segunda-feira, 25 de junho de 2018

Foro por prerrogativa de função: panorama atual



NOÇÕES GERAIS
Como podemos conceituar foro por prerrogativa de função?
Trata-se de uma prerrogativa prevista pela Constituição segundo a qual as pessoas ocupantes de alguns cargos ou funções, somente serão processadas e julgadas criminalmente (não engloba processos cíveis) por determinados Tribunais (TJ, TRF, STJ, STF).

Razão de existência
O foro por prerrogativa de função existe porque se entende que, em virtude de determinadas pessoas ocuparem cargos ou funções importantes e de destaque, somente podem ter um julgamento imparcial e livre de pressões se forem julgadas por órgãos colegiados que componham a cúpula do Poder Judiciário.
Ex: um Desembargador, caso pratique um delito, não deve ser julgado por um juiz singular, nem pelo Tribunal do qual faz parte, mas sim pelo STJ, órgão de cúpula do Poder Judiciário e, em tese, mais adequado, para, no caso concreto, exercer a atividade com maior imparcialidade.
Ex2: caso um Senador da República cometa um crime, ele será julgado pelo STF.

Foro por prerrogativa de função é o mesmo que foro privilegiado?
Tecnicamente, não.
Tourinho Filho explica que o foro por prerrogativa de função é estabelecido em razão do cargo ou função desempenhada pelo indivíduo. Trata-se, portanto, de uma garantia inerente à função. Ex: foro privativo dos Deputados Federais no STF. Já o chamado “foro privilegiado” é aquele previsto, não por causa do cargo ou da função, mas sim como uma espécie de homenagem, deferência, privilégio à pessoa. Ex: foro privilegiado para condes e barões.
Todavia, o próprio STF utiliza em seus julgamentos a expressão “foro privilegiado” como sendo sinônimo de “foro por prerrogativa de função”.
Por essa razão, também utilizarei aqui indistintamente as terminologias como sendo

Onde estão previstas as regras sobre o foro por prerrogativa de função?
Regra: somente a Constituição Federal pode prever casos de foro por prerrogativa de função. Exs: art. 102, I, “b” e “c”; art. 105, I, “a”.
Exceção: o art. 125, caput e § 1º, da CF/88 autorizam que as Constituições Estaduais prevejam hipóteses de foro por prerrogativa de função nos Tribunais de Justiça, ou seja, situações nas quais determinadas autoridades serão julgadas originalmente pelo TJ:
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
§ 1º A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.

Vale ressaltar, no entanto, que a previsão da Constituição Estadual somente será válida se respeitar o princípio da simetria com a Constituição Federal. Isso significa que a autoridade estadual que “receber” o foro por prerrogativa na Constituição Estadual deve ser equivalente a uma autoridade federal que tenha foro por prerrogativa de função na Constituição Federal.
Ex1: a Constituição Estadual poderá prever que o Vice-Governador será julgado pelo TJ. Isso porque a autoridade “equivalente” em âmbito federal (Vice-Presidente da República) possui foro por prerrogativa de função no STF (art. 102, I, “b”, da CF/88). Logo, foi respeitado o princípio da simetria.
Ex2: a Constituição Estadual não pode prever foro por prerrogativa de função para os Delegados de Polícia considerando que não há previsão semelhante para os Delegados Federais na Constituição Federal (STF ADI 2587).

Hipóteses de foro por prerrogativa de função previstas na CF/88:
AUTORIDADE
FORO COMPETENTE
Presidente e Vice-Presidente da República
STF
Deputados Federais e Senadores
Ministros do STF
Procurador-Geral da República
Ministros de Estado
Advogado-Geral da União
Comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica
Ministros do STJ, STM, TST, TSE
Ministros do TCU
Chefes de missão diplomática de caráter permanente
Governadores
STJ
Desembargadores (TJ, TRF, TRT)
Membros dos TRE
Conselheiros dos Tribunais de Contas
Membros do MPU que oficiem perante tribunais
Juízes Federais, Juízes Militares e Juízes do Trabalho
TRF ou TRE
Membros do MPU que atuam na 1ª instância
Juízes de Direito
TJ
Promotores e Procuradores de Justiça
Prefeitos
TJ, TRF ou TRE

Exemplos de autoridades que dependem da Constituição Estadual (algumas Constituições preveem que a competência para julgar os crimes por elas praticados é do Tribunal de Justiça):
• Vice-governadores;
• Vereadores.

