quinta-feira, 31 de março de 2022

É possível a penhora do bem de família para pagar dívida do proprietário com a empreiteira que construiu a casa?

 

Espécies de bem de família

No Brasil, atualmente, existem duas espécies de bem de família:

a) bem de família convencional ou voluntário (arts. 1711 a 1722 do Código Civil);

b) bem de família legal (Lei nº 8.009/90).

 

Bem de família legal

O bem de família legal consiste no imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar.

Considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente.

Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do Código Civil (bem de família convencional).

 

Proteção conferida ao bem de família legal

O bem de família legal é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas no art. 3º da Lei nº 8.009/90.

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

João tinha um terreno vazio e contratou a empresa Constrói Ltda. para construir uma casa no local.

O contrato celebrado foi do tipo “empreitada global”. Isso ocorre quando “o cliente contrata a empresa para realizar a obra, tomando esta total responsabilidade por seus custos e execução. O grande benefício desta empreitada é que o cliente não tem preocupação alguma com a execução da obra a não ser o pagamento dos valores acordados nas datas corretas, recebendo ao final do prazo estipulado uma construção sólida, a um custo previamente acordado, pronta para utilização.” (http://www.atilaengenharia.com.br/)

João combinou de pagar R$ 500 mil a empresa pela construção da casa, de forma parcelada em 10 vezes.

Ocorre que ele não pagou as últimas parcelas do contrato com a empresa e ficou devendo o valor de R$ 100 mil, materializado em notas promissórias.

Diante disso, a empresa ajuizou execução de título extrajudicial contra João e o juiz determinou a penhora da casa que foi construída, onde o devedor reside.

João apresentou exceção de pré-executividade alegando que o imóvel é bem de família e, portanto, impenhorável.

A empresa contra argumentou afirmando que a dívida em questão se amolda à exceção legal prevista no art. 3º, II, da Lei nº 8.009/90:

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

(...)

II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

 

A questão chegou até o STJ. A penhora sobre o imóvel foi mantida?

SIM.

Como vimos acima, o bem de família é impenhorável, mas essa regra não é absoluta. O próprio art. 3º da Lei nº 8.009/90 prevê uma série de exceções à impenhorabilidade.

O inciso II do art. 3º, acima transcrito, afirma que, se o devedor tomou dinheiro emprestado para financiar a construção ou a aquisição do imóvel, o credor (que emprestou essa quantia) poderá pedir a penhora do bem de família do mutuário.

Verifica-se, portanto, que a situação descrita no inciso II do art. 3º não é idêntica ao caso acima narrado.

O STJ, no entanto, afirmou que, mesmo assim, é possível aplicar o raciocínio do inciso II para essa hipótese.

Em outras palavras, é possível aplicar o inciso II do art. 3º para a cobrança de dívida relacionada com o contrato de empreitada global, por meio do qual o empreiteiro se obriga a construir a obra e a fornecer os materiais.

Essa aplicação é baseada na interpretação teleológica do dispositivo. O intuito do legislador ao prever a exceção legal ora tratada foi o de evitar que aquele que contribuiu para a aquisição ou construção do imóvel ficasse impossibilitado de receber o seu crédito.

Nesse cenário, é nítida a preocupação do legislador no sentido de impedir a deturpação do benefício legal, vindo a ser utilizado como artifício para viabilizar a aquisição, melhoramento, uso, gozo e/ou disposição do bem de família sem nenhuma contrapartida, à custa de terceiros.

Em sentido semelhante:

O crédito oriundo de contrato de empreitada para a construção, ainda que parcial, de imóvel residencial, encontra-se nas exceções legais à impenhorabilidade do bem de família.

Ex: João comprou uma casa antiga para reformar e passar a morar ali com a família. Ele contratou a empresa FB Engenharia para fazer a reforma. A empresa terminou o serviço e João passou a residir no local. Ocorre que ele não pagou as últimas parcelas do contrato com a empresa e ficou devendo R$ 40 mil, materializado em notas promissórias. O imóvel onde João reside poderá ser penhorado para pagar a dívida, sendo essa uma exceção à impenhorabilidade do bem de família. Fundamento: art. 3º, II, da Lei nº 8.009/90.

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: (...) II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

STJ. 4ª Turma. REsp 1221372-RS, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 15/10/2019 (Info 658).

 

Conforme argumentou o Min. Marco Buzzi:

“quando o legislador utilizou a palavra financiamento, não objetivou restringir a regra da impenhorabilidade somente às hipóteses nas quais a dívida assumida seria quitada com recursos de terceiros (agentes financiadores), mas sim que, quando o encargo financeiro anunciado - operação de crédito - fosse voltado à aquisição ou construção de imóvel residencial, ao credor seria salvaguardado o direito de proceder à penhora do bem.

Entendimento em outro sentido premiaria o comportamento contraditório do devedor e ensejaria o seu inegável enriquecimento indevido, haja vista que lhe bastaria assumir o compromisso de quitar a obrigação com recursos próprios para estar autorizado, nos termos da lei, a se locupletar ilicitamente.”

 

Portanto, a dívida relativa a contrato de empreitada global, porque viabiliza a construção do imóvel, está abrangida pela exceção prevista no art. 3º, II, da Lei nº 8.009/90.

Dito de outro modo: admite-se a penhora do bem de família para saldar o débito originado de contrato de empreitada global celebrado para promover a construção do próprio imóvel.

 

Em suma:

Admite-se a penhora do bem de família para saldar o débito originado de contrato de empreitada global celebrado para promover a construção do próprio imóvel.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.976.743-SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 08/03/2022 (Info 728).


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