terça-feira, 8 de março de 2022

Indignidade e herdeiro que pratica ato infracional análogo a homicídio contra seu pai (o autor da herança)

Imagine a seguinte situação hipotética:

João e Regina, casados, eram pais de Ricardo, Orlando e Leônidas.

Leônidas, na época com 17 anos, envolvido com drogas, ceifou a vida de seus pais.

João e Regina deixaram um vasto patrimônio a título de herança.

Ricardo e Orlando ajuizaram ação de indignidade contra Leônidas.

Na ação, foi pedido que Leônidas perdesse o direito de receber a herança em razão de ter sido o autor de homicídio doloso contra seus pais. O fundamento legal invocado foi o art. 1.814 do Código Civil:

Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:

I - que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;

 

O que é a indignidade, no Direito Civil?

Indignidade são situações previstas no Código Civil nas quais o indivíduo que normalmente iria ter direito à herança, ficará impedido de recebê-la em virtude de ter praticado uma conduta nociva em relação ao autor da herança ou seus familiares. Trata-se, portanto, de uma causa de exclusão da sucessão.

A indignidade é considerada uma punição, uma “pena civil” aplicada ao herdeiro ou legatário acusado de atos reprováveis contra o falecido.

Hipóteses de indignidade

As situações que configuram indignidade estão previstas no art. 1.814 do Código Civil.

 

O rol do art. 1.814 do CC é taxativo ou exemplificativo?

Taxativo (numerus clausus).

Na esteira da majoritária doutrina, o rol do art. 1.814 do CC/2002, que prevê as hipóteses autorizadoras de exclusão de herdeiros ou legatários da sucessão, é taxativo, razão pela qual se conclui não ser admissível a criação de hipóteses não previstas no dispositivo legal por intermédio da analogia ou da interpretação extensiva.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.943.848-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/02/2022 (Info 725).

 

Como é feita a exclusão do indivíduo que praticou ato de indignidade

Para excluir um herdeiro ou legatário que praticou ato de indignidade, é necessária a propositura de ação judicial de indignidade.

Assim, a exclusão do herdeiro ou legatário deverá ser declarada por sentença (art. 1.815), que irá reconhecer que o indivíduo praticou o ato de indignidade.

 

 

Qual é o prazo para a ação de indignidade?

Prazo decadencial de 4 anos.

O direito de demandar a exclusão do herdeiro ou legatário extingue-se em 4 anos, contados da abertura da sucessão (morte).

Vale ressaltar que se houver herdeiros menores, o prazo só se inicia depois que atingirem a maioridade.

 

Quem tem legitimidade para ajuizar a ação de indignidade?

A ação de declaração de indignidade pode ser proposta por qualquer interessado na sucessão.

 

E o Ministério Público, possui legitimidade para ajuizar ação de indignidade?

Em regra, não.

Exceção: o MP possui legitimidade no caso do inciso I do art. 1.814 do CC (homicídio doloso). É o que prevê o § 2º do art. 1.815 do CC, incluído pela Lei nº 13.532/2017.

Assim, o Ministério Público pode ajuizar ação pedindo a declaração de indignidade caso o herdeiro ou legatário tenha sido:

- autor, coautor ou partícipe de homicídio doloso (consumado ou tentado)

- praticado contra o autor da herança, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente.

Caso Suzane Richtofen

A alteração legislativa da Lei 13.532/2017 foi inspirada pelo famoso caso Suzane Richtofen, que, em 2002, matou os pais, com a ajuda do seu namorado.

A situação de Suzane poderia ser enquadrada no inciso I do art. 1.814 do CC. Assim, ela poderia ser excluída da sucessão e não receber a herança dos seus pais. Ocorre que, como o fato foi antes da Lei 13.532/2017, para isso acontecer, o outro herdeiro (seu irmão, Andréas Von Richtofen) teve que propor ação de indignidade contra Suzane.

Caso Andréas não tivesse proposto a ação, Suzane, mesmo tendo matado os pais, em tese, receberia a herança. Isso parece extremamente injusto e contrário à ética geral.

Pensando nisso, a Lei nº 13.532/2017 acrescentou expressamente a possibilidade de o MP propor a ação de indignidade neste caso.

Assim, se o caso Suzane Richtofen tivesse acontecido após a Lei nº 13.532/2017, o Promotor de Justiça poderia ajuizar a ação de indignidade mesmo sem a iniciativa ou concordância de Andréas, outro herdeiro.

No caso de Suzane, como já dito, Andréas ajuizou a ação de indignidade, tendo ela sido julgada procedente já com trânsito em julgado.

Confira trecho do dispositivo da sentença:

“ANDREAS ALBERT VON RICHTHOFEN moveu AÇÃO DE EXCLUSÃO DE HERANÇA em face de sua irmã SUZANE LOUISE VON RICHTHOFEN, por manifesta indignidade desta, pois teria ela, aos 31 de outubro de 2002, em companhia do seu namorado, Daniel Cravinhos de Paula e Silva, e do irmão dele, Cristian Cravinhos de Paula e Silva, barbaramente executado seus pais (...)

