quinta-feira, 7 de abril de 2022

O descumprimento do prazo do parágrafo único do art. 316 do CPP acarreta automaticamente a liberdade do preso? Esse dispositivo se aplica também aos Tribunais?

 

Revisão periódica da necessidade da prisão preventiva: o parágrafo único do art. 316 do CPP

A prisão preventiva é decretada sem prazo determinado. Contudo, a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) alterou o CPP para impor a obrigação de que o juízo que ordenou a custódia, a cada 90 dias, profira uma nova decisão analisando se ainda está presente a necessidade da medida.

Trata-se do novo parágrafo único do art. 316 do CPP:

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Antes da Lei 13.964/2019

ATUALMENTE

Art. 316. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no correr do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

Não havia parágrafo único do art. 316.

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

 

O DESCUMPRIMENTO DO PRAZO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 316 DO CPP NÃO ACARRETA AUTOMATICAMENTE A LIBERDADE DO PRESO

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

O juiz decretou a prisão preventiva do réu. Passaram-se os 90 dias e o magistrado não proferiu nova decisão analisando a necessidade, ou não, de manutenção da custódia cautelar. Diante disso, a defesa impetrou habeas corpus afirmando que a prisão se tornou ilegal, conforme prevê expressamente a parte final do dispositivo.

 

Isso significa que o réu deverá, obrigatoriamente, ser colocado em liberdade? O descumprimento da regra do parágrafo único do art. 316 do CPP gera, para o preso, o direito de ser posto imediatamente em liberdade?

NÃO.

O transcurso do prazo previsto no parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal não acarreta, automaticamente, a revogação da prisão preventiva e, consequentemente, a concessão de liberdade provisória.

STF. Plenário. ADI 6581/DF e ADI 6582/DF, Rel. Min. Edson Fachin, redator do acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgados em 8/3/2022 (Info 1046).

 

A inobservância do prazo de 90 dias do parágrafo único do art. 316 do CPP não implica automática revogação da prisão preventiva.

O art. 316, parágrafo único, do CPP insere-se em um sistema, que deve ser interpretado harmonicamente, sob pena de se produzirem incongruências deletérias à processualística e à efetividade da ordem penal.

O parágrafo único precisa ser interpretado em conjunto com o caput. Logo, para que o indivíduo seja colocado em liberdade, o juiz precisa fundamentar a decisão na insubsistência dos motivos que determinaram a decretação da prisão preventiva, e não no mero decurso de prazos processuais.

 

O simples fato de ter passado o prazo não significa que a prisão se tornou ilegal

O Supremo Tribunal Federal não concorda com interpretações que associam, automaticamente, o excesso de prazo ao constrangimento ilegal da liberdade. Isso porque:

a) deve-se analisar a razoabilidade concreta da duração do processo, aferida à luz da complexidade de cada caso, considerados os recursos interpostos, a pluralidade de réus, crimes, testemunhas a serem ouvidas, provas periciais a serem produzidas etc.;

b) a Constituição Federal impõe o dever de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX), que devem sempre se reportar às circunstâncias específicas dos casos concretos submetidos a julgamento, e não apenas aos textos abstratos das leis.

 

À luz desta compreensão jurisprudencial, o disposto no art. 316, parágrafo único, do CPP não conduz à revogação automática da prisão preventiva.

 

O que o dispositivo exige é uma fundamentação periódica

Ao estabelecer que “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”, o dispositivo não determina a revogação da prisão preventiva, mas apenas a necessidade de fundamentá-la periodicamente.

 

Não se trata de prazo prisional, mas sim prazo para prolação da decisão judicial

O parágrafo único do art. 316 não fala em prorrogação da prisão preventiva, não determina a renovação do título cautelar. Apenas dispõe sobre a necessidade de revisão dos fundamentos da sua manutenção. Logo, não se trata de prazo prisional, mas sim de prazo fixado para a prolação de decisão judicial.

Desse modo, a ilegalidade decorrente da falta de revisão a cada 90 dias não produz o efeito automático da soltura, porque a liberdade, à luz do caput do dispositivo, somente é possível mediante decisão fundamentada do órgão julgador, no sentido da ausência dos motivos autorizadores da cautela, e não do mero transcorrer do tempo.

 

O STF já havia decidido nesse sentido em 2020:

A inobservância do prazo nonagesimal do art. 316 do Código de Processo Penal não implica automática revogação da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos.

STF. Plenário. SL 1395 MC Ref/SP, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 14 e 15/10/2020 (Info 995).

 

Inobservância do prazo nonagesimal

O transcurso do prazo previsto no parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal não acarreta, automaticamente, a revogação da prisão preventiva e, consequentemente, a concessão de liberdade provisória, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos. Isso porque não houve, por parte da lei, a previsão de automaticidade.

