sexta-feira, 12 de dezembro de 2025
Multas administrativas podem ser fixadas em múltiplos do salário mínimo, pois essa utilização não configura indexação econômica vedada pela Constituição
Imagine a seguinte situação
hipotética:
A Drogaria Saúde & Vida Ltda.
é um estabelecimento farmacêutico localizado em São Paulo.
Durante fiscalização de rotina, o
Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP) constatou que a
drogaria estava funcionando sem a presença de farmacêutico responsável técnico
devidamente habilitado e registrado no Conselho.
Diante dessa irregularidade, o
CRF-SP aplicou multa administrativa no valor de 2 salários mínimos, com
fundamento na Lei Federal nº 3.820/1960 (Lei do Conselho de Farmácia) e Lei
federal nº 5.724/1971 (Lei que fixa o valor das multas aplicadas pelo Conselho
de Farmácia).
Confira a infração de não ter farmacêutico na drogaria,
prevista no art. 24 da Lei nº 3.824/1960:
Art. 24. - As emprêsas e
estabelecimentos que exploram serviços para os quais são necessárias atividades
de profissional farmacêutico deverão provar perante os Conselhos Federal e
Regionais que essas atividades são exercidas por profissional habilitado e
registrado.
Parágrafo único - Aos infratores dêste
artigo será aplicada pelo respectivo Conselho Regional a multa de Cr$ 500,00
(quinhentos cruzeiros) a Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros).
Veja agora a redação do art. 1º da Lei nº 5.724/1971:
Art. 1º As multas previstas no
parágrafo único do artigo 24 e no inciso II do artigo 30 da Lei nº 3.820, de 11
de novembro de 1960, passam a ser de valor igual a 1 (um) salário-mínimo a
3(três) salários-mínimos regionais, que serão elevados ao dôbro no caso de
reincidência.
Inconformada, a Drogaria ajuizou ação anulatória de débito
fiscal, alegando, dentre outros argumentos, que a multa seria inconstitucional
por violar o art. 7º, IV, da Constituição Federal, que estabelece ser “vedada
sua vinculação [do salário mínimo] para qualquer fim”:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores
urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
IV - salário mínimo , fixado em lei,
nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e
às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário,
higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe
preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para
qualquer fim;
Súmula vinculante 4: Salvo os casos previstos na Constituição, o
salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem
de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial.
O juiz federal julgou procedente
o pedido, declarando a inconstitucionalidade da multa, sentença mantida pelo
Tribunal Regional Federal.
O Conselho Regional de Farmácia
interpôs recurso extraordinário, sustentando que a vedação constitucional não
se aplicaria ao caso, pois a multa administrativa não atua como indexador
econômico, mas sim como sanção do direito administrativo sancionador.
O STF deu provimento ao
recurso do Conselho de Farmácia? É constitucional o uso de múltiplos do salário
mínimo como parâmetro para a fixação de multa administrativa?
SIM.
Mudança de entendimento
O STF já havia decidido, em
diversas oportunidades, que o art. 1º da Lei nº 5.724/1971 seria
inconstitucional em face da vedação de vinculação ao salário mínimo
estabelecida pelo art. 7º, IV. Veja:
A multa administrativa prevista no art. 1º da Lei 5.724/1971 não
pode ser fixada com base em múltiplos do salário mínimo, por vedação
constitucional à sua vinculação.
STF. Tribunal Pleno. ARE 1.255.399 AgR-ED-EDv-AgR, Rel. Min.
Alexandre de Moraes, julgado em 6/7/2021.
É ilegítima a multa administrativa fixada com base em salário
mínimo, segundo reiterada jurisprudência da Corte.
STF. 1ª Turma.
ARE 1.398.452 AgR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 7/12/2022.
A multa administrativa vinculada ao salário mínimo é
inconstitucional, nos termos da vedação do art. 7º, IV, da Constituição.
STF. 1ª Turma.
ARE 1.347.317 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 12/5/2022.
O STF afirmou, contudo, que era
necessário mudar seu entendimento.
