segunda-feira, 25 de março de 2024

A reiteração da conduta delitiva obsta a aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho?

Para fins unicamente didáticos, irei dividir a tese fixada pelo STJ em quatro partes:

 

PARTE 1: PRINCÍPIO DA INSIGINIFICÂNCIA: REGRA E EXCEÇÃO

O princípio da insignificância pode ser aplicado no caso de crimes tributários e no descaminho?

SIM. É plenamente possível que incida o princípio da insignificância tanto nos crimes contra a ordem tributária previstos na Lei nº 8.137/90 como também no caso do descaminho (art. 334 do CP).

O descaminho é também considerado um crime contra a ordem tributária, apesar de estar previsto no art. 334 do Código Penal e não na Lei nº 8.137/90.

 

Existe algum limite máximo de valor para que possa ser aplicado o princípio da insignificância nos crimes tributários?

SIM. A jurisprudência criou a tese de que nos crimes tributários, para decidir se incide ou não o princípio da insignificância, será necessário analisar, no caso concreto, o valor dos tributos que deixaram de ser pagos.

 

E qual é, então, o valor máximo considerado insignificante no caso de crimes tributários?

R$ 20 mil.

Assim, se o montante do tributo que deixou de ser pago for igual ou inferior a R$ 20 mil, é possível, em tese, aplicar o princípio da insignificância. Nesse sentido:

Incide o princípio da insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho quando o débito tributário verificado não ultrapassar o limite de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei n. 10.522/2002, com as atualizações efetivadas pelas Portarias n. 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda.

STJ. 3ª Seção. REsp 1.709.029/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 28/02/2018 (Recurso Repetitivo – Tema 157).

 

Qual é o parâmetro para se adotar esse valor?

Esse valor foi fixado pela jurisprudência tendo como base a Portaria MF nº 75, de 29/03/2012, na qual o Ministro da Fazenda determinou, em seu art. 1º, inciso II, “o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).”

Em outros termos, essa Portaria determina que, até o valor de 20 mil reais, os débitos inscritos como Dívida Ativa da União não serão executados.

Com base nisso, a jurisprudência construiu o seguinte raciocínio: ora, não há sentido lógico permitir que alguém seja processado criminalmente pela falta de recolhimento de um tributo que nem sequer será cobrado no âmbito administrativo-tributário. Se a própria “vítima” não irá cobrar o valor, não faz sentido aplicar o direito penal contra o autor desse fato.

Vale lembrar que o direito penal é a ultima ratio. Se a Administração Pública entende que, em razão do valor, não vale a pena movimentar a máquina judiciária para cobrar a quantia, com maior razão também não se deve iniciar uma ação penal para punir o agente.

 

Se o agente, reiteradamente, comete descaminho, ele poderá ser beneficiado com o princípio da insignificância?

Regra: NÃO.

Em regra, não se aplica o princípio da insignificância para o agente que praticou descaminho se ficar demonstrada a sua reiteração criminosa (criminoso habitual).

Se houver reiteração da conduta delitiva, em regra, não será possível a aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho independentemente do valor do tributo não recolhido, ou seja, mesmo que o descaminho envolva valores inferiores a R$ 20 mil.

A reiteração da conduta é uma circunstância apta a indicar uma conduta mais reprovável e de periculosidade social relevante, inclusive porque transmite a ideia de impunidade, reduzindo o caráter de prevenção geral da norma penal, de modo que, caso verificada, tem-se por afastado, ao menos, dois dos pressupostos para reconhecimento da atipicidade material da conduta nos moldes estabelecidos pela jurisprudência, a saber:

a) a ausência de periculosidade social da ação; e

b) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento.

 

Exceção: pode ser aplicado se for socialmente recomendável.

O julgador poderá aplicar o princípio da insignificância, mesmo havendo reiteração da conduta delitiva, se, analisando as peculiaridades do caso concreto, entender que a medida é socialmente recomendável.

Com efeito, é impossível contemplar a multiplicidade de situações fáticas que podem acarretar na prática de crime descaminho, sendo certo que, a depender das circunstâncias que tangenciem a reiteração da conduta, o julgador pode compreender que o reconhecimento da atipicidade material é a medida socialmente recomendável.

 

Nesse sentido:

A reiteração criminosa inviabiliza a aplicação do princípio da insignificância nos crimes de descaminho, ressalvada a possibilidade de, no caso concreto, as instâncias ordinárias verificarem que a medida é socialmente recomendável.

STJ. 3ª Seção. EREsp 1.217.514-RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 9/12/2015 (Info 575).

 

Conclusão da primeira parte da tese fixada no Tema 1.218:

A reiteração da conduta delitiva obsta a aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho - independentemente do valor do tributo não recolhido -, ressalvada a possibilidade de, no caso concreto, se concluir que a medida é socialmente recomendável.