O parágrafo único do art. 316 do CPP não dispõe que a prisão preventiva passa a ter 90 dias de duração. Estabelece, tão somente, a necessidade de uma reanálise, que pressupõe a reavaliação da subsistência, ou não, dos requisitos que fundamentaram o decreto prisional.

A interpretação da norma penal e processual penal exige que se leve em consideração um dos maiores desafios institucionais do Brasil no combate à criminalidade organizada, na repressão da impunidade, na punição do crime violento e no enfrentamento da corrupção. Para tanto, é preciso estabelecer não só uma legislação eficiente, mas também uma interpretação eficiente dessa mesma legislação, de modo que se garanta a preservação da ordem e da segurança pública, como objetivos constitucionais que não colidem com a defesa dos direitos fundamentais.

Na hipótese, o Poder Público – particularmente o Poder Judiciário –, no exercício de suas atribuições constitucionais, precisa ser eficiente e deve produzir o efeito desejado pela legislação, a partir de uma interpretação racional e conjunta do ordenamento jurídico-penal que leve em conta não só o parágrafo único do art. 316, mas também o art. 312, em concomitância ao art. 315, e o art. 387.

Há a necessidade de que se realize essa interpretação teleológica das normas, buscando a efetividade, a eficiência e a eficácia da legislação penal, garantidos todos os direitos fundamentais do paciente, é claro, mas também a correta aplicação da lei penal.

A introdução do parágrafo único do art. 316 do CPP teve como finalidade exigir a verificação de quem realmente precisa continuar encarcerado preventivamente. Trata-se, assim, da mesma causa que gerou a criação da audiência de custódia. Não se trata, portanto, de conferir aos presos o direito de soltura automática.

 

A OBRIGAÇÃO DE REVISAR, A CADA 90 DIAS, A NECESSIDADE DE SE MANTER A CUSTÓDIA CAUTELAR (ART. 316, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPP) É IMPOSTA TAMBÉM AOS TRIBUNAIS?

Imagine a seguinte situação hipotética:

No dia 02/02/2022, o juiz decretou a prisão preventiva do réu.

No dia 15/04/2022, o juiz prolatou sentença condenando o réu a 8 anos de reclusão, mantendo a prisão cautelar.

O réu interpôs apelação.

No dia 15/09/2022, ou seja, mais de 90 dias depois da prolação da sentença, o Tribunal de Justiça ainda não julgou o recurso.

Diante disso, a defesa impetrou habeas corpus afirmando que o TJ deveria revisar a necessidade da manutenção, mediante decisão fundamentada, de ofício, nos termos do art. 316, parágrafo único, do CPP.

 

A argumentação da defesa está correta? O TJ (ou o TRF), enquanto não for julgado a apelação, possuem o dever de revisar a prisão cautelar a cada 90 dias? Em outras palavras, o parágrafo único do art. 316 do CPP se aplica para os TJs e TRFs?

SIM.

O art. 316, parágrafo único, do CPP aplica-se até o final do processo de conhecimento, o que se encerra com a cognição plena pelo Tribunal de segundo grau.

Assim, nos casos em que se aguarda o julgamento da apelação, o TJ ou TRF têm a obrigação de revisar periodicamente a prisão, nos termos do art. 316, parágrafo único, do CPP.

STF. Plenário. ADI 6581/DF e ADI 6582/DF, Rel. Min. Edson Fachin, redator do acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgados em 8/3/2022 (Info 1046).

 

Obs: cuidado porque essa decisão do STF modifica o entendimento do STJ sobre o tema (ex: STJ. 6ª Turma. HC 589.544-SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 08/09/2020. Info 680). O STJ terá que se adequar ao que o STF decidiu acima.

Memorize o que vale atualmente: o parágrafo único do art. 316 do CPP também se aplica para os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.

 

Como isso é feito na prática? O colegiado do Tribunal é quem irá revisar periodicamente essa prisão?

NÃO. É o desembargador relator quem irá fazer essa revisão periódica por meio de decisões monocráticas.

A revisão periódica da necessidade e adequação da prisão cautelar, em segundo grau de jurisdição, deve ficar sob a responsabilidade do relator do caso, que possui a atribuição e competência para o controle revisional tanto de suas próprias decisões (quando o decreto for proferido inicialmente por ele próprio – inclusive, nas hipóteses de prerrogativa de foro) quanto pelos atos decisórios tomados em primeira instância, permitida a cognição plena e a revisão dos fundamentos que dão ensejo à necessidade da constrição cautelar da pessoa já condenada.

Assim, não é preciso reunir o colegiado (Câmara, Turma ou Pleno) para deliberar sobre a manutenção da prisão, para os fins do parágrafo único do art. 316 do CPP.

 

O que foi explicado acima vale também para os processos de competência originária do TJ/TRF?

SIM.

