Dizer o Direito

sexta-feira, 15 de março de 2024

O MP possui legitimidade para propor ação civil pública questionando o valor dos advocatícios contratuais quando houver litigantes hipossuficientes e repercussão social que transcenda a esfera dos interesses particulares

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em um pequeno município do interior, a maioria dos habitantes são idosos, trabalhadores rurais, e muitos deles têm dificuldades de leitura e escrita.

Essas pessoas, ao longo dos anos, trabalharam arduamente em suas terras e agora, por conta da idade ou de incapacidades, dependem dos benefícios previdenciários para sua subsistência e a de suas famílias.

Neste cenário, os advogados João e Francisco começam a oferecer seus serviços para esses trabalhadores rurais explicando que eles poderiam ingressar com ações contra o INSS e, com isso, conseguirem a aposentadoria.

Eles convencem um grande número de pessoas a assinar contratos de prestação de serviços advocatícios. No entanto, uma cláusula peculiar é inserida nos contratos: em caso de êxito na ação, os advogados, a título de honorários advocatícios contratuais, ficariam:

• com todo o benefício previdenciário retroativo do autor (ex: o requerimento administrativo foi negado em 02/02/2020 e o benefício foi concedido judicialmente em 02/02/2024; esses quatro anos de “atrasados” ficariam com os advogados); ou

• com o valor correspondente a prestações vincendas durante três anos (caso não houvesse atrasados).

 

Mesmo com essas cláusulas muito desvantajosas, diversos trabalhadores idosos aceitaram firmar os contratos.

Ocorre que, com o passar do tempo, as famílias desses beneficiários começam a perceber que, apesar das ações serem bem-sucedidas, o resultado não trazia o alívio financeiro esperado. Pelo contrário, muitos se encontravam em situação ainda mais precária, tendo que abrir mão de uma parte significativa dos seus já limitados recursos.

As denúncias começam a chegar ao Ministério Público, que identifica um padrão preocupante: os contratantes são, na sua maioria, pessoas em situação de vulnerabilidade, sem plena compreensão dos termos aos quais estavam concordando.

Diante desta situação, o Promotor de Justiça ingressou com ação civil pública contra João e Francisco visando declarar a nulidade dessas cláusulas abusivas e buscar a restituição dos valores pagos pelos hipossuficientes.

Na ACP, o Ministério Público apontou que os autores das ações previdenciárias, na maioria das vezes, eram pessoas idosas, deficientes, moradores de zona rural, analfabetos ou semianalfabetos, ou seja, pessoas hipossuficientes, sem compreensão dos termos contratuais.

 

Contestação

Na contestação, entre outros argumentos, os advogados suscitaram a ilegitimidade ativa do Ministério Público para ingressar com a ação civil pública considerando que o Parquet estaria defendendo interesses individuais disponíveis, o que não se encontra dentre as competências do órgão.

 

Sentença e acórdão do TJ

O Juiz afastou a preliminar de ilegitimidade ativa e julgou os pedidos procedentes no sentido de:

(I) proibir a pactuação de novos contratos com valores de honorários acima do permitido;

(II) determinar a adequação das placas de propaganda no escritório de advocacia dos recorrentes, que se localizava em frente ao prédio do INSS;

(III) anular e tornar sem efeitos a cobrança de honorários de todos os contratos firmados com clientes de ações previdenciárias em trâmite na comarca que fossem superiores a 30% dos valores retroativos dos benefícios dos clientes, bem como anular a cobrança que ultrapasse o equivalente a quatro parcelas vincendas, anular as cláusulas contratuais que previam o recebimento integral dos honorários contratados para a hipótese de rescisão ou distrato;

(IV) determinar que os alvarás de levantamento de valores dos autos sejam expedidos somente em nome dos beneficiários no importe de 70% do valor retroativo depositado em juízo e 30% em nome dos advogados.

 

A sentença foi confirmada pelo Tribunal de Justiça.

 

Recurso especial

Inconformados, os advogados interpuseram recurso especial argumentando que:

• o Ministério Público não possui legitimidade para propor Ação Civil Pública que visa declarar abusivas as cláusulas de contrato de prestação de serviços advocatícios;

• a presente Ação Civil Pública não se enquadra em nenhuma das hipóteses listadas no art. 1ª da Lei nº 7.347/85, haja vista que os honorários contratuais advocatícios são direitos individuais disponíveis e que inexiste relação de consumo entre o cliente e o advogado;

• o simples fato de se tratar de pessoa idosa não atrai, por si só, a legitimidade do Ministério Público para propor Ação Civil Pública;

• não existe vício no contrato firmado entre as partes que justifique a sua anulação, devendo ser preservada a autonomia da vontade;

• o Estatuto da Advocacia assegura aos inscritos na OAB o direito de receber os honorários convencionados.

