terça-feira, 19 de outubro de 2021

O § 3º do art. 326-A do Código Eleitoral, incluído pela Lei 13.834/2019, é constitucional

 

O Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65) prevê alguns crimes. A Lei nº 13.834/2019 acrescentou um novo artigo a esse diploma, criando o crime de denunciação caluniosa com finalidade eleitoral.

 

CRIMES ELEITORAIS

Para que uma infração penal possa ser considerada como “crime eleitoral”, é necessário o preenchimento de dois requisitos:

1) previsão na lei eleitoral: a conduta delituosa deve estar prevista em lei que trate sobre direito eleitoral; e

2) finalidade eleitoral: a conduta do agente deve ter sido praticada com o objetivo de violar bem jurídico eleitoral, ou seja, é preciso que o crime tenha sido praticado com objetivo de atingir valores como a liberdade do exercício do voto, a regularidade do processo eleitoral e a preservação do modelo democrático.

Nesse sentido:

(...) 1. A simples existência, no Código Eleitoral, de descrição formal de conduta típica não se traduz, incontinenti, em crime eleitoral, sendo necessário, também, que se configure o conteúdo material de tal crime.

2. Sob o aspecto material, deve a conduta atentar contra a liberdade de exercício dos direitos políticos, vulnerando a regularidade do processo eleitoral e a legitimidade da vontade popular. Ou seja, a par da existência do tipo penal eleitoral específico, faz-se necessária, para sua configuração, a existência de violação do bem jurídico que a norma visa tutelar, intrinsecamente ligado aos valores referentes à liberdade do exercício do voto, a regularidade do processo eleitoral e à preservação do modelo democrático.

3. A destruição de título eleitoral da vítima, despida de qualquer vinculação com pleitos eleitorais e com o intuito, tão somente, de impedir a identificação pessoal, não atrai a competência da Justiça Eleitoral. (...)

STJ. 3ª Seção. CC 127.101/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 11/02/2015.

 

Se o crime foi praticado no contexto eleitoral, mas não está tipificado na legislação eleitoral, o agente responderá por crime “comum”, sendo julgado pela Justiça “comum” federal. É o caso, por exemplo, do desacato contra juiz eleitoral:

PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME COMUM PRATICADO CONTRA JUIZ ELEITORAL. INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.

1. A competência criminal da Justiça Eleitoral se restringe ao processo e julgamento dos crimes tipicamente eleitorais.

2. O crime praticado contra Juiz Eleitoral, ou seja, contra órgão jurisdicional de cunho federal, evidencia o interesse da União em preservar a própria administração.

3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal do Juizado Especial Cível e Criminal da Seção Judiciária do Estado de Rondônia, ora suscitado.

STJ. 3ª Seção. CC 45552/RO, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 08/11/2006.

 

Os crimes eleitorais estão todos previstos no Código Eleitoral?

NÃO. Existem crimes eleitorais tipificados em outras leis que tratam sobre matéria eleitoral: Lei nº 6.091/74, Lei nº 6.996/82, Lei nº 7.021/82, LC nº 64/90, Lei nº 9.504/97.

 

De quem é a competência para julgar crimes eleitorais?

Da Justiça Eleitoral.

Essa competência poderá ser dos Juízes Eleitorais, dos Tribunais Regionais Eleitorais ou do Tribunal Superior Eleitoral.

 

Feitos esses esclarecimentos que reputava necessários, vejamos o crime eleitoral inserido pela Lei nº 13.834/2019:

 

DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA COM FINALIDADE ELEITORAL

Art. 326-A. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve do anonimato ou de nome suposto.

§ 2º A pena é diminuída de metade, se a imputação é de prática de contravenção.

§ 3º Incorrerá nas mesmas penas deste artigo quem, comprovadamente ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído.

 

Em que consiste o crime

O agente, ...

- movido por uma finalidade eleitoral (ex: para denegrir a imagem do adversário político),

- pratica alguma conduta por meio da qual atribui a determinada pessoa a prática de um crime ou ato infracional,

- mesmo sabendo que ela é inocente,

- fazendo com que as autoridades iniciem...

