Dizer o Direito

domingo, 7 de dezembro de 2025

Plano de saúde deve cobrir Neocate (fórmula à base de aminoácidos) para tratamento de alergia à proteína do leite de vaca (APLV) em crianças de até dois anos

Imagine a seguinte situação hipotética:

Mariana, com 6 meses de idade, foi diagnosticada com alergia à proteína do leite de vaca (APLV), uma condição que causa reações graves, como sangramento intestinal e comprometimento do crescimento.

O pediatra prescreveu para Mariana o Neocate, uma fórmula infantil à base de aminoácidos livres, essencial para a dieta dela, pois as fórmulas comuns ou à base de proteínas extensamente hidrolisadas não são toleradas, devido à gravidade dos sintomas. Essa fórmula, embora classificada como alimento infantil, funciona como o único tratamento nutricional para a condição de Mariana.

A mãe de Mariana, Laura, solicitou ao plano de saúde o custeio e fornecimento mensal do Neocate, que é um produto de alto custo.

O plano de saúde negou o pedido alegando que:

• o Neocate não é um medicamento (stricto sensu), mas sim um alimento/suplemento, e que o contrato exclui a cobertura de alimentos;

• a fórmula não consta no Rol de Procedimentos e Eventos da ANS;

• a solicitação tem cunho social (custo elevado) e não estritamente médico.

 

Diante dessa situação, Laura ingressou com ação de obrigação de fazer c/c pedido de indenização por dano moral contra o plano de saúde.

A controvérsia chegou até o STJ. O que foi decidido?

 

O plano de saúde é obrigado a cobrir o Neocate para o tratamento de crianças com alergia à proteína do leite de vaca?

SIM.

 

Natureza jurídica da fórmula à base de aminoácidos

O ponto central da controvérsia era em definir se a fórmula Neocate deveria ou não receber cobertura obrigatória do plano de saúde.

O plano de saúde sustentava que se tratava de mero alimento substituto do leite de vaca, sem caráter terapêutico. O STJ, contudo, adotou posicionamento diverso.

Do ponto de vista formal, a fórmula Neocate é registrada na Anvisa na categoria de alimentos infantis, e não como medicamento em sentido estrito. Esse registro reflete a classificação técnica do produto segundo a regulamentação sanitária brasileira.

Entretanto, o STJ foi além da classificação formal e analisou a função efetivamente desempenhada pela fórmula no caso concreto.

A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), órgão responsável por assessorar o Ministério da Saúde na incorporação de tecnologias ao Sistema Único de Saúde, avaliou e recomendou positivamente a fórmula à base de aminoácidos como tecnologia em saúde para tratamento de crianças de zero a vinte e quatro meses diagnosticadas com alergia à proteína do leite de vaca. Essa recomendação resultou na incorporação formal da tecnologia ao SUS por meio da Portaria nº 67/2018 do Ministério da Saúde.

 

Tratamento recomendado pela Conitec para alergia à proteína do leite de vaca

Segundo o relatório técnico elaborado pela Conitec sobre o tratamento da alergia à proteína do leite de vaca, a conduta terapêutica para essa enfermidade baseia-se em três pilares fundamentais:

1) a exclusão da proteína alergênica da dieta da criança;

2) a prescrição de dieta substitutiva que proporcione todos os nutrientes necessários para crianças até seis meses; e

3) a prescrição de alimentação complementar para crianças de seis a vinte e quatro meses.

 

As fórmulas nutricionais utilizadas no tratamento da alergia à proteína do leite de vaca incluem fórmulas à base de soja, fórmulas à base de proteína extensamente hidrolisada (com ou sem lactose) e fórmulas à base de aminoácidos. A escolha entre essas alternativas depende da idade da criança, da gravidade dos sintomas e da resposta clínica apresentada.

O relatório da Conitec estabelece que as fórmulas à base de aminoácidos são indicadas para situações específicas.

O protocolo terapêutico estabelece ainda que, para crianças com alergia à proteína do leite de vaca não mediada por IgE, a primeira opção deve ser a fórmula extensamente hidrolisada. Caso haja remissão dos sinais e sintomas, essa fórmula deve ser mantida. Se houver manutenção ou piora dos sintomas, deve ser realizada troca para fórmulas à base de aminoácidos.

 

Importância do aleitamento nos primeiros anos de vida

O Ministério da Saúde reconhece a importância fundamental do aleitamento para a saúde e o bom desenvolvimento das crianças menores de dois anos de idade. As diretrizes oficiais orientam que, até os seis meses de idade, nenhum outro tipo de alimento além do leite deve ser oferecido às crianças. Essa recomendação reforça que, para lactentes e crianças de primeira infância, o leite não representa apenas uma necessidade alimentar genérica, mas sim o componente essencial e exclusivo da nutrição nessa fase do desenvolvimento.

A dieta com fórmula à base de aminoácidos, no caso concreto, representa muito mais do que uma necessidade puramente alimentar. Trata-se, na verdade, da prescrição de tratamento médico da doença que acomete a criança. A fórmula constitui a própria terapia indicada para a alergia à proteína do leite de vaca, possibilitando que a criança receba a nutrição essencial para sua idade sem desencadear reações alérgicas graves.

Por essa razão, o STJ rejeitou o argumento do plano de saúde de que a solicitação de custeio da fórmula Neocate teria “cunho social e não médico”.

A necessidade da fórmula decorre diretamente do diagnóstico médico e da prescrição terapêutica, e não de uma questão de assistência social ou de incapacidade financeira da família. O fato de os pais não terem condições de arcar com o custo não altera a natureza médica e terapêutica da indicação.

 

Obrigatoriedade de cobertura pela operadora de plano de saúde

Superada a discussão sobre a natureza da fórmula, o STJ passou a analisar se haveria obrigação legal de cobertura pela operadora de plano de saúde, mesmo diante da ausência da fórmula no rol de procedimentos obrigatórios da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

O § 10 do art. 10 da Lei nº 9.656/1998 estabelece que as tecnologias avaliadas e recomendadas positivamente pela Conitec, cuja decisão de incorporação ao SUS já tenha sido publicada, serão incluídas no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar da ANS no prazo de até sessenta dias. Essa mesma regra está prevista no artigo 33 da Resolução Normativa 555/2022 da ANS, que dispõe sobre o rito processual de atualização do rol de procedimentos.

A fórmula à base de aminoácidos recebeu recomendação positiva da Conitec e foi formalmente incorporada ao SUS desde 2018, por meio da Portaria nº 67/2018 do Ministério da Saúde. Portanto, mesmo não constando ainda do rol da ANS no momento da negativa de cobertura, a tecnologia já havia sido reconhecida como tratamento necessário e eficaz para a alergia à proteína do leite de vaca em crianças de zero a vinte e quatro meses.

Com base nesses fundamentos, o STJ concluiu que a operadora de plano de saúde tem obrigação de fornecer a fórmula à base de aminoácidos Neocate para a criança, respeitando, contudo, a limitação etária estabelecida no próprio protocolo terapêutico da Conitec. O tratamento deve ser garantido até que a criança complete dois anos de idade, momento em que, segundo as diretrizes médicas, a necessidade da fórmula especial normalmente cessa.

 

Em suma:

A operadora do plano de saúde é obrigada a cobrir a fórmula à base de aminoácidos (Neocate) para o tratamento de crianças com alergia à proteína do leite de vaca, conforme recomendação da Conitec e incorporação da tecnologia ao SUS, limitada até os dois anos de idade. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.204.902-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 4/11/2025 (Info 870).


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