terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A inexistência de responsabilidade solidária por fato do produto entre os fornecedores da cadeia de consumo impede a extensão do acordo feito por um réu em benefício do outro

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

Marina adquiriu um suco de caixinha industrializado no supermercado e, depois de tomar o primeiro gole, percebeu que o produto estava contaminado com um corpo estranho (um “mofo” verde musgo).

A consumidora ajuizou ação de indenização por danos morais contra a fabricante do suco e o supermercado.

O supermercado resolveu fazer um acordo com a consumidora e pagou R$ 4 mil à autora.

A fabricante, por sua vez, não participou da transação.

O juiz homologou a transação e extinguiu o processo com relação ao supermercado.

Por outro lado, determinou que o processo deveria prosseguir no que tange à fabricante.

A fabricante não concordou e interpôs agravo de instrumento alegando que:

- a responsabilidade, no presente caso, é solidária;

- logo, mesmo sem participar do acordo, a transação firmada abrangeria também a fabricante;

- diante disso, o juiz deveria ter extinguido o processo para ambos os réus.

A fabricante invocou, como fundamento legal, o art. 844, § 3º do Código Civil:

Art. 844. A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem, ainda que diga respeito a coisa indivisível.

(...)

§ 3º Se entre um dos devedores solidários e seu credor, extingue a dívida em relação aos co-devedores.

 

O TJ/RJ negou provimento ao agravo.

A fabricante interpôs, então, recurso especial.

 

O STJ concordou com a tese da fabricante?

NÃO. Vamos entender com calma.

 

Vício do produto x Fato do produto

VÍCIO (VÍCIO DO PRODUTO) – ART. 18

DEFEITO (FATO DO PRODUTO) – ART. 12

Vício é a inadequação do produto ou serviço para os fins a que se destina. É uma falha ou deficiência que compromete o produto em aspectos como a quantidade, a qualidade, a eficiência etc.

Restringe-se ao próprio produto e não aos danos que ele pode gerar para o consumidor

O art. 12, § 1º do CDC afirma que defeito diz respeito a circunstâncias que gerem a insegurança do produto ou serviço. Está relacionado, portanto, com o acidente de consumo.

Ex: Paulo compra um Playstation e ele não “roda” todos os jogos.

Ex: Paulo compra um Playstation, ele liga o aparelho, começa a jogar e, de repente, o videogame esquenta muito e explode, ferindo-o.

Prazo para reclamar sobre os vícios é decadencial:

• 30 dias para serviços e produtos não duráveis;

• 90 dias para serviços e produtos duráveis.

O prazo para ações de reparação por danos causados por fato do produto ou do serviço prescreve em 5 anos.

Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.

Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

Em caso de vício do produto, o comerciante tem responsabilidade solidária.

No caso de fato do produto (defeito de segurança – art. 12), o comerciante não responde solidariamente, mas sim de forma subsidiária (art. 13).

No caso da responsabilidade por vício do produto ou serviço, o art. 18 do CDC não faz qualquer diferenciação entre os fornecedores, estabelecendo a responsabilidade solidária de todos eles.

O art. 12 afirma que responsabilidade pelo fato do produto é objetiva e solidária entre o fabricante, o produtor, o construtor e o importador, ou seja, todos os fornecedores que integram a cadeia de consumo irão responder conjuntamente independentemente de culpa.

Ocorre que, ao tratar da responsabilidade do comerciante pelo fato do produto, o CDC disciplinou de forma diversa, estabelecendo a responsabilidade subsidiária.

 

Corpo estranho em produto alimentício

O caso trata de ingestão parcial de produto contaminado, tendo em vista que a parte consumiu parte de um suco contendo um corpo estranho em seu interior.

O STJ entende que:

A aquisição de produto de gênero alimentício contendo em seu interior corpo estranho expõe o consumidor à risco concreto de lesão à sua saúde e segurança, ainda que não ocorra a ingestão de seu conteúdo. Logo, isso enseja o direito de o consumidor ser indenizado por danos morais, considerando que há ofensa ao direito fundamental à alimentação adequada, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana.

A simples comercialização de produto contendo corpo estranho possui as mesmas consequências negativas à saúde e à integridade física do consumidor que sua ingestão propriamente dita.

Existe, no caso, dano moral in re ipsa porque a presença de corpo estranho em alimento industrializado excede aos riscos comumente esperados pelo consumidor em relação a esse tipo de produto, caracterizando-se a situação como um defeito do produto, a permitir a responsabilização do fornecedor.

STJ. 2ª Seção. REsp 1.899.304/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 25/08/2021.

 

A existência de corpo estranho em produto alimentício configura vício do produto ou fato do produto?

Fato do produto.

Para o STJ, a existência de corpo estranho em produtos alimentícios, como no caso, configura hipótese de fato do produto (defeito), previsto nos arts. 12 e 13 do Código de Defesa do Consumidor, não se tratando de vício do produto (art. 18).

 

O que isso significa no que tange ao comerciante (em nosso exemplo, o supermercado)?

Significa que a sua responsabilidade não é solidária, mas sim subsidiária.

Logo, não é correto o argumento da fabricante de que a responsabilidade do supermercado seria solidária. Não era. Como a responsabilidade do supermercado não era solidária, não se aplica, no presente caso, o § 3º do art. 844 do Código Civil:

Art. 844. A transação não aproveita, nem prejudica senão aos que nela intervierem, ainda que diga respeito a coisa indivisível.

(...)

§ 3º Se entre um dos devedores solidários e seu credor, extingue a dívida em relação aos co-devedores.

 

Em suma:

A inexistência de responsabilidade solidária por fato do produto entre os fornecedores da cadeia de consumo impede a extensão do acordo feito por um réu em benefício do outro.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.968.143-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 08/02/2022 (Info 724).



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