• uma investigação policial

• um processo judicial

• uma investigação administrativa

• um inquérito civil

• ou uma ação de improbidade administrativa.

 

Necessidade de criar o crime e diferença em relação à denunciação caluniosa do CP

O Código Penal também prevê, no art. 339, o crime de denunciação caluniosa, com redação muito semelhante ao art. 326-A do CE. A pena, inclusive, é mesma.

A única diferença é que, na denunciação caluniosa do art. 326-A do CE, exige-se que o sujeito ativo tenha agido “com finalidade eleitoral”.

Antes da Lei nº 13.834/2019, caso o agente tivesse praticado essa conduta “com finalidade eleitoral”, ele respondia pelo do art. 339 do CP, sendo o crime julgado pela Justiça Comum Federal (obs: o crime era julgado pela Justiça Federal porque é praticado em detrimento da Justiça Eleitoral, que é um órgão da União, atraindo, portanto, a hipótese do art. 109, IV, da CF/88). Nesse sentido, confira este precedente do TSE:

Ação penal. Justiça Eleitoral. Incompetência. Denunciação caluniosa.

1.  Considerando que o art. 339 do Código Penal não tem equivalente na legislação eleitoral, a Corte de origem assentou a incompetência da Justiça Eleitoral para exame do fato narrado na denúncia - levando-se em conta que a hipótese dos autos caracteriza, em tese, ofensa à administração desta Justiça Especializada -, anulou a sentença e determinou a remessa dos autos à Justiça Federal.

2.  É de se manter o entendimento do Tribunal a quo, visto que a denunciação caluniosa decorrente de imputação de crime eleitoral atrai a competência da Justiça Federal, visto que tal delito é praticado contra a administração da Justiça Eleitoral, órgão jurisdicional que integra a esfera federal, o que evidencia o interesse da União, nos termos do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal.

(Agravo de Instrumento nº 26717, Acórdão, Relator(a) Min. Arnaldo Versiani, Publicação:  DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 07/04/2011, Página 42)

 

Assim, com a inclusão do art. 326-A do CE praticamente a única mudança foi quanto à competência:

• Se o agente praticasse denunciação caluniosa com finalidade eleitoral antes da Lei nº 13.834/2019: ele responderia pelo crime do art. 339 do CP, sendo julgado pela Justiça Comum Federal.

• Se o agente praticar denunciação caluniosa com finalidade eleitoral depois da Lei nº 13.834/2019: ele responde pelo crime do art. 326-A do CE, sendo julgado pela Justiça Eleitoral.

 

Bem jurídico protegido

Esse crime tem por objetivo proteger, em primeiro lugar, a Administração da Justiça. Em outras palavras, pune-se o agente pelo fato de ter movimentado a Justiça (aqui entendida em sentido amplo) mesmo sabendo que a pessoa a quem se atribuiu o crime (ou ato infracional) era inocente.

Além disso, o tipo busca proteger também, secundariamente, a honra da pessoa a quem se atribuiu o crime ou ato infracional.

 

Dar causa

Significa provocar, dar início.

Essa provocação pode ser:

a) direta: quando o agente, em nome próprio, provoca as autoridades afirmando que a pessoa praticou o crime ou o ato infracional;

b) indireta: quando o agente se vale de meios dissimulados para provocar as autoridades. Exs: delação anônima, “plantar” droga na bagagem da vítima.

 

Sujeito ativo

Pode ser praticado por qualquer pessoa. Trata-se de crime comum.

 

Sujeito passivo

O Estado e a pessoa a quem se atribuiu falsamente a prática do delito.

 

Elemento subjetivo

É o dolo direto, considerando que o tipo penal utiliza a expressão “imputando-lhe crime de que o sabe inocente”.

Desse modo, é imprescindível que esteja provado que o agente tenha efetivo conhecimento da inocência da pessoa e, mesmo assim, dê causa à instauração do procedimento.

Não se admite o dolo eventual nem a modalidade culposa.

Além do dolo, o crime do art. 326-A do CE exige um elemento subjetivo especial (“dolo específico”): a finalidade eleitoral. Assim, o sujeito ativo deve ter dado causa à instauração motivado por objetivos eleitorais (ex: impedir que o adversário político concorra, fazer com que ele perca votos etc.).