Conheço desde logo do pedido, pois se trata de matéria exclusiva de direito, estando a lide definida com a condenação penal, transitada em julgado, da herdeira Suzane Louise Von Richthofen pela morte de seus pais, pela qual foi condenada a 39 anos de reclusão e seis meses de detenção.

A indignidade é uma sanção civil que causa a perda do direito sucessório, privando da fruição dos bens o herdeiro que se tornou indigno por se conduzir de forma injusta, como fez Suzane, contra quem lhe iria transmitir a herança (...)

Ante o exposto, julgo PROCEDENTE a presente Ação de Exclusão de Herança que Andreas Albert Von Richthofen moveu em face de Suzane Louise Von Richthofen e, em consequência, declaro a indignidade da requerida em relação à herança deixada por seus pais, Manfred Albert Von Richthofen e Marísia Von Richthofen, em razão do trânsito em julgado da ação penal que a condenou criminalmente pela morte de ambos os seus genitores, nos exatos termos do disposto no artigo 1.814, I, do Código Civil.

Condeno também a requerida a restituir os frutos e rendimentos dos bens da herança que porventura anteriormente percebeu, desde a abertura da sucessão, nos termos do § único, artigo 1.817, também do Código Civil.  (...)”

 

Para que se ajuíze a ação de indignidade com base no inciso I do art. 1.814 é necessário que exista sentença penal condenatória?

NÃO. Para que se ajuíze a ação de indignidade, não se exige prévia condenação no juízo criminal. Mesmo que o processo criminal ainda esteja tramitando, o interessado pode ingressar com a ação de indignidade, até mesmo porque esta demanda tem prazo decadencial de 4 anos.

Vale ressaltar, no entanto, que o autor da ação de indignidade deverá provar, no processo cível, a ocorrência da situação prevista em algum dos incisos do art. 1.814 do CC. Assim, o autor da ação terá que provar, com testemunhas, perícia etc., que o indigno praticou o homicídio doloso.

 

Voltando à situação hipotética:

Leônidas contestou alegando que ele ceifou a vida dos pais quando tinha 17 anos. Logo, era adolescente e, portanto, penalmente inimputável (art. 27 do CP). Diante disso, afirmou que o pedido dos autores não merece acolhimento tendo em vista que o inciso I do art. 1.814 do CC exige que a pessoa tenha praticado o crime de homicídio e ele (réu) cometeu ato infracional, que é tecnicamente diferente de crime.

 

A tese de Leônidas foi acolhida pelo STJ?

NÃO.

Leônidas praticou ato infracional análogo ao homicídio.

O ato infracional análogo ao homicídio, doloso e consumado, praticado contra os pais, pode ser sim incluído na regra do art. 1.814, I, do CC.

Como vimos acima, o rol do art. 1.814 do CC/2002 é taxativo, não admitindo analogia ou interpretação extensiva.

Contudo, o fato de o rol ser taxativo não significa que ele só possa ser interpretado literalmente.

Não se pode confundir taxatividade com interpretação literal.

Mesmo que um rol seja taxativo, ele pode ser objeto de outras formas de interpretação, como a interpretação lógica, a histórica, a sistemática, a teleológica, a sociológica etc.

Isso porque não se pode confundir o texto da lei com a norma jurídica que ela revela a partir da interpretação.

Diante desse cenário, a interpretação literal (método hermenêutico) é um dos meios, mas não a única forma de obtenção da norma jurídica.

 

Inciso I do art. 1.814 não pode ser interpretado literalmente

A regra do art. 1.814, I, do CC/2002, se interpretada literalmente, de forma irreflexiva, não contextual e adstrita ao aspecto semântico ou sintático da língua, induziria ao resultado de que o uso da palavra “homicídio” possuiria um sentido único e importado diretamente da legislação penal para a civil.

Ocorre que não se pode fazer uma mera interpretação literal.

A cláusula de indignidade baseada no atentado do herdeiro à vida dos pais se funda em razões éticas e morais.

A finalidade da regra que exclui da sucessão o herdeiro que atenta contra a vida dos pais é, a um só tempo, prevenir a ocorrência do ato ilícito, tutelando bem jurídico mais valioso do ordenamento jurídico, e reprimir o ato ilícito porventura praticado, estabelecendo sanção civil consubstanciado na perda do quinhão por quem praticá-lo.

A partir de uma perspectiva teleológica-finalística conclui-se que o objetivo do enunciado normativo do art. 1.814, I, do CC é o de proibir que tenha direito à herança quem atentar, propositalmente, contra a vida de seus pais. Logo, apesar de existir uma diferença técnico-jurídica entre homicídio e ato análogo a homicídio, essa distinção tem importância apenas no âmbito penal, mas não possui a mesma relevância na esfera cível, não devendo ser levada em consideração para fins de exclusão da herança, sob pena de ofensa aos valores e às finalidades que nortearam a criação da norma e de completo esvaziamento de seu conteúdo.

 

Em suma:

O herdeiro que seja autor, coautor ou partícipe de ato infracional análogo ao homicídio doloso praticado contra os ascendentes fica excluído da sucessão.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.943.848-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/02/2022 (Info 725).

 


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