Dizer o Direito

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Títulos executivos extrajudiciais eletrônicos podem ser assinados por qualquer modalidade de assinatura eletrônica, não sendo obrigatória a certificação ICP-Brasil, desde que a integridade do documento seja conferida por provedor de assinatura

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina possui uma pequena confecção de roupas.

Para adquirir novos equipamentos, ela contratou um empréstimo junto à Sociedade de Garantia de Crédito Garanticoop, formalizando a operação por meio de uma Cédula de Crédito Bancário no valor de R$ 10.000,00.

Todo o processo de contratação ocorreu de forma eletrônica: Regina acessou a plataforma digital da cooperativa, preencheu seus dados, anexou documentos e assinou a cédula de crédito bancário utilizando o sistema “SISBR”, uma ferramenta de assinatura eletrônica própria do sistema cooperativista.

A assinatura foi realizada mediante login, senha e código de verificação enviado ao celular de Regina.

Ocorre que Regina deixou de pagar as parcelas do empréstimo.

A Garanticoop, então, ajuizou ação de execução de título extrajudicial, apresentando a cédula de crédito bancário assinada eletronicamente.

O juiz, ao analisar a petição inicial, verificou que o sistema SISBR não estava cadastrado na Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).

 

A ICP-Brasil (Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira) é um sistema nacional que funciona como uma espécie de “cartório digital”.

Quando você assina um documento em papel, pode ir ao cartório reconhecer firma para garantir que aquela assinatura é realmente sua.

No mundo eletrônico, a ICP-Brasil cumpre papel semelhante: ela credencia empresas (chamadas de Autoridades Certificadoras) que emitem certificados digitais, os quais permitem assinar documentos eletronicamente com a mesma validade jurídica de uma assinatura reconhecida em cartório por autenticidade.

O certificado digital emitido por uma entidade vinculada à ICP-Brasil é considerado o padrão mais seguro de assinatura eletrônica no Brasil, pois passa por rigorosos controles de identificação do titular.

No Brasil, a infraestrutura de chaves públicas é de responsabilidade de uma autarquia federal, o ITI - Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, ligado à Presidência da República.

A MP 2.200-2/2001 foi o ato normativo instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil):

Art. 1º Fica instituída a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.

 

Voltando ao caso concreto:

O juiz determinou que a exequente emendasse a inicial para comprovar que a ferramenta de assinatura estava vinculada ao ICP-Brasil, sob pena de indeferimento da petição inicial.

A Garanticoop interpôs agravo de instrumento, mas o Tribunal de Justiça manteve a decisão do magistrando, entendendo que, sem a certificação ICP-Brasil, não seria possível confirmar a autenticidade da assinatura eletrônica, de modo que o documento não constituiria título executivo extrajudicial válido.

Inconformada, a Garanticoop interpôs recurso especial, argumentando que a exigência de vinculação ao ICP-Brasil seria descabida, pois a própria legislação admite outras formas de comprovação de autoria e integridade de documentos eletrônicos, especialmente quando as partes aceitam o meio de assinatura utilizado.

 

O STJ manteve o acórdão do TJ? O juízo pode, de ofício, afastar a eficácia de um título executivo extrajudicial sob o argumento de que as assinaturas eletrônicas nele apostas não possuem certificação emitida pelo sistema da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil?

NÃO.

 

Violação ao art. 10, § 2º, da MP 2.200-2/2001

A decisão recorrida (acórdão do TJ) violou o § 2º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2/2001.

Esse dispositivo estabelece que os documentos eletrônicos podem ter sua autoria e integridade comprovadas mesmo quando utilizados certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que o meio de comprovação seja admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem o documento for oposto. Veja a redação legal:

Art. 10.  (...)

§ 2º O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.

 

Em outras palavras, a própria legislação que criou a ICP-Brasil já previu, desde o início, que ela não seria o único caminho para conferir validade a documentos eletrônicos. O legislador reconheceu a autonomia das partes para elegerem outros meios de autenticação, respeitando a liberdade contratual e a evolução tecnológica que naturalmente traria novas formas de assinatura eletrônica.

