quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Quem julga os crimes praticados por Promotores de Justiça?

 

DECISÃO DO STF RESTRINGINDO O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

Em maio de 2018, o STF decidiu restringir o foro por prerrogativa de função dos Deputados Federais e Senadores.

O art. 53, § 1º e o art. 102, I, “b”, da CF/88 preveem que, em caso de crimes comuns, os Deputados Federais e os Senadores serão julgados pelo STF.

Ocorre que o Supremo conferiu uma interpretação restritiva a esses dispositivos e afirmou o seguinte:

O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.

STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018 (Info 900).

 

Em outras palavras, os Deputados Federais e Senadores somente serão julgados pelo STF se:

· o crime tiver sido praticado durante o exercício do mandato de parlamentar federal; e

· se estiver relacionado com essa função.

 

O entendimento que restringe o foro por prerrogativa de função vale para outras hipóteses de foro privilegiado ou apenas para os Deputados Federais e Senadores?

Vale para outros casos de foro por prerrogativa de função. Foi o que decidiu o próprio STF no julgamento do Inq 4703 QO/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 12/06/2018, no qual afirmou que o entendimento vale também para Ministros de Estado.

O STJ também decidiu que a restrição do foro deve alcançar Governadores e Conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais. Explico.

O art. 105, I, “a”, da CF/88 prevê que compete ao STJ julgar os crimes praticados por Governadores de Estado e por Conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I - processar e julgar, originariamente:

a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;

 

A Corte Especial do STJ, seguindo o mesmo raciocínio do STF, limitou a amplitude do art. 105, I, “a”, da CF/88 e decidiu que:

O foro por prerrogativa de função no caso de Governadores e Conselheiros de Tribunais de Contas dos Estados deve ficar restrito aos fatos ocorridos durante o exercício do cargo e em razão deste.

Assim, o STJ é competente para julgar os crimes praticados pelos Governadores e pelos Conselheiros de Tribunais de Contas somente se estes delitos tiverem sido praticados durante o exercício do cargo e em razão deste.

STJ. Corte Especial. APn 857/DF, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, julgado em 20/06/2018.

STJ. Corte Especial. APn 866/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 20/06/2018.

 

O STJ disse o seguinte:

• O STF, ao analisar o art. 102, I, da CF/88 decidiu restringir o foro por prerrogativa de função para Deputados Federais e Senadores. Em seguida, restringiu também para Ministros de Estado. A partir dessa restrição, tais autoridades somente poderão ter foro no STF em caso de crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.

• Diante dessa decisão do STF, eu (STJ) também irei restringir o foro por prerrogativa de função para as autoridades que estão listadas no art. 105, I, “a”, da CF/88, aplicando o mesmo raciocínio.

• O fato de a regra de competência estar prevista no texto constitucional (art. 105 da CF/88) não pode representar óbice à análise, por este STJ, de sua própria competência, sob pena de se inviabilizar, nos casos como o dos autos, o exercício deste poder-dever básico de todo órgão julgador, impedindo o imprescindível exame deste importante pressuposto de admissibilidade do provimento jurisdicional. Em palavras mais simples, a restrição da competência do art. 105 da CF/88 passa por uma nova intepretação do texto constitucional. A função precípua de interpretação à Constituição Federal é do STF. No entanto, eu (STJ), assim como todo e qualquer magistrado, também tenho a prerrogativa de interpretar as normas jurídicas, inclusive a Constituição da República.

• Além disso, todo juiz é competente para analisar a sua própria competência (“kompetenz-kompetenz”), de forma que eu (STJ) posso interpretar o art. 105 da CF/88 para dizer se sou ou não competente para julgar determinada autoridade, podendo, assim, adotar a mesma restrição construída pelo STF.

• O foro especial no âmbito penal é prerrogativa destinada a assegurar a independência e o livre exercício de determinados cargos e funções de especial importância, isto é, não se trata de privilégio pessoal. O princípio republicano é condição essencial de existência do Estado de Direito e impõe a supressão dos privilégios, devendo ser afastados da interpretação constitucional os princípios e regras contrários à igualdade.

• O art. 105, I, “a”, da CF/88 consubstancia exceção à regra geral de competência, de modo que, partindo-se do pressuposto de que a Constituição é una, sem regras contraditórias, deve ser realizada a interpretação restritiva das exceções, com base na análise sistemática e teleológica da norma.

