Dizer o Direito

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

O cônjuge sobrevivente tem direito real de habitação sobre o último imóvel em que residia com o falecido, independentemente do valor do bem ou da existência de outros imóveis a serem partilhados

Direito real de habitação

O Código Civil prevê o direito real de habitação em seu art. 1.831:

Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

 

Exemplo

João era casado com Maria. Faleceu, deixando quatro filhos e, como herança, um único apartamento, que estava em seu nome e onde morava com a esposa. Nesse caso, Maria terá direito real de habitação sobre esse imóvel.

 

O que significa isso?

A pessoa que tem direito real de habitação poderá residir no imóvel. Logo, mesmo havendo quatro filhos como herdeiros, Maria é quem terá direito de ficar residindo no apartamento.

O direito real de habitação tem por objetivo garantir o direito fundamental à moradia (art. 6º, caput, da CF/88) e o postulado da dignidade da pessoa humana (art. art. 1º, III).

 

Recai sobre o imóvel destinado à residência da família

O cônjuge sobrevivente tem direito real de habitação sobre o imóvel em que residia o casal, desde que integre o patrimônio comum ou particular do cônjuge falecido no momento da abertura da sucessão (STJ. 3ª Turma. REsp 1273222/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 18/06/2013).

 

O direito real de habitação perdura por quanto tempo?

O direito real de habitação é vitalício e personalíssimo, o que significa que o titular (ex: esposa supérstite) pode permanecer no imóvel até o momento do seu falecimento. 

Sua finalidade é assegurar que o viúvo ou viúva permaneça no local em que antes residia com sua família,

garantindo-lhe uma moradia digna.

 

O direito real de habitação precisa de inscrição no registro de imóveis?

NÃO. O direito real de habitação é ex lege, ou seja, emana diretamente da lei (art. 1.831 do CC). Devido à sua natureza, para que produza efeitos, é desnecessária a inscrição no cartório de registro de imóveis (REsp 565.820/PR).

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

Cláudia e Roberto foram casados durante 15 anos.

Durante anos, eles viveram em uma casa modesta no bairro Santa Luzia.

Com o passar do tempo e após a aposentadoria de Roberto, decidiram investir na construção de uma nova casa em um condomínio fechado chamado “Villa Serena”, mais confortável e moderno.

O casal se mudou para o imóvel em setembro de 2019 e viveu ali por pouco mais de um ano, até que Roberto faleceu, em dezembro de 2020.

Após o falecimento do marido, Cláudia, na condição de inventariante, pediu o reconhecimento do seu direito real de habitação sobre a casa do Condomínio Villa Serena, alegando que era o último imóvel que serviu como lar do casal.

Entretanto, os filhos de Roberto (Daniel, Flávia e Pedro), fruto de um primeiro relacionamento que ele teve, impugnaram o pedido. Argumentaram que:

• Cláudia e Roberto haviam morado por muito mais tempo na antiga casa do bairro Santa Luzia;

• o imóvel do condomínio era o mais valioso do espólio; e

• havia um herdeiro (Pedro) que, em razão de doença mental, é relativamente incapaz, o que exigiria atenção especial.

 

O juiz e o Tribunal de Justiça negaram o pedido de Cláudia, sustentando que o direito de habitação deveria recair sobre a casa onde o casal viveu por mais tempo, e não sobre o imóvel mais recente e mais valioso.

Inconformada, Cláudia interpôs recurso especial insistindo no argumento de que o direito real de habitação do cônjuge supérstite deveria recair sobre o último imóvel em que o casal foi domiciliado antes do óbito.

 

O STJ deu provimento ao recurso de Cláudia?

SIM.

 

A finalidade do direito real de habitação

O objetivo do direito real de habitação é permitir que o cônjuge sobrevivente permaneça no mesmo imóvel familiar em que residia ao tempo da abertura da sucessão (tempo da morte). Essa proteção não se limita à concretização do direito constitucional à moradia, mas também se justifica por razões de ordem humanitária e social, reconhecendo-se a existência de vínculo afetivo e psicológico que os cônjuges estabelecem com o imóvel onde, ao longo da convivência, constituíram não apenas uma residência, mas um verdadeiro lar.

