domingo, 20 de fevereiro de 2022

Contratação de advogado sem licitação e crime do art. 89 da Lei 8.666/93 (art. 337-E do CP)

 

Crimes em licitações e contratos administrativos

A antiga Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93) previa alguns tipos penais.

A Lei nº 14.133/2021 (nova Lei de Licitações) revogou a Lei nº 8.666/93.

O que aconteceu com os crimes que eram previstos na antiga Lei de Licitações?

Foram inseridos no Código Penal nos arts. 337-E e 337-O. Além disso, a nova Lei ainda acrescentou o art. 337-P tratando sobre a pena de multa.

 

Crime de contratação direta ilegal

O art. 89 da Lei nº 8.666/93 tipificava como crime a dispensa ou inexigibilidade indevida de licitação.

O art. 89 foi revogado pela Lei nº 14.133/2021, mas essa mesma conduta continuou sendo punida agora pelo art. 337-E do Código Penal. Houve, portanto, continuidade normativo-típica (e não abolitio criminis). Compare os dois tipos:

Art. 89 da Lei nº 8.666/93

Art. 337-E do CP (incluído pela Lei 14.133/2021

Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena — detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

Contratação direta ilegal

Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

 

Vamos entender um pouco melhor esse crime.

 

Regra: obrigatoriedade de licitação

Como regra, a CF/88 impõe que a Administração Pública somente pode contratar obras, serviços, compras e alienações se realizar uma licitação prévia para escolher o contratante (art. 37, XXI).

 

Exceção: contratação direta nos casos especificados na legislação

O inciso XXI afirma que a lei poderá especificar casos em que os contratos administrativos poderão ser celebrados sem esta prévia licitação. A isso, a doutrina denomina “contratação direta”.

 

Resumindo:

A regra na Administração Pública é a contratação precedida de licitação. Contudo, a legislação poderá prever casos excepcionais em que será possível a contratação direta sem licitação.

 

Contratação direta

A Lei de Licitações e Contratos prevê três grupos de situações em que a contratação ocorrerá sem licitação prévia. Trata-se das chamadas licitações dispensadas, dispensáveis e inexigíveis. Vejamos o quadro comparativo abaixo:

Dispensada

Dispensável

Inexigível

Art. 76 da Lei 14.133/2021

(Art. 17 da Lei 8.666/93)

Art. 75 da Lei 14.133/2021

(Art. 24 da Lei 8.666/93)

Art. 74 da Lei 14.133/2021

(Art. 25 da Lei 8.666/93)

Rol taxativo

Rol taxativo

Rol exemplificativo

A lei determina a não realização da licitação, obrigando a contratação direta.

A lei autoriza a não realização da licitação. Mesmo sendo dispensável, a Administração pode decidir realizar a licitação (discricionariedade).

Como a licitação é uma disputa, é indispensável que haja pluralidade de objetos e pluralidade de ofertantes para que ela possa ocorrer. Assim, a lei prevê alguns casos em que a inexigibilidade se verifica porque há impossibilidade jurídica de competição.

Ex.: quando a Administração Pública possui uma dívida com o particular e, em vez de pagá-la em espécie, transfere a ele um bem público desafetado, como forma de quitação do débito. A isso chamamos de dação em pagamento (art. 76, I, “a”).

Ex.: contratação que envolva valores inferiores a R$ 50 mil, no caso de outros serviços e compras.

Ex.: contratação de artista consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública para fazer o show do aniversário da cidade.

 

Procedimento de justificação

Mesmo nas hipóteses em que a legislação permite a contratação direta, é necessário que o administrador público observe algumas formalidades e instaure um processo administrativo de justificação.

 

Tipo objetivo do crime

O crime do art. 89 da Lei nº 8.666/93 (art. 337-E do C) ocorre se o administrador público...

• dispensar a licitação fora das hipóteses previstas em lei;

• inexigir (deixar de exigir) licitação fora das hipóteses previstas em lei; ou

• deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade.

 

O art. 337-E simplificou a redação e afirmou que haverá o crime quando o agente admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei.

 

Norma penal em branco

Como as hipóteses de contratação direta estão previstas na Lei nº 14.133/2021, o tipo penal do art. 337-E do CP (antigo art. 89 da Lei nº 8.666/93) é taxado como:

• norma penal em branco (porque depende de complemento normativo);

• imprópria, em sentido amplo ou homogênea (o complemento normativo emana do legislador);

• do subtipo homovitelínea ou homológa (o complemento emana da mesma instância legislativa).

