segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

A casa é de propriedade de um homem e de uma mulher. Ambos moram no imóvel. O homem pratica violência doméstica contra essa mulher, que consegue uma medida protetiva de afastamento do agressor do lar. Essa mulher terá que pagar aluguel por ficar utilizando sozinha o imóvel?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Evandro (24 anos) e Andrea (21 anos) são irmãos. Eles moravam juntos em uma casa deixada para eles pelos pais. Assim, os dois são coproprietários do imóvel.

Determinado dia, houve uma discussão entre eles e Evandro ameaçou Andrea.

Foi instaurado inquérito policial para apurar o fato e a Juíza, entendendo que houve violência doméstica, determinou, dentre outras medidas protetivas, o afastamento provisório de Evandro do lar e a proibição de que mantenha contato com Andrea, nos termos do art. 22, II e III, “a”, da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha):

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

(...)

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

(...)

 

Evandro foi denunciado pelo Ministério Público e encontra-se respondendo processo criminal pela prática do crime de ameaça (art. 147 do CP).

 

Ação proposta por Evandro

Evandro ajuizou, então, ação de extinção de condomínio cumulada com arbitramento de aluguéis.

O autor argumentou que é proprietário de 50% do imóvel e que, diante da impossibilidade de se manter o condomínio (copropriedade sobre o bem), a melhor alternativa é a venda da casa e a divisão do preço entre os proprietários.

Diante disso, pediu:

1) a extinção do condomínio, com a consequente venda judicial do imóvel;

2) a condenação de Andrea ao pagamento de aluguéis, no valor de R$ 2 mil, conforme os valores médios das avaliações apresentadas.

 

Andrea afirmou que concorda com a venda, mas não aceita pagar aluguel enquanto se aguarda o alienação do bem. Isso porque o afastamento de Evandro do lar se deu em virtude de decisão judicial em razão de medida protetiva de urgência.

O TJ negou o pedido de pagamento de aluguéis, fazendo com que Evandro interpusesse recurso especial.

 

O STJ concordou com o pedido de Evandro? É devido o pagamento de aluguéis neste caso?

NÃO.

A jurisprudência do STJ, alicerçada no art. 1.319 do Código Civil, assenta que a utilização ou a fruição da coisa comum indivisa com exclusividade por um dos coproprietários, impedindo o exercício de quaisquer dos atributos da propriedade pelos demais consortes, enseja o pagamento de indenização àqueles que foram privados do regular domínio sobre o bem, tal como o percebimento de aluguéis:

Art. 1.319. Cada condômino responde aos outros pelos frutos que percebeu da coisa e pelo dano que lhe causou.

 

Essa é a regra geral. O caso examinado, contudo, é diferente.

Impor à vítima de violência doméstica e familiar obrigação pecuniária consistente em locativo pelo uso exclusivo e integral do bem comum constituiria proteção insuficiente aos direitos constitucionais da dignidade humana e da igualdade, além de ir contra um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro de promoção do bem de todos sem preconceito de sexo, sobretudo porque serviria de desestímulo a que a mulher buscasse o amparo do Estado para rechaçar a violência contra ela praticada, como assegura a Constituição Federal em seu art. 226, § 8º, a revelar a desproporcionalidade da pretensão indenizatória em tais casos.

A imposição judicial de uma medida protetiva de urgência - que procure cessar a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher e implique o afastamento do agressor do seu lar - constitui motivo legítimo a que se limite o domínio deste sobre o imóvel utilizado como moradia conjuntamente com a vítima, não se evidenciando, assim, eventual enriquecimento sem causa, que legitime o arbitramento de aluguel como forma de indenização pela privação do direito de propriedade do agressor.

Portanto, afigura-se descabido o arbitramento de aluguel, com base no disposto no art. 1.319 do CC/2002, em desfavor da coproprietária vítima de violência doméstica, que, em razão de medida protetiva de urgência decretada judicialmente, detém o uso e gozo exclusivo do imóvel de cotitularidade do agressor, seja pela desproporcionalidade constatada em cotejo com o art. 226, § 8º, da CF/88, seja pela ausência de enriquecimento sem causa (art. 884 do CC/2002).

 

Em suma:

Incabível o arbitramento de aluguel em desfavor da coproprietária vítima de violência doméstica, que, em razão de medida protetiva de urgência decretada judicialmente, detém o uso e gozo exclusivo do imóvel de cotitularidade do agressor.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.966.556-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 08/02/2022 (Info 724).

 

Isso significa que o art. 1.319 do CC foi declarado inconstitucional? A decisão foi da 3ª Turma do STJ. Para declarar inconstitucional o dispositivo não seria necessário obedecer a cláusula de reserva de plenário e que o julgamento fosse pela Corte Especial do STJ?

O STJ fez apenas uma interpretação conforme do art. 1.319 do Código Civil.

A interpretação conforme a Constituição de lei ou ato normativo, atribuindo ou excluindo determinado sentido entre as interpretações possíveis em alguns casos, não viola a cláusula de reserva de plenário, consoante já assentado pelo Supremo Tribunal Federal no RE 572.497 AgR/RS, Rel. Min. Eros Grau, DJ 11/11/2008, e no RE 460.971, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 30/3/2007 (ambos reproduzindo o entendimento delineado no RE 184.093/SP, Rel. Moreira Alves, publicado em 29/4/1997).


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