segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Comete crime o médico do SUS que cobra do paciente um valor pelo fato de utilizar, na cirurgia, a sua máquina particular de videolaparoscopia (que não é oferecida na rede pública)?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João estava sentindo fortes dores abdominais e, por isso, procurou um hospital público.

Ali, foi atendido pelo médico Rodrigo, profissional do SUS (Sistema Único de Saúde).

No próprio hospital foi realizado exame de ultrassom, por meio do qual se constatou que João deveria passar por uma cirurgia de retirada da vesícula (colecistectomia).

Rodrigo explicou ao paciente que a rede pública de saúde apenas cobre a cirurgia “aberta” e que, caso quisesse realizar o procedimento “fechado”, ou seja, por meio de videolaparoscopia, seria cobrada a quantia de R$ 2.500,00, pelo uso do equipamento que é de propriedade particular do médico.

João optou pela cirurgia através de vídeo (fechada).

Logo após o procedimento, a filha de João pagou a Rodrigo a quantia solicitada (R$ 2.500,00).

O Ministério Público descobriu a situação e denunciou Rodrigo pela prática de corrupção passiva (art. 317, § 1º do Código Penal), sob o argumento de que ele recebeu vantagem indevida no exercício de função equiparada a funcionário público.

Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

§ 1º A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

(...)

 

Rodrigo defendeu-se alegando que o valor cobrado consistia apenas no aluguel do aparelho de videolaparoscopia, que é de sua propriedade.

O médico foi condenado em 1ª instância, condenação mantida pelo Tribunal de Justiça.

 

O STJ concordou com o juiz e o TJ? Para o STJ, houve crime no presente caso?

NÃO.

O STJ entendeu que, no caso concreto, houve apenas o recebimento de ressarcimento pelos gastos decorrentes do uso do equipamento de videolaparoscopia, técnica cirúrgica não coberta pelo SUS.

Logo, isso não configura vantagem indevida para fins penais.

 

Mas a lei veda que, no SUS, sejam cobrados valores do paciente ou de seus familiares a título de complementação

É verdade.

A Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (Lei nº 8.080/90) e a Portaria nº 113/97 do Ministério da Saúde vedam a cobrança de valores do paciente ou familiares a título de complementação, dado o caráter universal e gratuito do sistema público de saúde.

Esse entendimento foi reforçado pelo STF no julgamento do RE 581.488/RS, com repercussão geral, em que se afastou a possibilidade de “diferença de classe” em internações hospitalares pelo SUS (relator Ministro Dias Toffoli, Plenário, DJe de 8/4/2016):

É inconstitucional a possibilidade de um paciente do Sistema Único de Saúde (SUS) pagar para ter acomodações superiores ou ser atendido por médico de sua preferência, a chamada “diferença de classes”.

STF. Plenário. RE 581488/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 3/12/2015 (repercussão geral) (Info 810).

 

Assim, sob o aspecto administrativo, a conduta do médico configura afronta à legislação citada e pode até caracterizar as infrações dos arts. 65 e 66 do Código de Ética Médica:

Art. 65. Cobrar honorários de paciente assistido em instituição que se destina à prestação de serviços públicos, ou receber remuneração de paciente como complemento de salário ou de honorários.

 

Art. 66. Praticar dupla cobrança por ato médico realizada.

 

Todavia, para o STJ, não há crime. Isso porque a tipificação do art. 317 do CP exige a comprovação de recebimento de vantagem indevida pelo médico, o que não se configura quando há mero ressarcimento ou reembolso de despesas.

O uso do aparelho de videolaparoscopia acarreta custos de manutenção e reposição de peças, não sendo razoável obrigar que o médico suporte tais gastos, em especial quando houver aquiescência da vítima à adoção da técnica cirúrgica por lhe ser notoriamente mais benéfica em relação à cirurgia tradicional ou “aberta”.

Desse modo, o reembolso dos gastos pelo uso do equipamento não representa o recebimento de vantagem pelo acusado, não demonstrada a elementar normativa do art. 317 do Código Penal.

 

Em suma:

Para tipificação do art. 317 do Código Penal - corrupção passiva -, deve ser demonstrada a solicitação ou recebimento de vantagem indevida pelo agente público, não configurada quando há mero ressarcimento ou reembolso de despesa.

STJ. 5ª Turma. HC 541.447-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 14/09/2021 (Info 709).



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