domingo, 6 de março de 2022

É compatível com a Constituição Federal a norma da Constituição Estadual que assegure independência funcional a Delegados de Polícia?

 

A situação concreta foi a seguinte:

Em 2012, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou uma emenda à Constituição estadual assegurando independência funcional aos Delegados de Polícia e afirmando que a Polícia Civil é função essencial à jurisdição e à defesa da ordem jurídica. Confira o texto aprovado:

Art. 140 (...)

§ 1º (...)

§ 2º No desempenho da atividade de polícia judiciária, instrumental à propositura de ações penais, a Polícia Civil exerce atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica.

§ 3º Aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária.

§ 4º O ingresso na carreira de Delegado de Polícia dependerá de concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, dois anos de atividades jurídicas, observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação.

§ 5º A exigência de tempo de atividade jurídica será dispensada para os que contarem com, no mínimo, dois anos de efetivo exercício em cargo de natureza policial-civil, anteriormente à publicação do edital de concurso.

 

ADI

O Procurador-Geral da República propôs ADI contra essa alteração promovida na CE/SP pela EC 35/2012.

O autor alegou que a Constituição Federal prevê quais são as funções essenciais à justiça e que os Estados não poderiam indicar novas funções em acréscimo às relacionadas no texto constitucional, tampouco conferir autonomia à carreira de Delegado de Polícia.

Sustentou que, no sistema constitucional, cabe à Polícia Judiciária subsidiar o Ministério Público com os elementos necessários à persecução criminal, de modo que não seria possível nele introduzir a garantia da independência funcional dos delegados sem necessariamente interferir de forma direta nas atribuições do Ministério Público como titular da ação penal.

Alegou que atribuir independência funcional aos Delegados de Polícia Civil ofenderia os princípios constitucionais da finalidade e da eficiência (art. 37, caput, CF/88), bem como o conceito de polícia inscrito no art. 144, § 6º, da CF/88.

 

O STF concordou com os argumentos do PGR?

SIM.

É inconstitucional norma estadual que assegure a independência funcional a delegados de polícia, bem como que atribua à polícia civil o caráter de função essencial ao exercício da jurisdição e à defesa da ordem jurídica.

STF. Plenário. ADI 5522/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 18/2/2022 (Info 1044).

 

O STF julgou procedente o pedido formulado na ação e declarou a inconstitucionalidade, na íntegra, da Emenda Constitucional 35/2012 do Estado de São Paulo, que alterou o art. 140 da Constituição paulista.

A Constituição Federal, ao tratar dos órgãos Administração Pública, escolheu aqueles que deveria ter assegurada autonomia. É o caso, por exemplo, do Poder Judiciário (art. 99), do Ministério Público (art. 127, §§ 2º e 3º), das universidades (art. 207).

Pode-se dizer assim que o legislador constituinte foi rigoroso quanto ao critério de atribuição de autonomia aos órgãos da Administração Pública.

Vale ressaltar que, além de não assegurar autonomia à Polícia Civil, a Constituição Federal afirmou expressamente que ela deveria estar subordinada ao respectivo Governador do Estado:

Art. 144 (...)

§ 6º As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

 

A falta de previsão constitucional atribuindo independência funcional para a atividade policial deve ser entendida como hipótese de silêncio eloquente. Certas omissões do legislador não importam em lacuna, mas significam decisão de não estender certa disciplina jurídica a determinadas situações, por ser descabido fazê-lo, de forma que não é cabível aplicação de analogia.

Quando o poder constituinte o quis, previu expressamente prerrogativas e garantias para carreiras. Logo, não há espaço para inovação nessa matéria pelo poder constituinte decorrente, que deve respeitar o tratamento constitucional, em razão do princípio da simetria.

O STF possui outros julgados prevendo a impossibilidade de atribuição de autonomia aos organismos integrantes da Segurança Pública. Nesse sentido: ADI 5520, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 20/09/2019.

Desse modo, a norma do poder constituinte decorrente que venha a atribuir autonomia funcional, administrativa ou financeira a outros órgãos ou instituições que não aquelas especificamente constantes da Constituição Federal, padece de vicio de inconstitucionalidade material, por violação ao princípio da separação dos poderes.

Em suma, o dispositivo impugnado, ao conferir autonomia à carreira de delegado, atribuir independência funcional aos Delegados de Polícia Civil, incluir a categoria entre as funções essenciais à Justiça e ampliar seu rol de competências, incorreu em ofensa aos arts. 129, I, VI e VIII; e 144, § 6, da Constituição Federal.


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