sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Na ação de busca e apreensão de que trata o DL 911/1969, a análise da contestação somente deve ocorrer após a execução da medida liminar

 

Alienação fiduciária

“A alienação fiduciária em garantia é um contrato instrumental em que uma das partes, em confiança, aliena a outra a propriedade de um determinado bem, ficando esta parte (uma instituição financeira, em regra) obrigada a devolver àquela o bem que lhe foi alienado quando verificada a ocorrência de determinado fato.” (RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 827).

 

Regramento

O Código Civil de 2002 trata de forma genérica sobre a propriedade fiduciária em seus arts. 1.361 a 1.368-B. Existem, no entanto, leis específicas que também regem o tema:

• alienação fiduciária envolvendo bens imóveis: Lei nº 9.514/97;

• alienação fiduciária de bens móveis no âmbito do mercado financeiro e de capitais: Lei nº 4.728/65 e Decreto-Lei nº 911/69. É o caso, por exemplo, de um automóvel comprado por meio de financiamento bancário com garantia de alienação fiduciária.

Nas hipóteses em que houver legislação específica, as regras do CC aplicam-se apenas de forma subsidiária:

Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial.

 

 

Resumindo:

Alienação fiduciária de

bens MÓVEIS fungíveis e infungíveis quando o credor fiduciário for instituição financeira

Alienação fiduciária de

bens MÓVEIS infungíveis quando o credor fiduciário for pessoa natural ou jurídica (sem ser banco)

Alienação fiduciária de

bens IMÓVEIS

Lei nº 4.728/65

Decreto-Lei nº 911/69

Código Civil de 2002

(arts. 1.361 a 1.368-B)

Lei nº 9.514/97

 

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BENS MÓVEIS NO DL 911/69

Imagine a seguinte situação hipotética:

Antônio quer comprar um carro de R$ 30 mil, mas somente possui R$ 10 mil. Antônio procura o Banco “X”, que celebra com ele contrato de financiamento com garantia de alienação fiduciária.

Assim, o Banco “X” empresta R$ 20 mil a Antônio, que compra o veículo. Como garantia do pagamento do empréstimo, a propriedade resolúvel do carro ficará com o Banco “X” e a posse direta com Antônio.

Em outras palavras, Antônio ficará andando com o carro, mas, no documento, a propriedade do automóvel é do Banco “X” (constará “alienado fiduciariamente ao Banco X”). Diz-se que o banco tem a propriedade resolúvel porque, uma vez pago o empréstimo, a propriedade do carro pelo banco “resolve-se” (acaba) e o automóvel passa a pertencer a Antônio.

 

O que acontece em caso de inadimplemento do mutuário (em nosso exemplo, Antônio)?

Havendo mora por parte do mutuário, o procedimento será o seguinte (regulado pelo DL 911/69):

 

Notificação do devedor

O credor deverá fazer a notificação extrajudicial do devedor de que este se encontra em débito, comprovando, assim, a mora. Essa notificação é indispensável para que o credor possa ajuizar ação de busca e apreensão. Confira:

Súmula 72-STJ: A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente.

 

Súmula 245-STJ: A notificação destinada a comprovar a mora nas dívidas garantidas por alienação fiduciária dispensa a indicação do valor do débito.

 

Como é feita a notificação do devedor? Essa notificação precisa ser realizada por intermédio do Cartório de Títulos e Documentos?

NÃO. Essa notificação é feita por meio de carta registrada com aviso de recebimento. Logo, não precisa ser realizada por intermédio do Cartório de RTD.

 

O aviso de recebimento da carta (AR) precisa ser assinado pelo próprio devedor?

NÃO. Não se exige que a assinatura constante do aviso de recebimento seja a do próprio destinatário (§ 2º do art. 2º do DL 911/69).

Para a constituição em mora por meio de notificação extrajudicial, é suficiente que seja entregue no endereço do devedor, ainda que não pessoalmente.

 

Ajuizamento de ação contra o devedor

Após comprovar a mora, o mutuante (Banco “X”) terá duas opções:

1) poderá ingressar com uma ação de busca e apreensão requerendo que lhe seja entregue o bem (art. 3º do DL 911/69). Essa busca e apreensão prevista no DL 911/69 é uma ação especial autônoma e independente de qualquer procedimento posterior; ou

2) ajuizar uma ação de execução (arts. 4º e 5º do DL 911/69).