Se a Constituição estadual não trouxer nenhuma regra, tais autoridades serão julgadas em 1ª instância.

DECISÃO DO STF RESTRINGINDO O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Foro prerrogativa de função extremamente ampliado
Conforme explica o Min. Luís Roberto Barroso, a CF/88 prevê que um conjunto amplíssimo de agentes públicos responda por crimes comuns perante tribunais.
Estima-se que cerca de 37 mil autoridades detenham a prerrogativa no país.
Não há, no Direito Comparado, nenhuma democracia consolidada que consagre a prerrogativa de foro com abrangência comparável à brasileira.
No Reino Unido, na Alemanha, nos Estados Unidos e no Canadá nem existe foro privilegiado. Entre os países que adotam, a maioria o institui para um rol reduzido de autoridades. Na Itália, por exemplo, a prerrogativa de foro se aplica somente ao Presidente da República.
Em Portugal, são três as autoridades que detêm foro privilegiado: o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro.

Disfuncionalidade do foro privilegiado
Este modelo amplo de foro por prerrogativa de função tradicionalmente adotava acarreta duas consequências graves e indesejáveis para a justiça e para o STF:
1ª) Afasta o Tribunal do seu verdadeiro papel, que é o de Suprema Corte, e não o de tribunal criminal de primeiro grau. Tribunais superiores, como o STF, foram concebidos para serem tribunais de teses jurídicas, e não para o julgamento de fatos e provas. Como regra, o juízo de primeiro grau tem melhores condições para conduzir a instrução processual, tanto por estar mais próximo dos fatos e das provas, quanto por ser mais bem aparelhado para processar tais demandas com a devida celeridade, conduzindo ordinariamente a realização de interrogatórios, depoimentos, produção de provas periciais etc.
2ª) Contribui para a ineficiência do sistema de justiça criminal. O STF não tem sido capaz de julgar de maneira adequada e com a devida celeridade os casos abarcados pela prerrogativa. O foro especial, na sua extensão atual, contribui para o congestionamento dos tribunais e para tornar ainda mais morosa a tramitação dos processos e mais raros os julgamentos e as condenações.

Foro privativo no STF e ausência de duplo grau de jurisdição
Vale ressaltar, ainda, que as autoridades com foro por prerrogativa de função no STF ficam sujeitas a julgamento por uma única instância, de forma que não gozam de duplo grau de jurisdição.
Esse modelo vai de encontro com tratados internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil é signatário. Tanto a Convenção Americana de Direitos Humanos, quanto o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos asseguram o “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”. Isso não ocorre com quem tem foro privilegiado no STF. Após o julgamento pela Corte, não há recurso para outro Tribunal.

Quando inicia e quando termina o foro por prerrogativa de função dos Deputados Federais e Senadores?
O direito ao foro por prerrogativa de função inicia-se com a diplomação do Deputado Federal ou Senador e somente se encerra com o término do mandato.
Assim, pelo entendimento que era tradicionalmente adotado pelo STF, se determinado indivíduo estivesse respondendo a uma ação penal em 1ª instância, caso ele fosse eleito Deputado Federal, no mesmo dia da sua diplomação, cessaria a competência do juízo de 1ª instância e o processo criminal deveria ser remetido ao STF para ali ser julgado.
Vale ressaltar que a diplomação é o ato pelo qual a Justiça Eleitoral atesta quem são os candidatos eleitos e os respectivos suplentes. A diplomação é normalmente marcada para dezembro e a posse somente ocorre alguns dias depois, em janeiro.

Questão de ordem na AP 937
Diante desse cenário, o Min. Luís Roberto Barroso, antes do julgamento de uma ação penal que tramitava no Supremo, suscitou, em uma questão de ordem, duas propostas.
Em outras palavras, o Ministro disse o seguinte: antes de discutirmos este processo, gostaria de propor que o Plenário do STF analisasse duas questões que envolvem foro por prerrogativa de função.

Primeiro tema
O Min. Barroso propôs a seguinte reflexão:
Vamos mudar a interpretação que até hoje era dada ao art. 102, I, “b”, da CF/88 e passar a entender que o foro por prerrogativa de função dos Deputados Federais e Senadores deve se aplicar apenas a crimes cometidos durante o exercício do cargo e desde que relacionados com a função desempenhada?

