Dizer o Direito

domingo, 14 de dezembro de 2025

Militares transgêneros têm direito ao uso do nome social e à atualização dos registros funcionais, sendo vedada a reforma compulsória fundada exclusivamente na identidade de gênero

Imagine a seguinte situação hipotética:

Carla é sargento da Marinha do Brasil há doze anos.

Carla nasceu com órgão sexual masculino, razão pela qual foi designada com o sexo masculino e registrada com o nome de Carlos.

Ingressou na Marinha por meio de concurso público destinado a candidatos do sexo masculino.

Carla iniciou seu processo de transição de gênero, passando a se identificar e viver socialmente como mulher.

Posteriormente, obteve judicialmente a retificação de seu prenome e gênero no registro civil, em conformidade com o entendimento firmado pelo STF na ADI 4.275/DF, passando a constar como Carla, do sexo feminino, em seus documentos civis.

Após comunicar formalmente à Marinha sobre a alteração de seus documentos e solicitar a atualização de seus assentamentos funcionais para refletir seu nome e sua identidade de gênero, Carla foi encaminhada para avaliação médica.

A Junta de Saúde da Marinha, após examiná-la, emitiu laudo concluindo pela “incapacidade definitiva para o serviço ativo” com base no diagnóstico de “transexualismo”, classificado à época como transtorno mental segundo a CID-10.

Com fundamento nesse laudo, a Administração Militar instaurou processo de reforma compulsória, alegando que Carla estaria inapta para continuar servindo. Além disso, argumentou que ela havia ingressado na corporação por vaga destinada ao sexo masculino e que, portanto, não poderia permanecer no Corpo de Praças da Armada após a mudança de gênero, uma vez que esse corpo seria composto exclusivamente por indivíduos do sexo masculino.

Assim como Carla, existem outras pessoas que vivenciam ou vivenciaram a mesma situação.

 

ACP

Diante disso, a Defensoria Pública da União ajuizou ação civil pública contra a União questionando essa prática institucional.

A Defensoria argumentou que ser transgênero não é doença. A própria Organização Mundial da Saúde, ao atualizar a Classificação Internacional de Doenças, retirou a transexualidade do capítulo de transtornos mentais. Portanto, não há base médica ou científica para considerar uma pessoa trans como incapaz para o serviço militar apenas por sua identidade de gênero.

Sustentou também que o STF já reconheceu, com efeito vinculante para toda a Administração Pública, o direito fundamental das pessoas transgêneras à alteração de nome e gênero em seus documentos, sem necessidade de cirurgia, tratamento hormonal ou laudo médico, bastando a manifestação de vontade da pessoa. Essa decisão deveria ser obrigatoriamente observada pelas Forças Armadas, como parte da Administração Pública Federal.

A Defensoria invocou ainda o Decreto Federal nº 8.727/2016, que obriga todos os órgãos da Administração Pública Federal a reconhecer o nome social e a identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais em seus cadastros e documentos. Esse decreto se aplica também às Forças Armadas.

No plano internacional, a Defensoria citou a Opinião Consultiva nº 24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que estabelece que os Estados devem assegurar que pessoas de todas as identidades de gênero possam viver com a mesma dignidade e respeito, vedando qualquer forma de discriminação. O Brasil, como signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, está vinculado a essas obrigações.

 

O que a Defensoria pediu?

A Defensoria requereu que a União fosse condenada a reconhecer o nome social dos militares transgêneros em todos os órgãos das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica), atualizando seus registros funcionais para refletir sua identidade de gênero.

Pediu também que fosse proibida a prática de reformar ou aposentar compulsoriamente esses militares usando como única justificativa sua condição de pessoa trans.

 

Após tramitar pelas instâncias ordinárias, a questão chegou até o STJ. O Tribunal concordou com os argumentos da Defensoria Pública?

SIM.

 

A despatologização da transexualidade

Durante muito tempo, a medicina e a psicologia trataram a transexualidade como doença mental.

A CID-10 e o DSM-IV classificavam a condição como “transtorno de identidade de gênero” ou “transexualismo”.

Esse entendimento mudou nas últimas décadas.

