quinta-feira, 21 de março de 2024

Agente público respondia por improbidade administrativa com base no inc. I do art. 11 porque fez promoção pessoal em publicidade institucional; esse inciso I foi revogado pela Lei 14.230/2021, mas a conduta continua sendo improbidade com fundamento no novo inciso XII

ALTERAÇÃO DA LEI 14.230/2021 NO ART. 11 DA LEI DE IMPROBIDADE

A Lei nº 14.230/2021 promoveu a maior reforma da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) desde que esse diploma foi editado.

A Lei nº 14.230/2021 alterou o art. 11 da Lei nº 8.429/92.

A principal mudança foi na natureza do rol do art. 11.

• Antes da Lei nº 14.230/2021: os atos de improbidade administrativa previstos no art. 11 caracterizavam-se como um rol exemplificativo. Isso significa que, mesmo se a situação não se enquadrasse perfeitamente em um dos incisos do art. 11, ainda assim poderia ser ato de improbidade com base no caput do art. 11 desde que violasse qualquer princípio administrativo.

• Depois da Lei nº 14.230/2021: os atos de improbidade administrativa previstos no art. 11 caracterizavam-se como um rol taxativo. Somente será considerado ato de improbidade com base no art. 11 se a situação se amoldar em uma das hipóteses dos incisos desse artigo. Não é mais possível dizer que houve ato de improbidade administrativa com base no caput do art. 11.

 

LEI Nº 8.429/92

Antes da Lei n.º 14.230/2021

Depois da Lei nº 14.230/2021

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

 

 

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

I - (revogado);

II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;

II - (revogado);

III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;

III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo, propiciando beneficiamento por informação privilegiada ou colocando em risco a segurança da sociedade e do Estado;

IV - negar publicidade aos atos oficiais;

IV - negar publicidade aos atos oficiais, exceto em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado ou de outras hipóteses instituídas em lei;

V - frustrar a licitude de concurso público;

 

V - frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros;

VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo; (...)

VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades; (...)

IX - deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na legislação.

IX - (revogado);

X - transferir recurso a entidade privada, em razão da prestação de serviços na área de saúde sem a prévia celebração de contrato, convênio ou instrumento congênere, nos termos do parágrafo único do art. 24 da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990.               (Incluído pela Lei nº 13.650, de 2018).

X - (revogado);

Não havia previsão de mais incisos.

XI - nomear cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas;

XII - praticar, no âmbito da administração pública e com recursos do erário, ato de publicidade que contrarie o disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, de forma a promover inequívoco enaltecimento do agente público e personalização de atos, de programas, de obras, de serviços ou de campanhas dos órgãos públicos.

Não havia previsão de parágrafos.

§ 1º Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade.

§ 2º Aplica-se o disposto no § 1º deste artigo a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei.

§ 3º O enquadramento de conduta funcional na categoria de que trata este artigo pressupõe a demonstração objetiva da prática de ilegalidade no exercício da função pública, com a indicação das normas constitucionais, legais ou infralegais violadas.

§ 4º Os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento e independem do reconhecimento da produção de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes públicos.

§ 5º Não se configurará improbidade a mera nomeação ou indicação política por parte dos detentores de mandatos eletivos, sendo necessária a aferição de dolo com finalidade ilícita por parte do agente.

 

Segundo a doutrina, a expressão “qualquer” utilizada no caput do art. 11 demonstrava que o rol dos atos de improbidade administrativa era exemplificativo (numerus apertus). No entanto, a Lei nº 14.230/2021 modificou a redação do caput do art. 11 para inserir a expressão “caracterizada por uma das seguintes condutas”. Logo, agora, pode-se dizer que os incisos do art. 11 encerram uma lista exaustiva.

 

 

ALTERAÇÃO DA LEI 14.230/2021 NO ART. 11 DA LEI DE IMPROBIDADE

Imagine agora a seguinte situação adaptada:

João Ribeiro foi eleito para o cargo de Prefeito e iniciou seu mandato em 2013.

Durante o mandato, João colocou seu sobrenome em todas as placas, faixas e panfletos de obras e serviços municipais, para associar a sua imagem às iniciativas da Prefeitura. Em toda forma de publicidade institucional, constavam os seguintes dizeres: “Administração Ribeiro 2013-2020”.

Em fevereiro de 2021, o Ministério Público ajuizou ação de improbidade administrativa contra João.

Argumentou que o réu, com a sua conduta, teria violado diversos princípios da administração pública, dentre eles, o princípio da impessoalidade, previsto no caput do art. 37 da CF/88.

