segunda-feira, 18 de abril de 2022

Uma associação civil sem fins lucrativos pode se submeter a recuperação judicial?

 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

O Instituto Metodista Bennett é uma instituição de ensino superior, ou seja, ela oferece cursos de ensino fundamental, médio e superior, exigindo o pagamento de uma mensalidade como contraprestação pelos serviços.

Vale ressaltar, no entanto, que esse Instituto possui natureza jurídica de associação civil sem fins lucrativos, sendo ligado a determinada igreja.

A instituição começou a enfrentar inúmeras dificuldades econômicas durante a pandemia e pediu a sua recuperação judicial, o que foi deferido pelo juízo de 1º grau.

O Tribunal de Justiça reformou a decisão interlocutória sob o argumento de que a associação civil sem fins lucrativos não tem legitimidade para requerer recuperação judicial.

O Instituto interpôs recurso especial alegando que, de fato, ela é uma associação civil sem fins lucrativos, mas com finalidade e atividades econômicas. Logo, neste caso, detém legitimidade para requerer recuperação judicial.

 

O STJ concordou com os argumentos da associação civil? Ela tem legitimidade para requerer a recuperação judicial?

SIM.

 

Não há permissão nem proibição expressa na lei

A possibilidade, ou não, de associações civis pedirem recuperação judicial é um tema polêmico na doutrina e jurisprudência.

O caput do art. 1º da Lei nº 11.101/2005 afirma que a recuperação judicial se aplica para o empresário e para as sociedade empresária. Logo, não menciona as associações civis.

Por outro lado, o art. 2º da Lei traz as pessoas jurídicas que não podem ser beneficiadas com a recuperação judicial e ali não se mencionou as associações civis:

Art. 2º Esta Lei não se aplica a:

I – empresa pública e sociedade de economia mista;

II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.

 

Desse modo, não há previsão legal expressa permitindo nem negando a possibilidade de as associações civis estarem submetidas à recuperação judicial.

 

Associações civis podem desenvolver atividade econômica, desde que não haja intuito de lucro

Em diversas circunstâncias, as associações civis sem fins lucrativos acabam se estruturando como verdadeiras empresas do ponto de vista econômico. Em tais casos, essas associações, apesar de não distribuírem o lucro entre os sócios, exercem atividade econômica organizada para a produção e/ou a circulação de bens ou serviços, empenhando-se em obter superávit financeiro e crescimento patrimonial, sendo isso revertido em favor da própria entidade e das atividades que ela exerce.

Exatamente por isso é que o Enunciado nº 534 do CJF/STJ da VI Jornada de Direito Civil (2013) dispõe que “as associações podem desenvolver atividade econômica, desde que não haja finalidade lucrativa”.

 

Mesmo sem se registrar na Junta Comercial, as associações podem desempenhar atividades “empresariais”

Não é o registro/inscrição no Registro de Empresas que confere a qualidade empresária àquela atividade. Conforme já difundido na doutrina e consolidado nos enunciados 198 e 199 Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal:

Enunciado 198: A inscrição do empresário na Junta Comercial não é requisito para a sua caracterização, admitindo-se o exercício da empresa sem tal providência. O empresário irregular reúne os requisitos do art. 966, sujeitando-se às normas do Código Civil e da legislação comercial, salvo naquilo em que forem incompatíveis com a sua condição ou diante de expressa disposição em contrário.

 

Enunciado 199: A inscrição do empresário ou sociedade empresária é requisito delineador de sua regularidade, e não de sua caracterização.

 

Conclusão

Muitas associações civis, apesar de não serem sociedades empresárias propriamente dita, possuem imenso relevo econômico e social, seja em razão de seu objeto, seja pelo desempenho de atividades, perfazendo direitos sociais e fundamentais onde muitas vezes o estado é omisso e ineficiente, criando empregos, tributos, renda e benefícios econômicos e sociais.

É justamente em razão de sua relevância econômica e social que se tem autorizado a recuperação judicial de diversas associações civis sem fins lucrativos e com fins econômicos, garantindo a manutenção da fonte produtiva, dos empregos, da renda, o pagamento de tributos e todos os benefícios sociais e econômicos decorrentes de sua exploração.

Portanto, apesar de haver posicionamentos doutrinários em sentido contrário à concessão de recuperação judicial em favor das associações civis, existem também diversos autores que reconhecem como possível a extensão do instituto da recuperação judicial a associações civis que também exerçam atividade econômica, gerando riqueza e, na maioria das vezes, bem-estar social, apesar de não se enquadrarem literalmente no conceito de empresa. Essa conclusão é baseada nos princípios e objetivos insculpidos no art. 47 da LREF e na leitura sistêmica dos arts. 1º e 2º da Lei, ou seja, em uma interpretação finalística da norma baseada nos princípios da preservação da empresa e de sua função social.

Vale ressaltar que, em precedente antigo, o STJ já reconheceu a possibilidade de uma associação civil valer-se da recuperação judicial com fundamento, entre outras razões, na relevância do papel social desempenhado, na teoria do fato consumado e nos princípios da segurança jurídica e da estabilidade das relações (STJ. 4ª Turma. REsp 1004910/RJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 18/03/2008).

 

Em suma:

Associações civis sem fins lucrativos com finalidade e atividades econômicas detêm legitimidade para requerer recuperação judicial.

STJ. 4ª Turma. AgInt no TP 3.654-RS, Rel. Min. Raul Araújo, Rel. Acd. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 15/03/2022 (Info 729).



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