 

Os argumentos dos advogados foram acolhidos pelo STJ?

NÃO.

O Ministério Público possui legitimidade ad causam para propor Ação Civil Pública visando à defesa de direitos individuais homogêneos, ainda que disponíveis e divisíveis, quando estiver presente relevante interesse social, como no caso em que se objetiva tutelar a dignidade da pessoa humana, a qualidade ambiental, a saúde, a educação etc.

A questão ganha peculiar complexidade quando se trata da legitimidade do Ministério Público para atuar como substituto processual em ação que visa anular o contrato de prestação de serviços advocatícios firmado diretamente entre o causídico e seu cliente.

Não se nega que se trata de contrato que pertence ao direito privado, devendo prevalecer, em regra, a autonomia de vontade e a garantia do recebimento de verbas alimentares em prol do advogado.

Ocorre que, no caso concreto, restou demonstrado que se estava diante de uma situação recorrente e continuada na qual os clientes em situação de hipossuficiência eram induzidos, em razão de sua condição de vulnerabilidade, a anuir (concordar) com cobrança abusiva de honorários advocatícios contratuais. Este cenário revela uma situação que ultrapassa os limites da esfera individual.

Este tipo de situação, que por si só viola os ditames de boa-fé da autonomia privada, torna-se ainda mais sensível quando se trata de advocacia que atende os beneficiários da Previdência Social.

Isso porque, nos termos do art. 1º da Lei nº 8.213/91, a Previdência Social tem por finalidade garantir aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.

Assim, nas demandas previdenciárias, geralmente cuida-se de pessoas em situação de hipervulnerabilidade social, econômica e sanitária que estão buscando o Poder Público para garantir meios de sobrevivência.

Esta característica em especial reafirma a legitimidade do Ministério Público para propor Ação Civil Pública onde se discute a abusividade dos honorários contratuais, notadamente quando o excesso da cobrança agrava ainda mais a situação econômica do beneficiário.

Apesar de a gama de beneficiários do sistema previdenciário ir além das pessoas idosas, o art. 74 do Estatuto da Pessoa Idosa confere competência ao Ministério Público para:

• instaurar o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos da pessoa idosa (inciso I);

• atuar como substituto processual da pessoa idosa em situação de risco e promover a revogação de instrumento procuratório da pessoa idosa, nas hipóteses previstas no art. 43 do referido dispositivo, quando necessário ou o interesse público justificar (inciso IV).

 

Destaca-se ainda que, nos termos do art. 3º Lei nº 10.741/2003 (Estatuto da Pessoa Idosa), a proteção ao idoso deve ser tratada como bem jurídico a ser tutelado não só pela família, como também pela comunidade, sociedade e Poder Público:

Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.    (Redação dada pela Lei nº 14.423, de 2022)

 

Nessa linha de raciocínio, conclui-se que a modalidade de advocacia predatória que subverte o propósito da Previdência Social de mantença de seus segurados, ao atuar com desídia para aumentar a sua remuneração e ao cobrar honorários que prejudicam a subsistência dos beneficiários, configura-se como ofensa ao próprio sistema previdenciário. Logo, atinge um bem jurídico de interesse de toda coletividade.

Importante destacar que não se trata de Ação Civil Pública para veicular as contribuições previdenciárias propriamente ditas, o que é vedado pelo art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/85.

Cuida-se, em verdade, de coibir o abuso daqueles que se aproveitam da condição de vulnerabilidade de pessoas que aguardavam a concessão de benefícios da Previdência Social para impor-lhes contratos abusivos de honorários.

Com efeito, tendo em vista a competência do Parquet para zelar pelos direitos fundamentais, é de ser reconhecida a sua legitimidade para propor Ação Civil Pública que trate de honorários contratuais abusivos quando houver litigantes hipossuficientes e repercussão social que transcenda a esfera dos interesses particulares.

 

Em suma:

O Ministério Público possui legitimidade para propor ação civil pública que trate de contrato de honorários advocatícios abusivos quando houver litigantes hipossuficientes e repercussão social que transcenda a esfera dos interesses particulares, como nos de beneficiários da Previdência Social. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.079.440-RO, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/2/2024 (Info 801).


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