quarta-feira, 13 de outubro de 2021

É possível o ajuizamento de ação possessória, fundada em cláusula resolutiva expressa, decorrente de inadimplemento contratual do promitente comprador, sendo desnecessária a prévia propositura de ação para resolução do contrato

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, proprietário de uma fazenda, celebrou com Pedro, compromisso de compra e venda do imóvel.

Assim, João se comprometeu a vender a fazenda para Pedro, que ficou de pagar R$ 700 mil divididos em 7 prestações de R$ 100 mil.

No momento da assinatura do contrato, João já transferiu a posse para Pedro, que passou a ocupar a fazenda, ali vivendo e trabalhando.

Ocorre que Pedro pagou apenas duas prestações, tornando-se, a partir daí, inadimplente.

João fez uma notificação extrajudicial do devedor conferindo o prazo de 10 dias para purgar a mora, sob pena de resolução do contrato, nos termos da cláusula 4.3 do contrato celebrado.

Passou o prazo e Pedro não pagou a dívida nem desocupou o imóvel, caracterizando, assim, o esbulho, dada a posse precária exercida.

Diante desse cenário, João ajuizou ação de reintegração de posse contra Pedro.

O juiz concedeu a liminar determinando que o réu desocupasse o imóvel.

O requerido recorreu e o Tribunal de Justiça extinguiu o processo, sem resolução de mérito, sob o argumento de que o correto seria o prévio ajuizamento de ação para rescisão do contrato.

Desse modo, o Tribunal entendeu pela inadequação da via eleita (reintegração de posse sem pedido de rescisão do compromisso de compra e venda do imóvel).

 

Agiu corretamente o Tribunal de Justiça?

NÃO.

 

Cláusula resolutiva

O art. 474 do Código Civil trata sobre as cláusulas resolutivas expressa e tácita:

Art. 474. A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial.

 

þ (PGM Curitiba) A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial. (certo)

ý (Defensor DPE-RN 2015 CESPE) A extinção do contrato decorrente de cláusula resolutiva expressa configura exercício do direito potestativo de uma das partes do contrato de impor à outra sua extinção e depende de interpelação judicial. (errado)

 

CLÁUSULA RESOLUTIVA

EXPRESSA

TÁCITA

Trata-se de uma cláusula expressamente estipulada pelas partes no momento da celebração do negócio jurídico ou em oportunidade posterior (por meio de aditivo contratual), porém, sempre antes da verificação da situação de inadimplência nela prevista, que constitui o suporte fático para a resolução do ajuste firmado.

                                                            

Nesta cláusula, as partes indicam as hipóteses que geram a extinção do contrato.

Importante mencionar que a cláusula resolutiva expressa não extingue automaticamente o contrato, mas apenas permite ao credor exercer o direito de optar entre:

· a execução da prestação; ou

· a resolução do ajuste.

É aquela prevista pelo próprio texto legal, e se aplica em situações nas quais as partes não estipulam mediante cláusula expressa.

Nessa modalidade de extinção, ocorrendo determinada circunstância ensejadora de descumprimento obrigacional, está a parte prejudicada autorizada a buscar o rompimento do vínculo contratual, nos termos do art. 395, parágrafo único, do CC:

 

Art. 395 (...)

Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos.

 

 

A vantagem de se estipular uma cláusula resolutiva expressa é que, se ocorrer a situação ali prevista, haverá resolução da relação negocial independentemente de pronunciamento judicial.

Para que haja a resolução da relação negocial exige-se pronunciamento judicial.

 

Interpretação tradicional do STJ para o art. 474 do CC

Mesmo com a previsão legal do art. 474 do Código Civil, que dispensa as partes da ida ao Judiciário quando existente a cláusula resolutiva expressa por se operar de pleno direito, o STJ, ao interpretar esse dispositivo, entendia ser “imprescindível a prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa, diante da necessidade de observância do princípio da boa-fé objetiva a nortear os contratos” (STJ. 4ª Turma. REsp 620.787/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 27/04/2009).

Desse modo, se, no caso concreto acima narrado, fosse aplicada a jurisprudência sedimentada no STJ, sem uma análise mais criteriosa e específica, a solução seria, realmente, reconhecer a falta de interesse de agir do autor (João) por conta da “inadequação da via eleita” já que ele teria que, previamente, pleitear em juízo a resolução do contrato.

 

STJ alterou seu entendimento

Ocorre que o STJ afirmou que, casos como o narrado acima exigem uma solução diferente daquela que era tradicionalmente adotada pela jurisprudência. É necessária uma mudança para se adotar um entendimento mais condizente com as expectativas da sociedade hodierna, voltadas à mínima intervenção estatal no mercado e nas relações particulares, com foco na desjudicialização, simplificação de formas e ritos e, portanto, na primazia da autonomia privada.

 

Cláusula resolutiva expressa + interpelação + concessão de prazo

Após a necessária interpelação para constituição em mora, deve haver um período no qual o contrato não pode ser extinto e que o compromissário comprador tem possibilidade de purgar.

Após o decurso do prazo in albis, isto é, sem a purgação da mora, nada impede que o compromitente vendedor exerça o direito potestativo concedido pela cláusula resolutiva expressa para a resolução da relação jurídica extrajudicialmente.

Cumprida a necessidade de comprovação da mora e comunicado o devedor acerca da intenção da parte prejudicada de não mais prosseguir com a avença, ultrapassado o prazo para a purgação da mora, o contrato se resolve de pleno direito, sem interferência judicial. Essa resolução, como já mencionado, dá-se de modo automático, pelo só fato do inadimplemento do promitente comprador, independentemente de qualquer outra providência.