 

A possibilidade de relativização em situações excepcionais

O direito real de habitação, embora dotado de notável envergadura no ordenamento jurídico brasileiro, não é absoluto. Em hipóteses específicas e excepcionais, quando o instituto não atender à finalidade social a que se propõe, poderá sofrer mitigação. Essa relativização, contudo, somente é admitida de modo casuístico, mediante confronto concreto entre a necessidade de prevalência do direito dos herdeiros e o direito do cônjuge sobrevivente.

Foi o caso, por exemplo, do REsp 2.151.939/RJ, no qual o STJ admitiu excepcionalmente o afastamento do direito real de habitação. Naquele caso, ficou comprovado que a cônjuge sobrevivente recebia pensão vitalícia em montante elevado, possuindo recursos financeiros suficientes para assegurar sua subsistência e moradia dignas. Além disso, os herdeiros eram nu-proprietários do imóvel, não recebiam quaisquer valores a título de pensão e precisavam alugar imóveis de terceiros para residir com seus descendentes, que também poderiam ser abrigados no imóvel inventariado:

O art. 1.831 do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que, como regra, preenchidos os requisitos legais, assegura-se ao cônjuge ou companheiro supérstite o direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, admitindo-se, contudo, a relativização desse direito em situações excepcionais em que comprovado que sua manutenção acarreta prejuízos insustentáveis aos herdeiros/proprietários do imóvel e não se justifica diante das qualidades e necessidades pessoais do convivente supérstite

Na hipótese concreta apreciada, diante da percepção de pensão vitalícia em montante elevado pela cônjuge sobrevivente e da ausência de outros recursos e imóveis pelos herdeiros, que necessitavam alugar bem para moradia própria e de seus descendentes, reconheceu-se a necessidade de afastar, excepcionalmente, o direito real de habitação em favor dos herdeiros

STJ. 3ª Turma. REsp 2.151.939/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 24/9/2024.

 

A inaplicabilidade da exceção ao caso concreto

Analisando as circunstâncias do caso de Cláudia, o STJ concluiu que não se verificavam os pressupostos que justificariam a relativização do direito real de habitação.

Os filhos unilaterais do falecido argumentaram que:

• o casal residiu por mais tempo em outro imóvel; e

• um dos herdeiros é incapaz.

 

Contudo, essas circunstâncias não se enquadram nas hipóteses excepcionais reconhecidas pela jurisprudência.

No caso concreto, não há comprovação de que a viúva receba pensão vitalícia ou disponha de recursos financeiros suficientes para sua subsistência. Ao contrário, Cláudia estava desempregada e sem perspectivas de retorno ao mercado de trabalho. Ademais, os herdeiros possuíam outros bens imóveis e residiam em local diverso, não havendo demonstração de que dependessem do imóvel objeto da controvérsia para sua moradia.

 

A inadequação do critério do maior tempo de residência

O STJ rejeitou expressamente argumento de que o direito real de habitação deveria recair sobre o imóvel em que o casal residiu por mais tempo. A lei protege o último domicílio conjugal, e não aquele onde o casal eventualmente tenha permanecido por período mais extenso no passado. O direito real de habitação destina-se a preservar a continuidade da moradia no local onde a família efetivamente residia quando da abertura da sucessão, reconhecendo os vínculos afetivos ali consolidados.

 

A irrelevância do valor venal do imóvel

O direito real de habitação não precisa recair sobre o imóvel de menor valor.

A jurisprudência do STJ já decidiu que a existência de outros bens a serem partilhados não afasta o direito real de habitação sobre o imóvel em que residia o casal. O valor econômico do bem não constitui critério legalmente previsto para a definição do imóvel objeto do direito, nem pode servir de fundamento para sua relativização.

 

Tese de julgamento:

1. O direito real de habitação do cônjuge supérstite deve recair sobre o último imóvel em que o casal foi domiciliado antes do óbito, salvo situações excepcionais devidamente comprovadas.

2. A existência de outros bens a serem partilhados não afasta o direito real de habitação sobre o imóvel em que residia o casal.

STJ. 3ª Turma. REsp 2.222.428-MG, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 11/11/2025 (Info 871).


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