Imagine, por exemplo, que um Prefeito foi denunciado e está respondendo processo criminal no Tribunal de Justiça. O desembargador relator decretou a prisão preventiva do Prefeito. Isso significa que, enquanto o processo não for julgado pelo TJ, o relator terá que, a cada 90 dias, decidir se manterá, ou não, a prisão preventiva, na forma do parágrafo único do art. 316 do CPP.

 

Imagine agora uma situação ligeiramente diferente:

O juiz decretou a prisão preventiva do réu.

Algum tempo depois, o juiz prolatou sentença condenando o réu a 8 anos de reclusão, mantendo a prisão cautelar.

O réu interpôs apelação.

Passaram-se novamente 90 dias sem que o Tribunal de Justiça tenha julgadp o recurso. Isso significa que, em razão disso, o desembargador relator terá que proferir decisão monocrática dizendo se mantém ou não a prisão cautelar, nos termos do art. 316, parágrafo único, do CPP.

Em 02/02/2022, o Tribunal de Justiça proferiu acórdão mantendo a condenação.

O réu interpôs recurso especial ao STJ.

No dia 15/09/2022, ou seja, mais de 90 dias depois da prolação da sentença, o STJ ainda não julgou o recurso especial.

 

O Ministro Relator do recurso especial no STJ terá que proferir decisão dizendo se mantém ou não a prisão cautelar considerando que o recurso ainda não foi julgado? O STJ (ou o STF) enquanto não for julgado o recurso especial (ou o recurso extraordinária), possui o dever de revisar a prisão cautelar a cada 90 dias? O parágrafo único do art. 316 do CPP se aplica para o STJ e o STF se o processo está ali aguardando o julgamento de Resp ou RE?

NÃO.

Encerrado o julgamento de segunda instância, não se aplica o art. 316, parágrafo único, do CPP.

O art. 316, parágrafo único, do CPP incide até o final dos processos de conhecimento, onde há o encerramento da cognição plena pelo Tribunal de segundo grau, não se aplicando às prisões cautelares decorrentes de sentença condenatória de segunda instância ainda não transitada em julgado.

Se houve a condenação em segundo grau de jurisdição, já houve uma cognição plena quanto às provas, não havendo razoabilidade de se exigir, nesses casos, a obrigatoriedade de se continuar promovendo reavaliações periódicas da decisão de prisão a cada 90 dias.

Ora, se o Tribunal já condenou na última instância em que é permitida a cognição plena das provas, é óbvio que se entende que, até o trânsito em julgado, permanecerão os requisitos para a restrição de liberdade. Não há lógica da aplicação do art. 316, parágrafo único, para prisões cautelares derivadas de decisão final de cognição plena em segundo grau.

A necessidade de nova análise a cada 90 dias se dá até a decisão condenatória em segundo grau. Depois disso, essa obrigatoriedade não se aplica, até porque a possibilidade de prisão em segundo grau está inserida no § 1º do art. 387, do Código de Processo Penal, não constando no capítulo que regulamenta a prisão preventiva.

Encerrada a instrução processual com os julgamentos de primeira e segunda instâncias, é inadmissível a exigência de, a cada 90 dias, o Tribunal Superior reanalisar, obrigatoriamente, a manutenção da prisão cautelar, pois se trata de hipótese em que a segunda instância já definiu a condenação e reputou fundamentada a prisão cautelar. Isso é irrazoável, ilógico, e vai contra o princípio da eficiência da prestação jurisdicional.

 

O parágrafo único do art. 316 do CPP aplica-se ao STJ e STF nos casos de ações penais de competência originária?

SIM.

Esse dispositivo legal aplica-se, igualmente, aos processos em que houver previsão de prerrogativa de foro. Ex: João, Conselheiro do Tribunal de Contas, é denunciado perante o STJ. O Ministro Relator decreta a prisão preventiva do réu. Enquanto o processo não for julgado pelo STJ, o relator terá que, a cada 90 dias, decidir se manterá, ou não, a prisão preventiva, na forma do parágrafo único do art. 316 do CPP.

 

O parágrafo único do art. 316 do CPP se aplica para:

• o juízo em 1ª instância: SIM

• o TJ ou TRF: SIM (tanto nos processos de competência originária do TJ/TRF – foro por prerrogativa de função – como também durante o tempo em que se aguarda o julgamento de eventual recurso interposto contra decisão de 1ª instância).

• o STJ/STF: em regra, não. Encerrado o julgamento de segunda instância, não se aplica o art. 316, parágrafo único, do CPP. Exceção: caso se trate de uma ação penal de competência originária do STJ/STF.

 

Em conclusão, o art. 316, parágrafo único, do CPP aplica-se:

a) até o final dos processos de conhecimento, onde há o encerramento da cognição plena pelo Tribunal de segundo grau;

b) nos processos onde houver previsão de prerrogativa de foro.

Por outro lado, o art. 316, parágrafo único, do CPP não se aplica para as prisões cautelares decorrentes de sentença condenatória de segunda instância ainda não transitada em julgado.



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