Segundo tema
O Ministro também propôs uma segunda discussão:
Vamos definir um determinado momento processual (ex: fim da instrução) a partir do qual mesmo que o réu perca o foro privilegiado no STF (exs: renunciou, não se reelegeu etc), ainda assim ele continuará sendo julgado pelo Supremo?

O que os Ministros do STF decidiram? Eles concordaram com as duas proposições feitas pelo Min. Barroso?
SIM (AP 937 QO). Vamos entender resumidamente os argumentos acolhidos pelo STF.

SENTIDO E ALCANCE DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Razão que justificou a existência do foro privilegiado
Na origem, a prerrogativa de foro tinha como fundamento a necessidade de assegurar a independência de órgãos e o livre exercício de cargos constitucionalmente relevantes.
Entendia-se que a atribuição da competência originária para o julgamento dos ocupantes de tais cargos a tribunais de maior hierarquia evitaria ou reduziria a utilização política do processo penal contra titulares de mandato eletivo ou altas autoridades, em prejuízo do desempenho de suas funções.
Assim, o foro privilegiado foi pensado para ser um instrumento destinado a garantir o livre exercício de certas funções públicas, e não para acobertar a pessoa ocupante do cargo. Por essa razão, não faz sentido estendê-lo aos crimes cometidos antes da investidura nesse cargo e aos que, cometidos após a investidura, sejam estranhos ao exercício de suas funções.
Se o foro por prerrogativa de função for amplo e envolver qualquer crime (ex: um acidente de trânsito) ele se torna um privilégio pessoal que não está relacionado com a proteção do cargo.

Normas que estabeleçam exceções ao princípio da igualdade devem ser interpretadas restritivamente
A existência do foro por prerrogativa de função representa uma exceção ao princípio republicano e ao princípio da igualdade. Tais princípios, contudo, gozam de preferência axiológica em relação às demais disposições constitucionais. Daí a necessidade de que normas constitucionais que excepcionem esses princípios – como aquelas que introduzem o foro por prerrogativa de função – sejam interpretadas sempre de forma restritiva.

Redução teleológica
O foro especial está previsto em diversas disposições da Carta de 1988.
O art. 102, I, “b” e “c”, por exemplo, estabelece a competência do STF para “processar e julgar, originariamente, (...) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República”, bem como “os Ministros de Estado e os Comandantes Militares, os membros dos Tribunais Superiores, os membros do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente”.
O art. 53, § 1º determina que “Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”.
Embora se viesse interpretando tais dispositivos de forma literal, ou seja, no sentido de que o foro privilegiado abrangeria todos os crimes comuns, é possível e desejável atribuir ao texto normativo uma acepção mais restritiva, com base na teleologia do instituto e nos demais elementos de interpretação constitucional.
Trata-se da chamada “redução teleológica” (Karl Larenz) ou, de forma mais geral, da aplicação da técnica da “dissociação” (Riccardo Guastini), que consiste em reduzir o campo de aplicação de uma disposição normativa a somente uma ou algumas das situações de fato previstas por ela segundo uma interpretação literal, que se dá para adequá-la à finalidade da norma. Nessa operação, o intérprete identifica uma lacuna oculta (ou axiológica) e a corrige mediante a inclusão de uma exceção não explícita no enunciado normativo, mas extraída de sua própria teleologia. Como resultado, a norma passa a se aplicar apenas a parte dos fatos por ela regulados.
A extração de “cláusulas de exceção” implícitas serve, assim, para concretizar o fim e o sentido da norma e do sistema normativo em geral.