 

Tipo subjetivo

Para a configuração da tipicidade subjetiva do crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93 (atual art. 337-E do CP), exige-se o especial fim de agir, consistente na intenção específica de lesar o erário ou obter vantagem indevida. Esse entendimento é pacífico na jurisprudência do STF e STJ:

Para a caracterização da conduta tipificada no art. 89 da Lei 8.666/1993, é indispensável a demonstração, já na fase de recebimento da denúncia, do elemento subjetivo consistente na intenção de causar dano ao erário ou obter vantagem indevida.

STF. 2ª Turma. Inq 3965, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 22/11/2016.

 

O delito em questão exige, além do dolo genérico (representado pela vontade consciente de dispensar ou inexigir licitação com descumprimento das formalidades), a presença do especial fim de agir, que consiste no dolo específico de causar dano ao erário ou de gerar o enriquecimento ilícito dos agentes envolvidos na empreitada criminosa.

 

• Dolo genérico: vontade de dispensar ou inexigir licitação com descumprimento das formalidades;

• Especial fim de agir (“dolo específico”): intenção de causar dano ao erário ou de gerar o enriquecimento ilícito dos agentes envolvidos na empreitada criminosa.

 

Assim, só ocorrerá esse crime se houver o dolo genérico mais o especial fim de agir.

 

Para a configuração do crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93, agora disposto no art. 337-E do CP (Lei nº 14.133/2021), é indispensável a comprovação do dolo específico de causar danos ao erário e o efetivo prejuízo aos cofres públicos.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 669.347-SP, Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Rel. Acd. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 13/12/2021 (Info 723).

 

Veja abaixo alguns entendimentos que o STF e o STJ tinham a respeito do art. 89 da Lei nº 8.666/93. Penso que é provável que sejam mantidos na vigência do art. 337-E do CP:

• Para a configuração da tipicidade subjetiva do crime previsto no art. 89 da Lei 8.666/93, exige-se o especial fim de agir, consistente na intenção específica de lesar o erário ou obter vantagem indevida (STF. 1ª Turma. Inq 3962/DF, Rel. Min Rosa Weber, julgado em 20/2/2018. Info 891).

• O tipo penal previsto no art. 89 não criminaliza o mero fato de o administrador público ter descumprido formalidades. Para que haja o crime, é necessário que, além do descumprimento das formalidades, também se verifique que ocorreu, no caso concreto, a violação de princípios cardeais (fundamentais) da Administração Pública. Se houve apenas irregularidades pontuais relacionadas com a burocracia estatal, isso não deve, por si só, gerar a criminalização da conduta (STF. 1ª Turma. Inq 3962/DF, Rel. Min Rosa Weber, julgado em 20/2/2018. Info 891).

• Não haverá crime se a decisão do administrador de deixar de instaurar licitação para a contratação de determinado serviço foi amparada por argumentos previstos em pareceres (técnicos e jurídicos) que atenderam aos requisitos legais, fornecendo justificativas plausíveis sobre a escolha do executante e do preço cobrado e não houver indícios de conluio entre o gestor e os pareceristas com o objetivo de fraudar o procedimento de contratação direta (STF. 1ª Turma. Inq 3962/DF, Rel. Min Rosa Weber, julgado em 20/2/2018. Info 891).

• Deverão ser analisados três critérios para se verificar se o ilícito administrativo configurou também o crime do art. 89: 1º) existência ou não de parecer jurídico autorizando a dispensa ou a inexigibilidade. A existência de parecer jurídico é um indicativo da ausência de dolo do agente, salvo se houver circunstâncias que demonstrem o contrário; 2º) a denúncia deverá indicar a existência de especial finalidade do agente de lesar o erário ou de promover enriquecimento ilícito; 3º) a denúncia deverá descrever o vínculo subjetivo entre os agentes (STF. 1ª Turma. Inq 3674/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 7/3/2017. Info 856).

• Não comete o crime do art. 89 da Lei nº 8.666/93 Secretária de Educação que faz contratação direta, com base em inexigibilidade de licitação (art. 25, I), de livros didáticos para a rede pública de ensino, livros esses que foram escolhidos por equipe técnica formada por pedagogos, sem a sua interferência. Vale ressaltar que havia comprovação, por meio de carta de exclusividade emitida por entidade do setor, de que a empresa contratada era a única fornecedora dos livros na região (STF. Plenário. AP 946/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 30/8/2018. Info 913).

 

CASO CONCRETO JULGADO PELO STJ

Imagine a seguinte situação adaptada:

José, na qualidade de Prefeito, autorizou a contratação direta de um grande escritório de advocacia, afirmando que seria caso de inexigibilidade de licitação com fundamento no art. art. 25, II, da Lei nº 8.666/93:

Art. 25.  É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:

(...)

II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

 

Art. 13.  Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:

(...)

V - patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;

 

O Ministério Público entendeu que não era caso de contratação direta e ofereceu denúncia contra José, tendo ele sido condenado pelo TJ/SP a 4 anos e 8 meses de detenção, pela prática do crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93.