 

Consumação

O crime se consuma quando a autoridade dá início à investigação policial, ao processo judicial, à investigação administrativa, ao inquérito civil ou à ação de improbidade administrativa.

 

Tentativa

É possível. Ex: o agente narra que determinada pessoa praticou um crime, mas o Delegado constata que se trata de uma falta delação antes mesmo de instaurar a investigação.

 

Anonimato

Se o agente se serve do anonimato ou de nome suposto, haverá contra ele uma causa de aumento de pena de 1/6.

§ 1º A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve do anonimato ou de nome suposto.

 

Denunciação caluniosa privilegiada

Se o agente dá causa à instauração do procedimento imputando falsamente a prática de uma contravenção penal, haverá uma causa de diminuição de pena de 1/2 (metade).

§ 2º A pena é diminuída de metade, se a imputação é de prática de contravenção.

 

Divulgada ou propaga ato ou fato falsamente atribuído

O agente também responde pelas mesmas penas se não foi ele quem deu causa à instauração, mas ele sabendo que o denunciado é inocente, divulga ou propala o ato ou fato que foi falsamente atribuído:

§ 3º Incorrerá nas mesmas penas deste artigo quem, comprovadamente ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído.

 

O agente do crime tipificado no § 3º não deu causa à instauração do processo ou da investigação policial. Ele, no entanto, sabe que aquela imputação é falsa e, mesmo assim, divulga esse fato, com objetivos eleitorais, para enganar eleitores e influenciar no pleito. Ele se vale de uma aparência de veracidade do fato calunioso. Os eleitores tendem a acreditar que aquela imputação divulgada é verdadeira porque representa a notícia de um processo ou investigação.

O Min. Gilmar Mendes afirma que esse § 3º do art. 326-A do CE representa “importante mecanismo para repressão penal de fake news utilizadas para tentar corromper o processo eleitoral e, consequentemente, atacar a democracia brasileira. Não se pode admitir a divulgação, com finalidade eleitoral, de ato ou fato que se sabe falsamente atribuído a pessoa inocente.” (ADI 6226/DF).

Vale ressaltar que este § 3º foi vetado pelo Presidente da República com base na seguinte justificativa:

“A propositura legislativa ao acrescer o art. 326-A, caput, ao Código Eleitoral, tipifica como crime a conduta de denunciação caluniosa com finalidade eleitoral. Ocorre que o crime previsto no § 3º do referido art. 326-A da propositura, de propalação ou divulgação do crime ou ato infracional objeto de denunciação caluniosa eleitoral, estabelece pena de reclusão, de dois a oito anos, e multa, em patamar muito superior à pena de conduta semelhante já tipificada no § 1º do art. 324 do Código Eleitoral, que é de propalar ou divulgar calúnia eleitoral, cuja pena prevista é de detenção, de seis meses a dois anos, e multa. Logo, o supracitado § 3º viola o princípio da proporcionalidade entre o tipo penal descrito e a pena cominada.”

 

O Congresso Nacional, contudo, decidiu rejeitar o veto, razão pela qual o § 3º foi promulgado, publicado e entrou em vigor.

 

Calúnia eleitoral x denunciação caluniosa eleitoral

Calúnia (art. 324 do CE)

Denunciação caluniosa (art. 326-A do CE)

Art. 324. Caluniar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando fins de propaganda, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:

Pena. detenção de seis meses a dois anos, e pagamento de 10 a 40 dias-multa.

Art. 326-A. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

O agente apenas imputa falsamente um fato definido como crime.

O agente, além de imputar falsamente um fato definido como crime, leva essa imputação para as autoridades para que seja instaurado um procedimento contra a vítima.

O agente somente quer atingir a honra da vítima na propaganda eleitoral ou com fins de propaganda.

O agente quer que seja instaurado um procedimento ou processo contra a vítima.

Seu objetivo é eleitoral, mas não necessariamente relacionado com a propaganda eleitoral (ex: o agente dá causa à instauração de uma ação penal com o objetivo de que a vítima seja condenada e que, portanto, fique impedida de concorrer).