• As mesmas razões fundamentais (a mesma ratio decidendi) que levaram o STF, ao interpretar o art. 102, I, “b” e “c”, da CF/88, a restringir as hipóteses de foro por prerrogativa de função devem ser também aplicadas ao art. 105, I, “a”.

• Assim, é de se conferir ao art. 105, I, “a”, da CF/88, o mesmo sentido e alcance atribuído pelo STF ao art. 102, I, “b” e “c”, restringindo-se, desse modo, as hipóteses de foro por prerrogativa de função perante o STJ àquelas em que o crime for praticado em razão e durante o exercício do cargo ou função.

 

As hipóteses de foro por prerrogativa de função perante o STJ restringem-se àquelas em que o crime for praticado em razão e durante o exercício do cargo ou função.

STJ. Corte Especial. AgRg na APn 866-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 20/06/2018 (Info 630).

 

DECISÃO QUE RESTRINGE O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NÃO SE APLICA PARA DESEMBARGADORES

O art. 105, I, “a”, da CF/88 prevê que os Desembargadores dos Tribunais de Justiça são julgados criminalmente pelo STJ. O entendimento acima exposto (que restringiu o foro para crimes relacionados com o cargo) é aplicado também para os Desembargadores dos Tribunais de Justiça? Se um Desembargador praticar crime que não esteja relacionado com o exercício de suas funções (ex: lesão corporal contra a esposa), ele será julgado pelo juízo de 1ª instância?

NÃO.

O Superior Tribunal de Justiça é o tribunal competente para o julgamento nas hipóteses em que, não fosse a prerrogativa de foro (art. 105, I, da Constituição Federal), o desembargador acusado houvesse de responder à ação penal perante juiz de primeiro grau vinculado ao mesmo tribunal.

Assim, mesmo que o crime cometido pelo Desembargador não esteja relacionado com as suas funções, ele será julgado pelo STJ se a remessa para a 1ª instância significar que o réu seria julgado por um juiz de primeiro grau vinculado ao mesmo tribunal que o Desembargador.

A manutenção do julgamento no STJ tem por objetivo preservar a isenção (imparcialidade e independência) do órgão julgador.

STJ. Corte Especial. QO na APn 878-DF, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 21/11/2018 (Info 639).

 

É uma espécie de “exceção” ao entendimento do STJ que restringe o foro por prerrogativa de função.

O STJ entendeu que haveria um risco à imparcialidade caso o juiz de 1º instância julgasse um Desembargador (autoridade que, sob o aspecto administrativo, está em uma posição hierarquicamente superior ao juiz).

 

DECISÃO QUE RESTRINGE O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NÃO SE APLICA PARA MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Imagine a seguinte situação hipotética:

João estava de passagem por Aracaju (SE) e ali praticou um crime.

Vale ressaltar que João é Promotor de Justiça no Estado do Ceará. Importante também registrar que o delito por ele praticado não tem nenhuma relação com o cargo ocupado.

O feito foi inicialmente distribuído ao Juízo de Direito da Vara Criminal de Aracaju (1ª instância da Justiça estadual de Sergipe).

O juiz, contudo, reconheceu sua incompetência sob o fundamento de que, nos termos do art. 96, III, da Constituição Federal, compete ao Tribunal de Justiça julgar os crimes praticados por Promotores de Justiça:

Art. 96. Compete privativamente:

(...)

III - aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.

 

Diante disso, o juízo da Vara Criminal de Aracaju declinou da competência em favor do Tribunal de Justiça do Ceará.

O TJ/CE, entretanto, disse o seguinte:

- no julgamento da AP 937 QO/RJ (acima explicada), o STF conferiu nova interpretação (restritiva) ao art. 102, I, alíneas “b” e “c”, da CF/88, fixando a competência daquela Corte para708 julgar os membros do Congresso Nacional exclusivamente quanto aos crimes praticados no exercício e em razão da função pública exercida;

- pelo princípio da simetria, esta interpretação restritiva do foro por prerrogativa de função deve ser aplicada também aqui pelo Tribunal de Justiça;

- logo, como o crime praticado pelo Promotor de Justiça não foi cometido em razão da função pública por ele exercida, a competência seria do juiz de 1ª instância.

- diante disso, o TJ/CE suscitou conflito de competência a ser dirimido pelo STJ, nos termos do art. 105, I, “d”, da CF/88:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I - processar e julgar, originariamente:

(...)

d) os conflitos de competência entre quaisquer tribunais, ressalvado o disposto no art. 102, I, “o”, bem como entre tribunal e juízes a ele não vinculados e entre juízes vinculados a tribunais diversos;

 

O que decidiu o STJ? A competência para julgar o crime praticado pelo Promotor de Justiça é do juízo de 1ª instância ou do Tribunal de Justiça?