O DSM-5 substituiu o termo por “disforia de gênero”, focando no eventual sofrimento da pessoa, e não na identidade em si.

Em 2018, a Organização Mundial da Saúde aprovou a CID-11, que retirou a transexualidade do capítulo de transtornos mentais, passando a tratá-la como “incongruência de gênero” no âmbito da saúde sexual. Com isso, a transexualidade deixou oficialmente de ser considerada doença.

Diante dessa evolução científica, não existe mais base médica para considerar a transexualidade como causa de incapacidade para o trabalho ou para o serviço militar. Pessoas trans são tão aptas quanto qualquer outra pessoa para exercer suas funções, desde que atendam aos requisitos técnicos e físicos exigidos.

A prática de reformar militares com base no diagnóstico de “transexualismo” tornou-se anacrônica e ilegal.

 

A aplicação desses fundamentos no contexto das Forças Armadas

O STJ enfrentou cada um dos argumentos apresentados pela União em seu recurso.

Sobre a alegação de incapacidade, o STJ afirmou que identidade de gênero não é doença. Se o militar cumpria suas funções normalmente antes da retificação de gênero, não faz sentido supor que a mudança documental o tornaria incapaz. Eventuais questões de saúde devem ser avaliadas individualmente, e não presumidas pelo simples fato de a pessoa ser trans.

Sobre a alegação de ausência de lei específica, o STJ rejeitou a ideia de vácuo normativo. A Constituição e os tratados internacionais já vedam a discriminação por identidade de gênero, com aplicabilidade imediata. Além disso, o Decreto nº 8.727/2016 obriga todos os órgãos federais a reconhecer o nome social e a identidade de gênero de pessoas trans.

Sobre questões práticas de alojamentos e vestiários, o STJ esclareceu que militares trans devem ter acesso às instalações correspondentes ao seu gênero. Esses ajustes não representam ônus desproporcional para a Administração.

Sobre a vedação de mulheres em certas funções, o STJ observou que a Lei nº 13.541/2017 já permite o ingresso de mulheres no Corpo de Praças da Armada. Além disso, o Estado tem o dever de promover ajustes razoáveis para garantir a permanência do militar, e não usar dificuldades burocráticas para justificar a exclusão.

Sobre a alegação de violação à legalidade e separação de poderes, o Tribunal afirmou que não está legislando, mas aplicando diretamente a Constituição e a Convenção Americana diante de práticas discriminatórias.

Sobre a vinculação ao edital, o STJ rechaçou o argumento: a retificação de gênero não pode retroagir para anular uma investidura válida.

 

A nova posição da Advocacia-Geral da União

O STJ destacou como fato relevante que, após a afetação do Incidente de Assunção de Competência, a própria Advocacia-Geral da União reviu sua posição anterior e passou a defender tese favorável aos direitos dos militares transgêneros.

A AGU reconheceu expressamente a evolução do tratamento da matéria no âmbito da Administração Pública Federal e a jurisprudência do STF, pugnando pela fixação de tese no sentido da impossibilidade de reforma de militares baseada exclusivamente na transição de gênero.

 

Conclusão e fixação das teses

Diante de todo o exposto, o STJ negou provimento ao recurso especial da União e fixou as seguintes teses jurídicas vinculantes:

No âmbito das Forças Armadas:

(a) é devido o uso do nome social e a atualização dos assentamentos funcionais e de todas as comunicações e atos administrativos para refletir a identidade de gênero do militar;

(b) é vedada a reforma ou qualquer forma de desligamento fundada exclusivamente no fato de o militar transgênero ter ingressado por vaga originalmente destinada ao sexo/gênero oposto;

(c) a condição de transgênero ou a transição de gênero não configura, por si só, incapacidade ou doença para fins de serviço militar, sendo vedada a instauração de processo de reforma compulsória ou o licenciamento 'ex officio' fundamentados exclusivamente na identidade de gênero do militar.

STJ. 1ª Seção. REsp 2.133.602-RJ, Rel. Min. Teodoro Silva Santos, julgado em 12/11/2025 (IAC 20) (Info 871).


Print Friendly and PDF