Outros exemplos em que se aplicou a técnica da “redução teleológica”:
Ex1: o art. 102, I, “a”, da CF/88 prevê que compete ao STF processar e julgar “a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual”. Embora o dispositivo não traga qualquer restrição temporal, o STF consagrou entendimento de que não cabe ADI contra lei anterior à Constituição de 1988, porque, ocorrendo incompatibilidade entre ato normativo infraconstitucional e a Constituição superveniente, fica ele revogado (não recepção).
Ex2: o art. 102, I, “f” prevê que competente ao STF julgar “as causas e os conflitos entre a União e os Estados”. O Supremo entendeu que essa competência não abarca todo e qualquer conflito entre entes federados, mas apenas aqueles capazes de afetar o pacto federativo.
Ex3: o art. 102, I, “r” prevê que compete ao STF julgar “as ações contra o Conselho Nacional de Justiça”. Em uma intepretação literal, essa competência abrangeria toda e qualquer ação contra o CNJ, sem exclusão. No entanto, segundo a jurisprudência do Tribunal, somente estão sujeitas a julgamento perante o STF o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas data e o habeas corpus, pois somente nessas situações o CNJ terá legitimidade passiva ad causam. E mais: ainda quando se trate de MS, o Supremo só reconhece sua competência quando a ação se voltar contra ato positivo do CNJ.
Ex4: o art. 102, I, “n” prevê que compete ao STF julgar a “ação em que todos os membros da magistratura sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados”. Em relação à primeira parte do dispositivo, o STF entende que a competência só se aplica quando a matéria versada na causa diz respeito a interesse privativo da magistratura, não envolvendo interesses comuns a outros servidores. Em relação à segunda parte do preceito, entende-se que o impedimento e a suspeição que autorizam o julgamento de ação originária pelo STF pressupõem a manifestação expressa dos membros do Tribunal competente, em princípio, para o julgamento da causa.
Em todos esses casos (e em muitos outros), entendeu-se possível a redução teleológica do escopo das competências originárias do STF pela via interpretativa.

Conclusão quanto à primeira proposição:
As normas da Constituição de 1988 que estabelecem as hipóteses de foro por prerrogativa de função devem ser interpretadas restritivamente, aplicando-se apenas aos crimes que tenham sido praticados durante o exercício do cargo e em razão dele.
Assim, por exemplo, se o crime foi praticado antes de o indivíduo ser diplomado como Deputado Federal, não se justifica a competência do STF, devendo ele ser julgado pela 1ª instância mesmo ocupando o cargo de parlamentar federal.
Além disso, mesmo que o crime tenha sido cometido após a investidura no mandato, se o delito não apresentar relação direta com as funções exercidas, também não haverá foro privilegiado.
Foi fixada, portanto, a seguinte tese:
O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018.

CRIMES COMETIDOS POR DEPUTADO FEDERAL OU SENADOR
Situação
Competência
Crime cometido antes da diplomação como Deputado ou Senador
Juízo de 1ª instância
Crime cometido depois da diplomação (durante o exercício do cargo), mas o delito não tem relação com as funções desempenhadas.
Ex: embriaguez ao volante.
Crime cometido depois da diplomação (durante o exercício do cargo) e o delito está relacionado com as funções desempenhadas.
Ex: corrupção passiva.
STF

MOMENTO DA FIXAÇÃO DEFINITIVA DA COMPETÊNCIA DO STF
Se o parlamentar federal (Deputado Federal ou Senador) está respondendo a uma ação penal no STF e, antes de ser julgado, ele deixe de ocupar o cargo (exs: renunciou, não se reelegeu etc) cessa o foro por prerrogativa de função e o processo deverá ser remetido para julgamento em 1ª instância?
O STF decidiu estabelecer uma regra para situações como essa:
• Se o réu deixou de ocupar o cargo antes de a instrução terminar: cessa a competência do STF e o processo deve ser remetido para a 1ª instância.
•  Se o réu deixou de ocupar o cargo depois de a instrução se encerrar: o STF permanece sendo competente para julgar a ação penal.
Assim, o STF estabeleceu um marco temporal a partir do qual a competência para processar e julgar ações penais – seja do STF ou de qualquer outro órgão jurisdicional – não será mais afetada em razão de o agente deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo (exs: renúncia, não reeleição, eleição para cargo diverso).

Por que foi necessário estabelecer este limite temporal?
Porque era comum haver um constante deslocamento da competência das ações penais de competência originária do STF (um verdadeiro “sobe-e-desce” processual).
Não foram raros os casos em que o réu procurou se eleger a fim de mudar o órgão jurisdicional competente, passando do primeiro grau para o STF. De outro lado, alguns deixaram de candidatar à reeleição, com o objetivo inverso, qual seja, passar a competência do STF para o juízo de 1ª instância, ganhando tempo com isso. E houve também os que renunciaram quando o julgamento estava próximo de ser pautado no STF.
Isso gerava, muitas vezes, o retardamento dos inquéritos e ações penais, com evidente prejuízo para a eficácia, a racionalidade e a credibilidade do sistema penal. Houve inclusive casos de prescrição em razão dessas mudanças.