 

Vale ressaltar que as ações de busca e apreensão e de execução não podem ser ajuizadas concomitantemente (STJ REsp 576.081/SP). Caberá, portanto, ao credor fiduciário optar pelo ajuizamento de apenas uma delas.

Na esmagadora maioria dos casos, o mutuante prefere ingressar com a ação de busca e apreensão porque é muito mais vantajosa e eficiente do que propor uma execução.

Vamos assim imaginar que o Banco “X” ingressou com uma ação de busca e apreensão contra Antônio. Vejamos abaixo o que acontece:

 

Concessão da liminar

O juiz concederá a busca e apreensão de forma liminar (sem ouvir o devedor), desde que comprovada a mora ou o inadimplemento do devedor (art. 3º do DL 911/69).

 

Possibilidade de pagamento integral da dívida

No prazo de 5 dias após o cumprimento da liminar (apreensão do bem), o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus (§ 2º do art. 3º do DL 911/69).

Veja o dispositivo legal:

Art. 3º (...)

§ 1º Cinco dias após executada a liminar mencionada no caput, consolidar-se-ão a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre do ônus da propriedade fiduciária. (Redação dada pela Lei 10.931/2004)

§ 2º No prazo do § 1º, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus. (Redação dada pela Lei 10.931/2004)

 

O que se entende por “integralidade da dívida pendente”?

Todo o débito.

Nos contratos firmados na vigência da Lei 10.931/2004, compete ao devedor, no prazo de 5 (cinco) dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida - entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária.

STJ. 2ª Seção. REsp 1.418.593-MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 14/5/2014 (recurso repetitivo) (Info 540).

 

Resposta (contestação)

No prazo de 15 dias após o cumprimento da liminar (apreensão do bem), o devedor fiduciante apresentará resposta (uma espécie de contestação).

Obs1: a resposta poderá ser apresentada ainda que o devedor tenha decidido pagar a integralidade da dívida, caso entenda ter havido pagamento a maior e deseje a restituição.

Obs2: nesta defesa apresentada pelo devedor, é possível que ele invoque a ilegalidade das cláusulas contratuais (ex: juros remuneratórios abusivos). Se ficar provado que o contrato era abusivo, isso justificaria o inadimplemento e descaracterizaria a mora.

 

Qual é o termo inicial para a contagem desse prazo de 15 dias: o dia em que for executada a medida liminar (apreensão do bem) ou a data da juntada do mandado de citação cumprido?

Data da juntada aos autos do mandado de citação cumprido.

A redação do DL nº 911/1969 dá a entender que o prazo para a resposta seria contado da execução da liminar. Veja:

Art. 3º (...)

§ 3º O devedor fiduciante apresentará resposta no prazo de quinze dias da execução da liminar.

 

O STJ, contudo, afirma que este prazo de resposta não pode ser contado a partir da execução da liminar. Isso porque o juiz concede a busca e apreensão de forma liminar, ou seja, sem ouvir o devedor.

Desse modo, é indispensável que seja realizado um ato formal de citação do devedor, sendo isso imprescindível ao desenvolvimento válido e regular do processo, visto que somente a perfeita angularização da relação processual é capaz de garantir à parte demandada o pleno exercício do contraditório.

Assim, concedida a liminar inaudita altera parte, cumpre ao magistrado expedir um mandado, que tem dupla finalidade:

1) autorizar a busca e apreensão do bem;

2) promover a citação do réu.

 

No mandado constará o prazo de 15 dias, que começará a ser contado da sua juntada aos autos.

Nesse sentido, decidiu o STJ:

Em ação de busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente, o termo inicial para a contagem do prazo de 15 dias para o oferecimento de resposta pelo devedor fiduciante é a data de juntada aos autos do mandado de citação devidamente cumprido (e não a data da execução da medida liminar).

O mandado de busca e apreensão/citação veicula, simultaneamente, a comunicação ao devedor acerca da retomada do bem alienado fiduciariamente e sua citação, daí decorrendo dois prazos diversos:

a) de 5 dias, contados da execução da liminar, para o pagamento da dívida; e

b) de 15 dias, a contar da juntada do mandado aos autos, para o oferecimento de resposta.

STJ. 3ª Turma. REsp 1321052-MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 16/8/2016 (Info 588).

 

O entendimento do Tribunal encontra respaldo na doutrina especializada:

“(...) o termo inicial para a contagem do prazo de 15 dias não é a 'execução da liminar', tendo-se em conta a necessidade de interpretar-se o art. 3º, § 3º do Dec.-lei 911/1969 sistematicamente com as regras insculpidas no Código de Processo Civil (macrossistema instrumental), (...)