O argumento do TJ/SP para condenar o prefeito foi o de que o escritório de advocacia contratado possui notória especialização profissional. No entanto, o serviço para o que foi contratado (acompanhamento de processos “comuns”) não tem nada de singular. Não se cumpriu, portanto, a exigência de só contratar sem licitação o advogado que presta um serviço de natureza singular.

A defesa impetrou habeas corpus no STJ.

 

A condenação foi mantida pelo STJ?

NÃO. O réu foi absolvido.

Vamos entender com calma.

O art. 25 da Lei nº 8.666/93 trata sobre inexigibilidade de licitação nos seguintes termos. Vou destacar aqui somente a hipótese do inciso II:

Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:

(...)

II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

(...)

 

Esses serviços estão no art. 13 da Lei nº 8.666/93, com especial atenção para o inciso V:

Art. 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:

(...)

V - patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;

 

Resumindo o que esses dispositivos acima transcritos queriam dizer:

Os serviços técnicos profissionais especializados, quando tiverem natureza singular, poderão ser contratados pela Administração Pública mesmo sem licitação, desde que o contratado tenha notória especialização.

 

Quais eram os requisitos para que um advogado fosse contratado com inexigibilidade de licitação?

Para que houvesse a contratação direta por inexigibilidade era necessário o preenchimento de três requisitos cumulativos:

“a) serviço técnico: são aqueles enumerados, exemplificativamente, no art. 13 da Lei 8.666/1993, tais como: estudos, planejamentos, pareceres, perícias, patrocínio de causas etc.;

b) serviço singular: a singularidade do serviço depende da demonstração da excepcionalidade da necessidade a ser satisfeita e da impossibilidade de sua execução por parte de um profissional comum; e

c) notória especialização do contratado: destaque e reconhecimento do mercado em sua área de atuação, o que pode ser demonstrado por várias maneiras (estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento etc.).” (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 5ª ed., São Paulo: GEN/Método, 2017, p. 554-555)

 

Nesse sentido, era o entendimento consolidado do Tribunal de Contas da União:

Súmula 252-TCU: A inviabilidade de competição para a contratação de serviços técnicos, a que alude o inciso II do art. 25 da Lei nº 8.666/1993, decorre da presença simultânea de três requisitos: serviço técnico especializado, entre os mencionados no art. 13 da referida lei, natureza singular do serviço e notória especialização do contratado.

 

O STF apontava alguns requisitos, dentre eles a natureza singular do serviço:

A contratação direta de escritório de advocacia, sem licitação, deve observar os seguintes parâmetros: a) existência de procedimento administrativo formal;

b) notória especialização profissional;

c) natureza singular do serviço;

d) demonstração da inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público;

e) cobrança de preço compatível com o praticado pelo mercado.

STF. 1ª Turma. Inq 3074, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 26/8/2014.

 

O STJ também exigia a natureza singular do serviço:

Jurisprudência em Teses (Ed. 97):

Tese 7: A contratação de advogados pela administração pública, mediante procedimento de inexigibilidade de licitação, deve ser devidamente justificada com a demonstração de que os serviços possuem natureza singular e com a indicação dos motivos pelos quais se entende que o profissional detém notória especialização.

 

(...) V - A inexigibilidade de licitação prevista no art. 25, II, da Lei n. 8.666/93 não se contenta com a natureza técnica do serviço contratado. Exige a conjugação da natureza técnica (art. 13) com a natureza singular e a notória especialização dos profissionais ou empresas (art. 25, II). Assim, deve prevalecer o entendimento exposto no decisum recorrido, e não aquele que pretende, ao arrepio da lei, generalizar a inexigibilidade de licitação para todas as contratações de serviços advocatícios. (...)

STJ. 2ª Turma. AREsp 1543113/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 10/03/2020.

 

O que fez a Lei nº 14.039/2020 (que veio antes da nova Lei de Licitações)?

A Lei nº 14.039/2020 inseriu dispositivos no Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94) e na Lei dos Contadores (DL 9.295/46) afirmando, expressamente, que os serviços prestados pelos advogados e profissionais de contabilidade são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei. Veja apenas a alteração relativa aos advogados:

Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB):

Art. 3º-A. Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei.

Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

 

Qual foi o real objetivo da Lei nº 14.039/2020?

A Lei nº 14.039/2020, de forma sutil, tentou abolir, na prática, um dos requisitos exigidos pela Lei nº 8.666/93 e pela jurisprudência: a natureza singular do serviço.

A redação da Lei nº 14.039/2020, propositalmente, embaralhou os conceitos ao afirmar que os serviços prestados por advogados e por profissionais de contabilidade “são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização”.