Quando se considera encerrada a instrução, para os fins acima explicados?
Considera-se encerrada a instrução processual com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais.
Nesse momento fica prorrogada a competência do juízo para julgar a ação penal mesmo que ocorra alguma mudança no cargo ocupado pelo réu.
Desse modo, mesmo que o agente público venha a ocupar outro cargo ou deixe o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo, isso não acarretará modificação de competência.
Ex: Pedro, Deputado Federal, respondia ação penal no STF; foi publicado despacho intimando o MP para apresentação de alegações finais; uma semana depois, o réu foi diplomado Prefeito; mesmo Pedro tendo deixado de ser Deputado Federal, o STF continuará sendo competente para julgar o processo criminal contra ele.

Por que se escolheu esse critério do encerramento da instrução?
Por três razões:
1ª) Trata-se de um marco temporal objetivo, de fácil aferição, e que deixa pouca margem de manipulação para os investigados e réus e afasta a discricionariedade da decisão dos tribunais de declínio de competência;
2ª) Este critério privilegia o princípio da identidade física do juiz, ao valorizar o contato do magistrado julgador com as provas produzidas na ação penal;
3ª) Já existia precedente do STF já adotando este marco temporal.

Tese fixada quanto à segunda proposição:
Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.
STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018.

Assim, se o Deputado Federal ou Senador estiver respondendo um processo criminal no STF e chegar ao fim o seu mandato, cessa a competência do STF para julgar esta ação penal, salvo se a instrução processual já estiver concluída, hipótese na qual haverá a perpetuação da competência e o STF deverá julgar o réu mesmo ele não sendo mais um parlamentar federal.

Essas duas conclusões definidas na questão de ordem podem ser aplicadas a partir de quando?
Já estão sendo aplicadas.
O STF decidiu que essa nova linha interpretativa deve se aplicar imediatamente aos processos em curso, ou seja, já vale a partir da data do julgamento da questão de ordem (03/05/2018).
Vale ressaltar, no entanto, que todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e pelos demais juízos antes da questão de ordem, com base na jurisprudência anterior, devem ser considerados válidos.

OBSERVAÇÕES FINAIS
Investigações criminais envolvendo Deputados Federais e Senadores ANTES da AP 937 QO
Antes da decisão da AP 937 QO, as investigações envolvendo Deputado Federal ou Senador somente poderiam ser iniciadas após autorização formal do STF.
Assim, por exemplo, se, a autoridade policial ou o membro do Ministério Público tivesse conhecimento de indícios de crime envolvendo Deputado Federal ou Senador, o Delegado e o membro do MP não poderiam iniciar uma investigação contra o parlamentar federal.
O que eles deveriam fazer: remeter esses indícios à Procuradoria Geral da República para que esta fizesse requerimento pedindo a autorização para a instauração de investigação criminal envolvendo essa autoridade. Essa investigação era chamada de inquérito criminal (não era inquérito "policial") e deveria tramitar no STF, sob a supervisão judicial de um Ministro-Relator que iria autorizar as diligências que se fizessem necessárias.
Em suma, o que eu quero dizer: a autoridade policial e o MP não podiam investigar eventuais crimes cometidos por Deputados Federais e Senadores, salvo se houvesse uma prévia autorização do STF.

Investigações criminais envolvendo Deputados Federais e Senadores DEPOIS da AP 937 QO
Situação
Atribuição para investigar
Se o crime foi praticado antes da diplomação
Polícia (Civil ou Federal) ou MP.
Não há necessidade de autorização do STF
Medidas cautelares são deferidas pelo juízo de 1ª instância (ex: quebra de sigilo)
Se o crime foi praticado depois da diplomação (durante o exercício do cargo), mas o delito não tem relação com as funções desempenhadas.
Ex: homicídio culposo no trânsito.
Se o crime foi praticado depois da diplomação (durante o exercício do cargo) e o delito está relacionado com as funções desempenhadas.
Ex: corrupção passiva.
Polícia Federal e Procuradoria Geral da República, com supervisão judicial do STF.
Há necessidade de autorização do STF para o início das investigações.

