. Apesar disso, a doutrina e a jurisprudência afirmam que ele é possível, sendo considerado uma hipótese de inexigibilidade de licitação com base no caput do art. 25 da Lei nº 8.666/93.

TCU
O credenciamento é admitido na jurisprudência do TCU, como hipótese de inviabilidade de competição não expressamente mencionada no art. 25 da Lei nº 8.666/93 (Plenário, Acórdão 784/2018, Relator Min. Marcos Bemquerer).
Segundo a Corte de Contas, a ausência de expressa previsão legal do credenciamento dentre os casos de inexigibilidade de licitação previstos na Lei nº 8.666/93 não impede que a Administração lance mão de tal procedimento e efetue a contratação direta entre diversos fornecedores previamente cadastrados que satisfaçam os requisitos estabelecidos pela Administração (Plenário, Acórdão 768/2013, Relator Min. Marcos Bemquerer).
Para tanto, devem ser observados requisitos como:
a) contratação de todos os que tiverem interesse e que satisfaçam as condições fixadas pela Administração, não havendo relação de exclusão;
b) garantia de igualdade de condições entre todos os interessados hábeis a contratar com a Administração, pelo preço por ela definido;
c) demonstração inequívoca de que as necessidades da Administração somente poderão ser atendidas dessa forma (Primeira Câmara, Acórdão 2504/2017, Rel. AUGUSTO SHERMAN).

Vale ressaltar que o próprio TCU adota a prática de credenciamento em sua administração. Veja um exemplo recente:



Depois que os interessados estão cadastrados, como é feita a escolha daquele que irá prestar o serviço ou fornecer o bem?
O edital de credenciamento irá prever o critério de escolha. Alguns exemplos:
• escolha do terceiro que irá utilizar o serviço (no caso, por exemplo, de credenciamento de médicos);
• opções de voo e preço da tarifa (no caso, de companhias aéreas para fornecimento de passagens);
• sorteio;
• rodízio.

É possível a realização de credenciamento para a contratação de serviços advocatícios?
SIM, mas apenas para serviços advocatícios “comuns”, ou seja, que possam ser realizados de modo satisfatório pela maior parte dos advogados. Significa dizer que se trata de serviço dotado de certa simplicidade, sem exigência de um nível técnico tão aprofundado (Decisão nº 624/1994-TCU-Plenário).

Imagine agora a seguinte situação hipotética:
O Banco do Brasil S.A. (sociedade de economia mista federal) publicou edital para credenciamento de advogados para prestar serviços advocatícios nos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Ocorre que o edital de credenciamento publicado pelo Banco do Brasil tinha uma peculiaridade: ele previu um critério de pontuação, de forma que os advogados e escritórios que se inscrevessem iriam ser avaliados e organizados segundo uma ordem de classificação.

A previsão desse critério de pontuação no edital de credenciamento é válida?
NÃO.
O TCU já decidiu que é “ilegal o estabelecimento de critérios de classificação para a escolha de escritórios de advocacia por entidade da Administração em credenciamento” (Plenário, Acórdão 408/2012, Relator Min. VALMIR CAMPELO e Plenário, Acórdão 141/2013, Relator Min. WALTON ALENCAR RODRIGUES).
O credenciamento é considerado como uma espécie de inexigibilidade de licitação justamente pelo fato de não ser possível, em tese, a competição entre os interessados. Logo, a previsão de critérios de pontuação entre os interessados contraria a natureza do processo de credenciamento.
Assim, no credenciamento só se admite a existência de requisitos mínimos. Se o interessado preencher, ele está credenciado; se não atender, encontra-se eliminado. Os critérios permitidos são, portanto, meramente eliminatórios (e não classificatórios).
Confira trecho do acórdão do TCU:
“(...) o credenciamento é instituto aplicável em situações de inexigibilidade de licitação, quando não há que se falar em concorrência dentre os interessados, uma vez que todos os credenciados serão contratados nos termos propostos pelo órgão.
7. Na modalidade de credenciamento, portanto, a avaliação técnica limita-se a verificar se a empresa interessada possui capacidade para executar o serviço. Uma vez preenchidos os critérios mínimos estabelecidos no edital, a empresa será credenciada, podendo ser contratada em igualdade de condições com todas as demais que também forem credenciadas.
8. A etapa de avaliação das empresas é, portanto, apenas eliminatória, e não classificatória, já que nessa modalidade não pode haver distinção entre as empresas credenciadas. Inexiste, portanto, a possibilidade de escolha de empresas que mais se destaquem dentre os parâmetros fixados pela entidade, visto que as empresas estariam competindo para constarem como as mais bem pontuadas. O credenciamento não se presta para este fim, uma vez que ele só se justifica em situações onde não se vislumbra possibilidade de competição entre os interessados, conforme entendimento já transcrito neste voto.
9. Ademais, nos termos da Decisão nº 624/1994-TCU-Plenário, o credenciamento para contratação de serviços advocatícios seria justificável quando se tratasse de serviços comuns, que podem ser realizados de modo satisfatório pela maior parte dos advogados. Significa dizer que se trata de serviço dotado de certa simplicidade, sem exigência de um nível técnico tão aprofundado, não existindo, portanto, diferenças de qualificação relevantes ao interesse público.”

O STJ também adotou o mesmo entendimento do TCU e decidiu que:
O estabelecimento de critérios de classificação para a escolha de licitantes em credenciamento é ilegal.
STJ. 1ª Turma. REsp 1.747.636-PR, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 03/12/2019 (Info 662).

Sendo o credenciamento modalidade de licitação inexigível em que há inviabilidade de competição, ao mesmo tempo em que se admite a possibilidade de contratação de todos os interessados em oferecer o mesmo tipo de serviço à Administração Pública, eventuais critérios de pontuação exigidos no edital mostram-se contrários ao entendimento doutrinário e jurisprudencial.




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