STJ. 3ª Seção. REsps 2.083.701-SP, 2.091.651-SP e 2.091.652-MS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 28/2/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1218) (Info 802).

 

PARTE 2: A CONTUMÁCIA PODE SER VERIFICADA A PARTIR DE PROCEDIMENTOS FISCAIS E PENAIS, AINDA QUE NÃO DEFINITIVOS (AINDA QUE PENDENDENTES)

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 25/05/2017, durante fiscalização de rotina na rodovia interestadual, João foi preso em flagrante transportando mercadorias de origem estrangeira introduzidas clandestinamente no território nacional.

Os impostos devidos pela entrada dos referidos bens no país totalizavam o valor de R$ 5 mil.

João foi denunciado pelo crime de descaminho previsto no art. 334 do Código Penal:

Art. 334. Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

 

A defesa pediu a aplicação do princípio da insignificância.

O juiz, contudo, negou o pleito argumentando que João se estava diante de uma situação de reiteração da conduta delitiva. Isso porque João já tinha sido preso em quatro oportunidades distintas praticando descaminho: em 2010, 2013, 2014 e 2016.

Logo, para o magistrado, houve uma contumácia, isto é, a repetição de uma conduta criminosa.

 

O réu recorreu alegando que em nenhum desses quatro casos mencionados (2010, 2013, 2014 e 2016) houve condenação criminal transitada em julgado. Logo, esses episódios não poderiam ser utilizados para se caracterizar a reiteração da conduta delitiva (contumácia), sob pena de ofensa ao princípio da presunção de inocência. Esse argumento foi acolhido pelo STJ?

NÃO.

Não se exige condenações anteriores para caracterização da contumácia. Basta que tenham sido instaurados procedimentos penais ou fiscais por descaminho. Isso já é suficiente para configurar contumácia e impedir, em regra, a aplicação do princípio da insignificância.

Em suma: procedimentos pendentes de definitividade (ainda não julgados), inclusive processos administrativo-fiscais, podem ser considerados pelo juiz para formar convicção no sentido de que o réu é contumaz na conduta delitiva e que, portanto, não deve receber o princípio da insignificância.

Nesse sentido:

A existência de outras ações penais, inquéritos policiais em curso ou procedimentos administrativos fiscais, em que pese não configurarem reincidência, denotam a habitualidade delitiva do réu e afastam, por consectário, a incidência do princípio da insignificância.

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.258.294/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/4/2023.

 

A reiteração delitiva no crime de descaminho impede o reconhecimento do crime de bagatela. Além disso, apesar de não configurar reincidência, a existência de outras ações penais, inquéritos policiais em curso ou procedimentos administrativos fiscais é suficiente para caracterizar a habitualidade delitiva e, consequentemente, afastar a incidência do princípio da insignificância.

STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 2.337.741/PR, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 5/9/2023.

 

O STF já decidiu que, em se tratando de crime de descaminho, deve ser considerada a soma dos débitos consolidados para a análise do preenchimento do requisito objetivo necessário à aplicação do princípio da insignificância. Hipótese em que a notícia de que o ora agravante responde a outros procedimentos administrativos fiscais inviabiliza, neste habeas corpus, o pronto reconhecimento da atipicidade penal.

STF. 1ª Turma. HC 167235 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 10/05/2019.

 

Crime de descaminho. Infrator contumaz. Existência de diversos procedimentos administrativos fiscais em seu desfavor. Princípio da insignificância. Não aplicabilidade, não obstante a expressividade financeira do

tributo seja inferior ao patamar estipulado pelo art. 20 da Lei nº 10.522/02 (atualizado pelas Portarias nºs 75 e 130/12 do Ministério da Fazenda).

STF. 2ª Turma. ARE 1448073 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 25/09/2023.

 

Conclusão da segunda parte da tese fixada no Tema 1.218:

A contumácia pode ser aferida a partir de procedimentos penais e fiscais pendentes de definitividade.

STJ. 3ª Seção. REsps 2.083.701-SP, 2.091.651-SP e 2.091.652-MS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 28/2/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1218) (Info 802).

 

 

PARTE 3: NÃO HÁ UM LAPSO TEMPORAL MÁXIMO PARA VALORAÇÃO DESSES PROCEDIMENTOS (NÃO SE APLICA O PRAZO DE 5 ANOS DO ART. 64, I, DO CP)

Imagine outra situação hipotética:

Em 2024, durante fiscalização de rotina na rodovia interestadual, Pedro foi preso em flagrante transportando mercadorias de origem estrangeira introduzidas clandestinamente no território nacional.

Os impostos devidos pela entrada dos referidos bens no país totalizavam o valor de R$ 7 mil.