 

 

Em alguns casos será necessária intervenção judicial (ex: em casos de inadimplemento substancial)

Não se nega a existência de casos nos quais, em razão de outros institutos, esteja a parte credora impedida de pôr fim à relação negocial, como, por exemplo, quando evidenciado o adimplemento substancial*. Porém, essas hipóteses não podem transformar a excepcionalidade em regra, principalmente caso as partes estipulem cláusula resolutiva expressa e o credor demonstre os requisitos para a comprovação da mora, aguarde a apresentação de justificativa plausível pelo inadimplemento ou a purga e comunique a intenção de desfazimento do ajuste, informação que pode constar da própria notificação.

Nessas hipóteses excepcionais, quando sobressaírem motivos plausíveis e justificáveis para a não resolução do contrato, a parte devedora sempre poderá socorrer-se da via judicial a fim de alcançar a declaração de manutenção do ajuste, transformando o inadimplemento absoluto em parcial, oferecendo, na oportunidade, todas as defesas que considerar adequadas a fim de obter a declaração de prosseguimento do contrato.

O que não se pode é exigir que a parte credora – já prejudicada pelo inadimplemento – tenha que propor demanda judicial para obter a resolução do contrato quando já existe uma cláusula resolutória expressa em seu favor. Exigir isso seria impor ônus demasiado e obrigação contrária ao texto expresso da lei, desprestigiando o princípio da autonomia da vontade, da não intervenção do Estado nas relações negociais, criando obrigação que refoge à verdadeira intenção legislativa.

 

Exigências da notificação extrajudicial

Ressalte-se que a notificação deve conter o valor do crédito em aberto, o cálculo dos encargos contratuais cobrados, o prazo e local de pagamento e, principalmente, a explícita advertência de que a não purgação da mora no prazo acarretará a gravíssima consequência da extinção do contrato por resolução, fazendo nascer uma nova relação entre as partes - de liquidação.

Dito isso, afirma-se que a alteração jurisprudencial é necessária para tornar prescindível o intento de demanda/ação judicial nas hipóteses em que existir cláusula resolutória expressa e tenha a parte cumprido os requisitos para a resolução da avença.

 

Em suma:

É possível o manejo de ação possessória, fundada em cláusula resolutiva expressa, decorrente de inadimplemento contratual do promitente comprador, sendo desnecessário o ajuizamento de ação para resolução do contrato.

STJ. 4ª Turma. REsp 1.789.863-MS, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 10/08/2021 (Info 704).

 

* DOD Pédia

Antes de verificar o que decidiu o STJ, vamos relembrar o que é a teoria do adimplemento substancial

Por meio da teoria do adimplemento substancial, defende-se que, se o adimplemento da obrigação foi muito próximo ao resultado final, a parte credora não terá direito de pedir a resolução do contrato porque isso violaria a boa-fé objetiva, já que seria exagerado, desproporcional, iníquo.

No caso do adimplemento substancial, a parte devedora não cumpriu tudo, mas quase tudo, de modo que o credor terá que se contentar em pedir o cumprimento da parte que ficou inadimplida ou então pleitear indenização pelos prejuízos que sofreu (art. 475, CC).

Veja o clássico conceito de Clóvis do Couto e Silva:

Adimplemento substancial “constitui um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o pedido de indenização e/ou adimplemento, de vez que a primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa-fé (objetiva)" (O Princípio da Boa-Fé no Direito Brasileiro e Português in Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português. São Paulo: RT, 1980, p. 56).

 

Sua origem está no Direito Inglês, por volta do séc. XVIII, tendo lá recebido o nome de substancial performance.

 

Esta teoria é prevista expressamente no ordenamento jurídico brasileiro?

NÃO. Não existe uma previsão expressa dessa teoria. Apesar disso, ela encontra fundamento em diversos princípios, dentre eles:

• a função social do contrato (art. 421 do CC);

• a boa-fé objetiva (art. 422);

• a equivalência das obrigações

• a vedação ao abuso de direito (art. 187);

• a eticidade

• a razoabilidade e

• a vedação ao enriquecimento sem causa (art. 884).

 

Segundo o Min. Paulo de Tarso Sanseverino, atualmente, o fundamento para a aplicação da teoria do adimplemento substancial no Direito brasileiro é a cláusula geral do art. 187 do Código Civil, que permite a limitação do exercício de um direito subjetivo pelo seu titular quando se colocar em confronto com o princípio da boa-fé objetiva. Desse modo, esta teoria está baseada no princípio da boa-fé objetiva. Aponta-se também como outro fundamento o princípio da função social dos contratos.

 

A teoria do adimplemento substancial já foi acolhida pelo STJ?

SIM. Existem julgados adotando expressamente a teoria.

Vale ressaltar, no entanto, que seu uso não pode ser banalizado a ponto de inverter a lógica jurídica de extinção das obrigações. O “normal” que as partes esperam legitimamente é que os contratos sejam cumpridos de forma integral e regular.

Diante disso, a fim de que haja critérios, o STJ afirma que são necessários três requisitos para a aplicação da teoria:

a) a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes;

b) o pagamento faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio;

c) deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários.

STJ. 4ª Turma. REsp 1581505/SC, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 18/08/2016.

 

Na Inglaterra, onde surgiu a teoria, “os autores ingleses formularam três requisitos para admitir a substantial performance: (a) insignificância do inadimplemento; (b) satisfação do interesse creditório; (c) diligência por parte do devedor no desempenho de sua prestação, ainda que a mesma se tenha operado imperfeitamente” (RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006).

 

Importante destacar que o STJ considera que essa teoria não deve ser aplicada nos casos envolvendo alienação fiduciária em garantia:

Não se aplica a teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária em garantia regidos pelo Decreto-Lei 911/69.

STJ. 2ª Seção. REsp 1622555-MG, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 22/2/2017 (Info 599). 



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