O entendimento que restringe o foro por prerrogativa de função vale para outras hipóteses de foro privilegiado ou apenas para os Deputados Federais e Senadores?
Vale para outros casos de foro por prerrogativa de função. Foi o que decidiu o próprio STF no julgamento do Inq 4703 QO/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 12/06/2018 no qual afirmou que o entendimento vale também para Ministros de Estado.
O STJ também decidiu que a restrição do foro deve alcançar Governadores e Conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais. Explico.
O art. 105, I, “a”, da CF/88 prevê que compete ao STJ julgar os crimes praticados por Governadores de Estado e por Conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;

A Corte Especial do STJ, seguindo o mesmo raciocínio do STF, limitou a amplitude do art. 105, I, “a”, da CF/88 e decidiu que:
O foro por prerrogativa de função no caso de Governadores e Conselheiros de Tribunais de Contas dos Estados deve ficar restrito aos fatos ocorridos durante o exercício do cargo e em razão deste.
Assim, o STJ é competente para julgar os crimes praticados pelos Governadores e pelos Conselheiros de Tribunais de Contas somente se estes delitos tiverem sido praticados durante o exercício do cargo e em razão deste.
STJ. Corte Especial. APn 857/DF, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, julgado em 20/06/2018.
STJ. Corte Especial. APn 866/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 20/06/2018.

O art. 105, I, “a”, da CF/88 prevê que os Desembargadores dos Tribunais de Justiça são julgados criminalmente pelo STJ. O entendimento acima exposto (que restringiu o foro para crimes relacionados com o cargo) é aplicado também para os Desembargadores dos Tribunais de Justiça? Se um Desembargador praticar crime que não esteja relacionado com o exercício de suas funções (ex: lesão corporal contra a esposa), ele será julgado pelo juízo de 1ª instância?
NÃO.
Os Desembargadores dos Tribunais de Justiça continuam sendo julgados pelo STJ mesmo que o crime não esteja relacionado com as suas funções.
Assim, o STJ continua sendo competente para julgar quaisquer crimes imputados a Desembargadores, não apenas os que tenham relação com o exercício do cargo.
STJ. APn 878/DF QO, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 30/05/2016.

É uma espécie de “exceção” ao entendimento do STJ que restringe o foro por prerrogativa de função.
O STJ entendeu que haveria um risco à imparcialidade caso o juiz de 1º instância julgasse um Desembargador (autoridade que, sob o aspecto administrativo, está em uma posição hierarquicamente superior ao juiz).
Veja as palavras do Min. Relator Benedito Gonçalves:
“É que, em se tratando de acusado e de julgador, ambos, membros da Magistratura nacional, pode-se afirmar que a prerrogativa de foro não se justifica apenas para que o acusado pudesse exercer suas atividades funcionais de forma livre e independente, pois é preciso também que o julgador possa reunir as condições necessárias ao desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial.
Esta necessidade (de que o julgador possa reunir as condições necessárias ao desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial) não se revela como um privilégio do julgador ou do acusado, mas como uma condição para que se realize justiça criminal. Ser julgado por juiz com duvidosa condição de se posicionar de forma imparcial, afinal, violaria a pretensão de realização de justiça criminal de forma isonômica e republicana.
A partir desta forma de colocação do problema, pode-se argumentar que, caso Desembargadores, acusados da prática de qualquer crime (com ou sem relação com o cargo de Desembargador) viessem a ser julgados por juiz de primeiro grau vinculado ao Tribunal ao qual ambos pertencem, se criaria, em alguma medida, um embaraço ao juiz de carreira.”

O caso concreto enfrentado pelo STJ envolvia um Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que estava sendo acusado de ter, supostamente, praticado lesão corporal contra a mãe e a irmã.
Este Desembargador deve ser julgado pelo STJ (e não pelo Juiz de Direito de 1ª instância).

O Min. João Otávio de Noronha acompanhou o Relator argumentando que:
“Por mais que acredite na lisura dos juízes brasileiros, seria muito constrangedor para esse juiz em determinada situação votar ou condenar um superior hierárquico, que votou ou votará nele para uma promoção. Sem considerar outras hipóteses. Eu não daria essa carta em branco. Não assinaria um cheque em branco para os juízes nessa hipótese. Eu prefiro a cautela. Não quero ver juiz perseguido nem promovido por favores concedidos que pode gerar até a impunidade. Minha preocupação é sobretudo a impunidade, vamos ver Estado em que a pressão no juiz é muito grande. Juiz que tem vínculo com investigado não pode julgar. É uma blindagem que se faz à independência da magistratura. O juiz que está subordinado a um investigado não deve julgá-lo.”