Em outras palavras, em uma interpretação literal, o que dispositivo afirma é que o serviço desempenhado pelo profissional deve ser considerado técnico e singular quando for comprovada a sua notória especialização.

 

Lei nº 14.133/2021

A nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) avançou ainda mais e simplesmente aboliu a exigência de que o serviço advocatício tenha natureza singular para que possa haver a inexigibilidade de licitação.

Assim, o art. 74, III, da Lei nº 14.133/2021 não mais prevê o requisito da singularidade do serviço advocatícios. Compare:

Requisitos para a inexigibilidade de licitação no caso de serviços advocatícios

Lei 8.666/93

Lei 14.133/2021

Exigia que o serviço do advogado fosse de natureza singular.

Não mais exige que o serviço tenha natureza singular para que haja a inexigibilidade.

Art. 25.  É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:

(...)

II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

 

...

 

Art. 13.  Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:

(...)

V - patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;

Art. 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de:

(...)

III - contratação dos seguintes serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação:

a) estudos técnicos, planejamentos, projetos básicos ou projetos executivos;

b) pareceres, perícias e avaliações em geral;

c) assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;

d) fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços;

e) patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;

 

Voltando ao caso concreto:

O prefeito/réu havia sido condenado porque o TJ/SP considerou que o escritório de advocacia não foi contratado para um serviço de natureza singular. Ele foi contratado para um serviço comum (que poderia ser praticado por qualquer advogado).

No entanto, com o advento da Lei nº 14.133/2021, nos termos do art. 74, III, o requisito da singularidade do serviço advocatício deixou de ser previsto em lei, passando a ser exigida a demonstração da notória especialização e a natureza intelectual do trabalho. Essa interpretação, aliás, é reforçada pela inclusão do art. 3º-A do Estatuto da Advocacia pela Lei nº 14.039/2020, segundo o qual “os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei”.

Desse modo, considerando que o serviço de advocacia é por natureza intelectual e singular, uma vez demonstrada a notória especialização e a necessidade do ente público, será possível a contratação direta.

Ademais, conforme julgado do Superior Tribunal de Justiça, a mera existência de corpo jurídico no âmbito da municipalidade, por si só, não inviabiliza a contratação de advogado externo para a prestação de serviço específico para o ente público (REsp n. 1.626.693/SP, Rel. Acd. Min. Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 03/05/2017). Em idêntico norte, o entendimento firmado pelo STF de que “o fato de a entidade pública contar com quadro próprio de procuradores não obsta legalmente a contratação de advogado particular para a prestação de serviço específico. É necessário, contudo, que fique configurada a impossibilidade ou relevante inconveniência de que a atribuição seja exercida pela advocacia pública, dada a especificidade e relevância da matéria ou a deficiência da estrutura estatal” (Inq n. 3.074/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 02/10/2014).

Nesse contexto, ainda que as ações ajuizadas pelo escritório de advocacia contratado tratassem de temas tributários, não seria razoável exigir dos advogados públicos ou procuradorias de municípios de pequeno porte que tenham competências específicas para atuar em demandas complexas.

Ressalte-se, que o crime em apreço se refere a norma penal em branco, cuja completude depende da integração das normas que preveem as hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitações, conforme o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição Federal e no art. 2º do CP. Assim, não há dúvida quanto à incidência das alterações promovidas pela Lei nº 14.133/2021 no tocante à supressão do pressuposto de singularidade do serviço de advocacia para contratação direta.

 

Em suma:

A consumação do crime descrito no art. 89 da Lei nº 8.666/93, agora disposto no art. 337-E do CP (Lei nº 14.133/2021), exige a demonstração do dolo específico de causar dano ao erário, bem como efetivo prejuízo aos cofres públicos.

O crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93 é norma penal em branco, cujo preceito primário depende da complementação e integração das normas que dispõem sobre hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitações, agora previstas na nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021).

Dado o princípio da tipicidade estrita, se o objeto a ser contratado estiver entre as hipóteses de dispensa ou de inexigibilidade de licitação, não há falar em crime, por atipicidade da conduta.

Conforme disposto no art. 74, III, da Lei n. 14.133/2021 e no art. 3º-A do Estatuto da Advocacia, o requisito da singularidade do serviço advocatício foi suprimido pelo legislador, devendo ser demonstrada a notória especialização do agente contratado e  a natureza intelectual do trabalho a ser prestado.

A mera existência de corpo jurídico próprio, por si só, não inviabiliza a contratação de advogado externo para a prestação de serviço específico para o ente público.

Se estão ausentes o dolo específico e o efetivo prejuízo aos cofres públicos, impõe-se a absolvição do réu da prática prevista no art. 89 da Lei nº 8.666/93.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 669.347-SP, Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Rel. Acd. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 13/12/2021 (Info 723).



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