Do Tribunal de Justiça.

Compete aos tribunais de justiça estaduais processar e julgar os delitos comuns, não relacionados com o cargo, em tese praticados por Promotores de Justiça.

STJ. 3ª Seção. CC 177.100-CE, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 08/09/2021 (Info 708).

 

De fato, o STF restringiu sua competência para julgar membros do Congresso Nacional somente nas hipóteses de crimes praticados no exercício e em razão da função pública exercida. Todavia, para o Min. Joel Ilan Paciornik, o referido precedente analisou expressamente apenas o foro por prerrogativa de função referente a cargos eletivos, haja vista que o caso concreto tratava de ação penal ajuizada em face de Deputado Federal.

A Corte Especial do STJ, no julgamento da QO na APN 878/DF reconheceu sua competência para julgar Desembargadores acusados da prática de crimes com ou sem relação ao cargo, não identificando simetria com o precedente do STF. Naquela oportunidade, firmou-se a compreensão de que se Desembargadores fossem julgados por Juízo de Primeiro Grau vinculado ao Tribunal ao qual ambos pertencem, criar-se-ia, em alguma medida, um embaraço ao Juiz de carreira responsável pelo julgamento do feito. Em resumo, o STJ apontou discrímen relativamente aos magistrados para manter interpretação ampla quanto ao foro por prerrogativa de função, aplicável para crimes com ou sem relação com o cargo, com fundamento na necessidade de o julgador desempenhar suas atividades judicantes de forma imparcial.

Nesse contexto, considerando que a previsão da prerrogativa de foro da Magistratura e do Ministério Público encontra-se descrita no mesmo dispositivo constitucional (art. 96, III, da CF/88), seria desarrazoado conferir-lhes tratamento diferenciado.

 

DOD Plus – informações extras

No caso hipotético acima narrado, o crime foi praticado em Aracaju (SE). Isso significa que João será julgado pelo Tribunal de Justiça de Sergipe?

NÃO. Ele será julgado pelo Tribunal de Justiça do Ceará. Isso porque ele é membro do Ministério Público do Estado do Ceará.

O Promotor de Justiça será julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado onde atua, mesmo que o crime tenha sido cometido em outro Estado.

 

Se o Promotor de Justiça praticar um crime de competência da Justiça Federal, ele será julgado pelo Tribunal Regional Federal?

NÃO. Será julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado onde atua.

 

E se o Promotor de Justiça praticar um crime eleitoral?

Aí, neste caso, ele será julgado pelo Tribunal Regional Eleitoral.

Trata-se de exceção à regra segundo a qual o Promotor de Justiça é sempre julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado onde atua.

Confira a excelente explicação de Leonardo Barreto sobre o tema:

“No caso de cometimento de infração penal por parte de magistrados e membros do Ministério Público que atuem em primeiro grau, tais autoridades são sempre julgadas pelo Tribunal a que estão vinculados, ressalvada apenas a competência da Justiça Eleitoral (art. 96, III, CF), pouco importando a natureza do crime que cometem.

Em outros termos, se um juiz de direito estadual ou membro do Ministério Público Estadual pratica infração penal, seja ela qual for, será sempre julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado em que atua, ainda que esta infração seja de competência da Justiça Federal (art. 109 CF) e independente do lugar em que ela ocorra. Assim, por exemplo, se um juiz de direito do Estado de Minas Gerais pratica crime que viola bem, serviço ou interesse da União no Estado da Bahia, será julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

De outro lado, se um juiz federal ou membro do Ministério Federal pratica infração penal, seja ela qual for, será sempre julgado pelo Tribunal Regional Federal a que está vinculado, no lugar em que atua, mesmo se a infração for de competência da Justiça Estadual. Por exemplo, se um juiz federal vinculado ao TRF1 e atuante em Brasília/DF pratica contravenção penal em Porto Alegre/RS, será julgado pelo TRF1 (e não pelo TRF4).

Nessa esteira, tem-se que todas estas autoridades serão julgadas pelo respectivo foro por prerrogativa de função na hipótese de cometimento de crime doloso contra a vida, e não pelo Tribunal do Júri.

Por força de ressalva constitucional, se, no entanto, cometerem crime eleitoral, serão julgados pelo TRE do respectivo Estado em que atuam.” (Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 592-593).


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