 

A executada aceitou esse meio de assinatura

O título de crédito foi assinado pela própria executada utilizando o sistema SISBR. Ora, se a devedora utilizou essa ferramenta para assinar o documento, isso indica, por si só, que ela aceitou aquele meio de assinatura como válido. Não faria sentido que a devedora assinasse um contrato por determinado sistema e depois pudesse se beneficiar de uma suposta invalidade desse mesmo sistema para escapar da execução. Assim, tendo havido aceitação tácita do meio de assinatura utilizado, não caberia ao magistrado, atuando de ofício, afastar a validade do documento e impedir sequer a citação da parte devedora.

O caminho correto seria citar a executada e permitir que ela, querendo, apresentasse as defesas que entendesse cabíveis, incluindo eventual questionamento sobre a autenticidade da assinatura.

 

Distinção entre atos pré-processuais e atos processuais

Os níveis de autenticação exigidos para documentos e assinaturas em atos pré-processuais praticados entre particulares não se confundem com os níveis de autenticação exigidos para a prática de atos processuais perante o Poder Judiciário.

A Lei nº 11.419/2006, que trata do processo judicial eletrônico, estabelece requisitos específicos para assinaturas em atos praticados dentro do processo, exigindo certificado digital ICP-Brasil ou cadastro no sistema do Poder Judiciário. Contudo, essa exigência não se aplica aos documentos produzidos entre particulares antes do processo, como contratos e títulos de crédito. São esferas distintas, e a decisão recorrida equivocou-se ao aplicar regras do processo eletrônico a documentos pré-processuais.

 

Excesso de formalismo e inadequação à realidade atual

Exigir a certificação exclusiva pela ICP-Brasil para todas as relações privadas pré-processuais representa excesso de formalismo incompatível com a intenção legislativa e com a realidade do mundo contemporâneo.

 

A nova redação do art. 784, § 4º, do CPC pela Lei nº 14.620/2023

É importante pontuar que recentemente foi editada a Lei nº 14.620/2023, que acrescentou o § 4º ao art. 784 do CPC:

Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais:

(...)

XI-A - o contrato de contragarantia ou qualquer outro instrumento que materialize o direito de ressarcimento da seguradora contra tomadores de seguro-garantia e seus garantidores;   (Incluído pela Lei nº 14.711, de 2023)

 

Esse novo dispositivo passou a admitir expressamente, nos títulos executivos extrajudiciais constituídos ou atestados por meio eletrônico, qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista em lei, dispensando inclusive a assinatura de testemunhas quando a integridade do documento for conferida por provedor de assinatura. Essa alteração legislativa evidenciou a intenção do legislador de ampliar as formas de assinatura aceitas para títulos executivos, afastando a exclusividade da certificação ICP-Brasil.

Essa mudança legislativa acompanha a realidade do mundo atual, em que as relações comerciais e financeiras são cada vez mais digitalizadas e utilizam diversas tecnologias de autenticação.

 

Em suma:

Os documentos eletrônicos podem ter sua autoria e integridade comprovada, ainda que utilizados certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento. 

STJ. 4ª Turma. REsp 2.205.708-PR, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 4/11/2025 (Info 871).

 

No mesmo sentido:

A legislação admite qualquer modalidade de assinatura eletrônica na constituição e ateste de títulos executivos extrajudiciais, desde que a integridade do documento seja conferida pela entidade provedora do serviço.

A utilização de certificado não emitido pela ICP-Brasil não invalida, por si só, a assinatura eletrônica adotada pelas partes, devendo eventual impugnação ser feita por aquele a quem o documento é oposto.

Os níveis de autenticação exigidos para atos processuais não se confundem com aqueles aplicáveis aos atos pré-processuais firmados entre particulares.

Negar validade a título de crédito eletrônico apenas por ausência de certificação ICP-Brasil caracteriza formalismo excessivo e contrário à autonomia das partes.

STJ. 3ª Turma. REsp 2.150.278/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 24/9/2024.


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