No mesmo sentido foi o voto do Min. Herman Benjamin:
“Para um juiz, a carreira é o fundamento da sua existência profissional. E não vejo como um juiz possa julgar o corregedor do seu Tribunal. O foro existe para o réu e em favor da sociedade. É garantia implícita."

Votos vencidos
Ficaram vencidos os Ministros Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques e Maria Thereza de Assis Moura, que defendiam a tese de que os Desembargadores devem receber o mesmo tratamento que as demais autoridades e que se o delito não estiver relacionado com as funções, eles deveriam ser julgados em 1ª instância.

O caso analisado pelo STJ envolvia um Desembargador do Tribunal de Justiça. Esse entendimento deverá ser aplicado também para os membros dos TRFs (“Desembargadores Federais), para os membros dos TRTs (“Desembargadores Federais do Trabalho”) e para os membros dos TREs? Essas autoridades também serão julgadas pelo STJ mesmo que o crime tenha sido praticado fora do exercício do cargo e mesmo que o delito não esteja relacionado com as funções desempenhadas?
Essa questão não foi solucionada ainda de forma expressa pelo STJ. Isso porque alguns Ministros afirmaram que estavam mantendo o foro porque entendiam que não era prudente um juiz julgar o processo criminal de um Desembargador ao qual está vinculado hierarquicamente. Logo, para esses Ministros, um dos argumentos principais para se manter a competência do STJ nesses casos está no fato de que o Juiz não teria a imparcialidade necessária para julgar um Desembargador que pertence ao mesmo Tribunal que ele (e que é seu superior).
Ocorre que, se um membro do TRT (“Desembargador Federal do Trabalho”) praticar um crime, ele não seria julgado por um Juiz do Trabalho, mas sim por um Juiz de Direito ou por um Juiz Federal. Isso porque o Juiz do Trabalho não tem jurisdição criminal. O “Desembargador Federal do Trabalho” não tem qualquer ingerência sobre o Juiz de Direito ou sobre o Juiz Federal, considerando que fazem parte de Tribunais diferentes. Desse modo, esse argumento do STJ não se aplicaria neste caso e, em tese, não haveria qualquer empecilho de o “Desembargador Federal do Trabalho” ser julgado em 1ª instância.
O Min. João Otávio de Noronha, em trecho de seu voto, deu a entender que poderia, em tese, adotar essa distinção:
 “A questão envolvendo o Judiciário tem que ser caso a caso. Não há problema nenhum de um juiz do Trabalho, por exemplo, ser julgado por um juiz de primeiro grau. Mas há problema um juiz de primeiro grau julgar um desembargador que o promoveu ou que reforma suas decisões”.

Por outro lado, alguns Ministros demonstraram certo incômodo de se criar uma regra de foro para os Desembargadores dos Tribunais de Justiça e outra para os “Desembargadores Federais do Trabalho”.
Assim, é preciso aguardar para se ter certeza do caminho que será adotado pelo STJ.

Por enquanto, posso apontar as seguintes conclusões e dúvidas:
• REGRA: as autoridades listadas no art. 105, I, “a”, da CF/88 somente são julgadas pelo STJ em caso de crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. Ex: membro do Tribunal de Contas pratica violência doméstica contra a sua esposa. Será julgado pelo Juiz de Direito de 1ª instância.
• EXCEÇÃO: os Desembargadores dos Tribunais de Justiça são julgados pelo STJ mesmo que o crime não esteja relacionado com as suas funções. Ex: Desembargador pratica violência doméstica contra sua esposa. Será julgado pelo STJ (e não pelo juiz de 1ª instância).

DÚVIDAS:
1) Essa mesma exceção poderá ser aplicada para os membros dos TRFs (“Desembargadores Federais), para os membros dos TRTs (“Desembargadores Federais do Trabalho”) e para os membros dos TREs?
2) Essa mesma exceção poderá ser aplicada para os membros dos TRFs (“Desembargadores Federais), para os membros do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais (e que estão listados no art. 105, I, “a”, da CF/88)?
3) Se o crime praticado pelo Desembargador do Tribunal de Justiça for um “crime federal” (delito de competência da Justiça Federal), ele poderia ser julgado pelo Juiz Federal de 1ª instância, considerando que eles não mantêm qualquer vinculação entre si, já que não fazem parte do mesmo Tribunal?





Print Friendly and PDF