Conclui-se, portanto, que a contagem do prazo de quinze dias para oferecimento de resposta, em ação especial de busca e apreensão fundada em propriedade fiduciária tem o dies a quo a partir da juntada aos autos do mandado liminar (e citatório) devidamente cumprido, excluindo-se, para tanto, o dia do começo (primeiro dia útil após), incluindo o do vencimento.” (FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Ação de busca e apreensão em propriedade fiduciária. São Paulo: RT, 2005, p. 153-154).

 

Mas o devedor pode apresentar a contestação antes da execução da medida liminar?

SIM. É possível a apresentação da contestação antes da execução da medida liminar. Não se pode falar que essa apresentação seja extemporânea ou prematura. Assim, não há necessidade de se desentranhar essa peça.

 

E qual seria o objetivo de o devedor se antecipar e apresentar logo a contestação?

O devedor poderia fazer isso com o objetivo de tentar evitar que o juiz concedesse a medida liminar de busca e apreensão.

 

Essa tentativa do devedor terá êxito?

NÃO. Isso porque o STJ entende que, mesmo se o devedor apresentar a contestação antes da execução da medida liminar, essa resposta somente será analisada pelo juiz após o cumprimento da medida.

 

Qual é a razão disso?

Porque o objetivo do procedimento do DL 911/69 é ser o mais célere e efetivo para o credor.

Conforme vimos acima, o termo inicial da contagem do prazo para contestação é a execução da medida liminar. Trata-se de uma escolha do legislador com o objetivo de assegurar ao credor fiduciário com garantia real uma resposta satisfativa rápida em caso de mora ou inadimplemento por parte do devedor fiduciante. É essa agilidade do procedimento especial do DL 911/1969 que faz com que o instituto da alienação fiduciária seja uma opção vantajosa tanto para o consumidor, que conta com melhores condições de concessão de crédito (taxas e encargos), quanto para o agente financeiro, por meio da facilitação dos mecanismos de recuperação do bem em caso de inadimplemento.

Se houver morosidade no deferimento de tutela satisfativa voltada à entrega do bem alienado ao credor fiduciário, isso fará com que a concessão de crédito (empréstimo) aos consumidores fique mais difícil e cara, considerando que o banco saberá que terá dificuldades de recuperar o bem em caso de inadimplemento. Logo, ele pensará duas vezes antes de assumir esse risco. Por outro lado, se a recuperação do bem é facilitada em caso de inadimplemento, isso fará com que a concessão de novos empréstimos seja estimulada.

Não há dúvidas, portanto, de que a legislação especial foi estruturada com um procedimento especial que prevê, em um primeiro momento, a recuperação do bem e, em uma segunda etapa, a possibilidade de purgação da mora e a análise da defesa.

Além disso, está absolutamente sedimentada a jurisprudência do STJ no sentido de que, estando demonstrada a mora/inadimplemento, o deferimento na medida liminar de busca e apreensão é obrigatório.

Nesse contexto, condicionar o cumprimento da medida liminar de busca e apreensão à apreciação da contestação, ainda que limitada a eventuais matérias cognoscíveis de ofício e que não demandem dilação probatória (considerada ainda a subjetividade na delimitação dessas matérias), causaria enorme insegurança jurídica e ameaça à efetividade do procedimento.

 

 

 

Mas e se o credor ajuizou essa busca e apreensão de forma abusiva?

O sistema dispõe de mecanismos para coibir e punir eventual abuso ou negligência do credor fiduciário. Isso porque o DL 911/69 prevê o pagamento de multa em favor do devedor fiduciante na hipótese de improcedência da ação de busca e apreensão, além da responsabilidade do credor fiduciário por perdas e danos:

Art. 3º (...)

§ 6º Na sentença que decretar a improcedência da ação de busca e apreensão, o juiz condenará o credor fiduciário ao pagamento de multa, em favor do devedor fiduciante, equivalente a cinquenta por cento do valor originalmente financiado, devidamente atualizado, caso o bem já tenha sido alienado.

§ 7º A multa mencionada no § 6º não exclui a responsabilidade do credor fiduciário por perdas e danos.

 

Em suma:

Na ação de busca e apreensão de que trata o DL 911/1969, a análise da contestação somente deve ocorrer após a execução da medida liminar.

STJ. 2ª Seção. REsp 1.892.589-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. Acd. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 16/09/2021 (Recurso Repetitivo – Tema 1040) (Info 710).



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