 

Princípio da impessoalidade

O caput do art. 37 da Constituição Federal prevê a impessoalidade como sendo um dos princípios constitucionais expressos/explícitos:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)

 

Conforme explica Renério de Castro Júnior (Manual de Direito Administrativo. Salvador: Juspodivm, 2024), existem três aspectos do princípio da impessoalidade:

a) Dever de isonomia: a Administração Pública deve prestar tratamento impessoal e isonômico aos particulares, com o objetivo de atender a finalidade pública, sendo vedada a discriminação odiosa ou desproporcional. Assim, na atividade administrativa não deve haver favoritismos ou perseguições.

b) Conformidade ao interesse público: a impessoalidade veda que o agente público utilize seu cargo para a satisfação de interesses pessoais. Desse modo, o agente público não pode utilizar seu cargo para se promover pessoalmente, para beneficiar pessoa querida ou prejudicar um desafeto.

c) Imputação dos atos praticados pelo agente público diretamente ao órgão: quando o agente público realiza uma atividade administrativa, ele o faz em nome do Poder público, de forma que os atos e provimentos administrativos não são imputáveis ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade da Administração Pública. Logo, as realizações governamentais não são do servidor ou da autoridade, mas sim do órgão ou entidade.

 

A Constituição traz uma regra relacionada com esse último aspecto do princípio da impessoalidade:

Art. 37 (...)

§ 1º A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.

 

Desse modo, o § 1º do art. 37 da CF/88 proíbe expressamente a promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos, como a que estava sendo feita pelo prefeito João.

 

Voltando ao caso concreto:

Em fevereiro de 2021, o Ministério Público ajuizou ação de improbidade contra João, alegando que essa publicidade realizada durante seu mandato caracterizaria ato de improbidade administrativa com fundamento no inciso I do art. 11 da Lei nº 8.429/92 (atualmente revogado):

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência; (obs: redação anterior à Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021)

(...)

 

Antes que a sentença fosse prolatada, entrou em vigor a Lei nº 14.230/2021 que, como vimos, revogou o inciso I do art. 11 da Lei nº 8.429/92.

Diante disso, João pediu que fosse absolvido sob o argumento, com a revogação do inciso I do art. 11, a conduta por ele praticada deixou de ser ato de improbidade administrativa, tendo havido a abolição da figura típica.

 

A discussão chegou até o STJ. O STJ concordou com os argumentos de João? Houve, neste caso, abolição da figura típica?

NÃO.

Considera-se que houve abolição da figura típica se a conduta – anteriormente enquadrada no inciso revogado – não for mais disciplinada em nenhum outro dispositivo do art. 11 da Lei nº 8.429/92 que ainda esteja em vigor.

Se a conduta continua proibida em outro dispositivo do art. 11, considera-se que houve continuidade típico-normativa da conduta.

Nas palavras do Ministro Relator:

“Haverá abolição da figura típica da Lei de Improbidade Administrativa quando a conduta anteriormente tipificada sob a antiga redação do art. 11 da LIA se tornar irrelevante para os fins da referida Lei e não quando tenha sido disciplinada por dispositivo legal diverso, ou seja, os novéis incisos do art. 11 da Lei n. 8.429/1992.”

 

No caso concreto, o réu, de maneira dissimulada, tentava eternizar seu mandato fazendo promoção pessoal para o presente e futuro, na medida em que remete a população local à realização de obras, campanhas de órgãos públicos etc., pela pessoa física do Prefeito e não pela Prefeitura Municipal, numa verdadeira confusão intencional.

A conduta foi inicialmente tipificada no inciso I do art. 11 que, de fato foi revogado. No entanto, essa prática está agora explicitamente prevista como ato de improbidade no novo inciso XII do art. 11 da LIA:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

(...)

XII - praticar, no âmbito da administração pública e com recursos do erário, ato de publicidade que contrarie o disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, de forma a promover inequívoco enaltecimento do agente público e personalização de atos, de programas, de obras, de serviços ou de campanhas dos órgãos públicos. (incluído pela Lei nº 14.230/2021)

 

Além disso, não é demais relembrar os termos do § 1º do art. 37 da Constituição Federal: “A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.”

Dessa forma, apesar de ter havido a revogação da hipótese genérica de responsabilização por violação genérica aos princípios administrativos anteriormente prevista no caput do art. 11 da Lei nº 8.249/92, o inciso XII do art. 11 continua punindo a violação do princípio da impessoalidade, demonstrando que houve verdadeira continuidade típico-normativa.*

 

Em suma:

Não obstante a abolição da hipótese de responsabilização por violação genérica aos princípios administrativos no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa, a nova previsão específica em seus incisos, de violação aos princípios da moralidade e da impessoalidade, evidencia verdadeira continuidade típico-normativa da conduta. 

STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1.206.630-SP, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, julgado em 27/2/2024 (Info 802).

 

DOD Plus

O julgado fala em continuidade típico-normativa, no entanto, é mais comum encontrarmos esse princípio grafado como princípio da continuidade normativo-típica.

 

Princípio da continuidade normativa

O princípio da continuidade normativa ocorre “quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário.” (Min. Gilson Dipp, em voto proferido no HC 204.416/SP).

Trata-se de um princípio inerente ao direito penal, mas que pode ser também aplicado no caso do direito administrativo sancionador.


Print Friendly and PDF