A imputação é unicamente de crime. Não existe calúnia se o agente imputa falsamente a prática de uma contravenção penal.

A imputação falsa pode ser de crime ou contravenção penal.

 

Ação penal

Ação penal pública incondicionada.

Todos os crimes eleitorais são de ação pública incondicionada, conforme prevê o art. 355 do Código Eleitoral:

Art. 355. As infrações penais definidas neste Código são de ação pública.

 

Suspensão condicional do processo

A figura típica do caput não admite suspensão condicional do processo porque a pena mínima é superior a 1 ano.

No caso da prática do § 2º, é possível a concessão do referido benefício.

 

Vigência

A Lei nº 13.834/2019 entrou em vigor na data de sua publicação (05/06/2019).

 

ADI QUESTIONANDO A PENA PREVISTA PARA O CRIME

O Partido Social Liberal – PSL ajuizou ADI contra o § 3º do art. 326-A do Código Eleitoral (aquele dispositivo que foi vetado e, depois, o veto foi rejeitado).

O autor sustentou que esse dispositivo violaria, entre outros, os seguintes princípios e regras constitucionais:

a) o princípio da proporcionalidade entre a infração penal cometida e a pena cominada;

b) o princípio da individualização da pena;

c) o direito fundamental à liberdade de expressão.

 

O Partido argumentou que:

- o caput do art. 326-A protege, como bem jurídico, a Administração Pública e, especificamente, a Administração da Justiça.

- o § 3º do art. 326-A, por sua vez, descreve um crime contra a honra (bem jurídico menos relevante que a Administração da Justiça) e, mesmo assim, foi prevista a mesma pena do caput;

- logo, o crime contra a honra tipificado no § 3º do art. 326-A teria “uma pena absolutamente excessiva, considerando-se o bem jurídico tutelado”.

 

Esse argumento foi acolhido pelo STF? O § 3º do art. 326-A do Código Eleitoral é inconstitucional?

NÃO.

A sanção abstratamente prevista para o crime de “divulgação de ato objeto de denunciação caluniosa eleitoral” está em consonância com os princípios da proporcionalidade e da individualização da pena.

STF. Plenário. ADI 6225/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 20/8/2021 (Info 1026).

 

O objeto jurídico tutelado pelo § 3º do art. 326-A não se refere apenas à honra do acusado

A pena cominada ao delito previsto no § 3º do art. 326-A do Código Eleitoral não se mostra desproporcional aos bens jurídicos tutelados em face das consequências da conduta.

Não há como se dizer equiparar a reprovabilidade do § 3º do art. 326-A à reprovabilidade dos crimes contra a honra previstos no Código Penal ou no Código Eleitoral.

O objeto jurídico tutelado pelo § 3º do art. 326-A não se refere apenas à honra subjetiva ou objetiva do acusado, mas abrange, principalmente, a legitimidade do processo eleitoral e a higidez do sistema representativo democrático.              

Aquele que dá causa a investigação ou a processo, atribuindo, com finalidade eleitoral, a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, como também aquele que divulga falsa acusação, sabendo da inocência do acusado, prejudicam, a um só tempo, o eleitor, o candidato, a Administração Pública e o regime democrático.

Deve-se reconhecer como acentuada a culpabilidade daquele que, com intuito de influenciar as eleições e ciente da inocência do acusado, dissemina a falsa imputação, valendo-se da aparência de credibilidade decorrente da instauração de investigação ou processo.

 

Liberdade de expressão não é absoluta

O direito fundamental à liberdade de manifestação de pensamento e às demais liberdades públicas não é absoluto e não constitui permissão para a prática de ilícitos, como o que se considera na norma questionada na presente ação.

Não se deve confundir o livre trânsito de ideias, críticas e opiniões com atitude que falseia a verdade, compromete os princípios democráticos, acolhe discurso de ódio e de impostura, vicia a liberdade de informação e de escolha a ser feita pelo eleitor.

 

Conclusão

Com base nesse entendimento, o Plenário julgou improcedente o pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade. 


Print Friendly and PDF