Pedro foi denunciado pelo crime de descaminho previsto no art. 334 do Código Penal.

A defesa pediu a aplicação do princípio da insignificância.

O juiz, contudo, negou o pleito argumentando que Pedro se estava diante de uma situação de reiteração da conduta delitiva. Isso porque o réu já tinha sido condenado por descaminho em 2010 e 2015.

Logo, para o magistrado, houve uma contumácia, isto é, a repetição da conduta criminosa.

Pedro recorreu alegando que ele foi condenado realmente nessas duas oportunidades. No entanto, já cumpriu pena, tendo a execução penal sido extinta em 2018. Logo, já se passaram mais de 5 anos cumprimento da pena.

Desse modo, essas condenações não poderiam ser utilizadas para mais nada, por força do art. 64, I, do Código Penal:

Art. 64. Para efeito de reincidência:

I - não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação;

(...)

 

Esse argumento de Pedro foi acolhido pelo STJ?

NÃO.

O simples fato de ter transcorrido mais de 5 anos do cumprimento ou extinção da pena não é motivo suficiente para se ignorar essa condenação. Ela pode sim continuar sendo utilizada para afastar o princípio da insignificância.

Isso porque o STJ adota o chamado “sistema da perpetuidade” segundo o qual, mesmo que ultrapassado o lapso temporal de 5 anos mencionado no art. 64, I, do CP, a condenação anterior transitada em julgado é considerada como maus antecedentes.

No mesmo sentido é o entendimento do STF:

Os maus antecedentes não se submetem ao período depurador de cinco anos, previsto no art. 64, I, do CP, aplicável apenas à reincidência.

STF. Plenário. RE 593818/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 17/8/2020.

 

Vale ressaltar, contudo, que, apesar de não haver uma desconsideração obrigatória de condenações cumpridas há mais de 5 anos, o STJ afirmou que, no caso concreto, o juiz pode afastá-las, com base nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. O magistrado deve avaliar, portanto, se a conduta anterior é contemporânea o suficiente para denotar que o agente ativo é contumaz na prática delitiva.

 

Desse modo, como terceira conclusão, tem-se que:

Para a análise da contumácia pode ser aferida a partir de procedimentos penais e fiscais pendentes de definitividade, sendo inaplicável o prazo previsto no art. 64, I, do CP, incumbindo ao julgador avaliar o lapso temporal transcorrido desde o último evento delituoso à luz dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

STJ. 3ª Seção. REsps 2.083.701-SP, 2.091.651-SP e 2.091.652-MS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 28/2/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1218) (Info 802).

 

A contumácia pode ser aferida a partir de procedimentos penais e fiscais pendentes de definitividade, sendo inaplicável o prazo previsto no art. 64, I, do CP, incumbindo ao julgador avaliar o lapso temporal transcorrido desde o último evento delituoso à luz dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

 

 

PARTE 4: EM CASO DE REITERAÇÃO, O VALOR DO TRIBUTO NÃO RECOLHIDO NÃO POSSUI RELEVÂNCIA PARA FINS DE CONCLUSÃO NO SENTIDO DA ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA

Se o agente é contumaz na prática delitiva, não interesse perquirir o valor do tributo não recolhido para fins de aplicação do princípio insignificância. Isso porque, como vimos, a contumácia, em regra, indica, por si só, uma conduta mais gravosa e de periculosidade social relevante, de modo que a reiteração, em regra, acaba por afastar os requisitos necessários para o reconhecimento da atipicidade material da conduta.

Nesse sentido:

O princípio da insignificância não tem aplicabilidade em casos de reiteração da conduta delitiva, porquanto tal circunstância denota maior grau de reprovabilidade do comportamento lesivo, sendo desnecessário perquirir o valor dos tributos iludidos pelo acusado.

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.258.294/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/4/2023.

 

Admitir a incidência do princípio da insignificância na hipótese de contumácia delitiva com base na totalidade do tributo não recolhido (inferior a 20 mil reais), teria o efeito deletério de estimular uma “economia do crime”, na medida em que acabaria por criar uma “cota” de imunidade penal para a prática de sucessivas condutas delituosas.

 

Tese fixada:

A reiteração da conduta delitiva obsta a aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho - independentemente do valor do tributo não recolhido -, ressalvada a possibilidade de, no caso concreto, se concluir que a medida é socialmente recomendável. A contumácia pode ser aferida a partir de procedimentos penais e fiscais pendentes de definitividade, sendo inaplicável o prazo previsto no art. 64, I, do CP, incumbindo ao julgador avaliar o lapso temporal transcorrido desde o último evento delituoso à luz dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. 

STJ. 3ª Seção. REsps 2.083.701-SP, 2.091.651-SP e 2.091.652-MS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 28/2/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1218) (Info 802).


Print Friendly and PDF