Por que foi necessário
proibir o salário mínimo como indexador econômico?
Essa proibição teve como objetivo
evitar que o salário mínimo se tornasse um “indexador econômico” (um índice de
reajuste).
Se a Constituição permitisse que
o salário mínimo pudesse servir como indexador econômico, o valor e o preço de
vários benefícios, produtos e serviços seriam fixados em salário mínimo.
Ex: se não houvesse a vedação, o
locador poderia estabelecer no contrato que o valor do aluguel seria de 2
salários mínimos, de forma que todas as vezes que ele aumentasse, o valor pago
também seria majorado.
Ex2: o colégio poderia fixar o
valor da mensalidade em metade do salário mínimo.
Ex3: a academia poderia
estabelecer o valor da mensalidade em 1/3 do salário mínimo etc.
Desse modo, se isso fosse
permitido, haveria uma pressão muito grande no momento de aumentar o salário
mínimo no país, considerando que ele iria influenciar direta e imediatamente no
preço de inúmeros bens. Além disso, todas as vezes que o salário mínimo
subisse, o preço desses bens e serviços iriam também aumentar automaticamente,
gerando inflação e fazendo com que não houvesse ganho real para o trabalhador,
já que todas as outras coisas também ficariam mais caras.
Isso foi muito importante
principalmente nas décadas de 1980 e 1990, período no qual a sociedade
brasileira viveu momento de hiperinflação e recorreu a diversos artifícios para
tentar mitigar os efeitos da perda do poder de compra da moeda.
Vale ressaltar, contudo, que, a
partir de uma interpretação teleológica do art. 7º, IV, parte final, da
Constituição Federal, conclui-se que a vedação ao uso do salário mínimo “para
qualquer fim” não é absoluta. O que a Constituição proíbe é o uso do salário
mínimo como indexador econômico, ou seja, como parâmetro para reajustes
automáticos de preços, contratos e salários.
A finalidade da norma é dupla:
por um lado, protege a economia brasileira contra os efeitos perversos da
indexação, que alimentam a inflação; por outro, protege os próprios
trabalhadores, especialmente os que recebem o salário mínimo, ao permitir que o
governo implemente uma política de valorização real do piso salarial sem temer
as consequências econômicas de uma cascata de reajustes.
Da ausência de efeito de
indexação econômica decorrente de aplicação de multa administrativa
Diferentemente de verbas
remuneratórias (“salário”), a vinculação do salário mínimo a multas não tem
sequer o potencial de gerar efeito de indexação econômica.
A imposição de multa constitui
evento pontual, decorrente de infração específica, e não se confunde com
valores de natureza continuada, como a remuneração. Trata-se de prestação
eventual, vinculada à violação de obrigações. Essa natureza episódica impede
que a multa possa servir de referencial para o reajuste de outros valores ou
para a correção monetária periódica.
Adicionalmente, o valor da multa
não se relaciona diretamente com o poder de compra de trabalhadores, como
ocorre em verbas remuneratórias.
Por essa razão, não há
impedimento que justifique a proibição de que as multas administrativas sejam
fixadas em salários mínimos, conforme já decidiu o STF.
Potenciais impactos de
eventual decisão de inconstitucionalidade
Vale ressaltar, por fim, que a
declaração de inconstitucionalidade da vinculação da multa ao salário-mínimo
geraria enorme insegurança jurídica. Isso porque esse critério é amplamente
utilizado em diferentes ramos do Direito (Código Penal, CPC, CPP etc.).
Além disso, comprometeria o poder
sancionador dos Conselhos de fiscalização profissional, prejudicando o controle
de setores essenciais, como o da saúde pública.
A técnica de congelamento
da base de cálculo, adotada pelo STF em casos como a ADPF 325, é aplicável às
multas administrativas?
Não. A técnica de congelamento da
base de cálculo foi uma solução interpretativa criada pelo STF para
compatibilizar o art. 7º, IV, da Constituição com normas que utilizavam o
salário mínimo como parâmetro para fixação de verbas remuneratórias. Em vez de
declarar a inconstitucionalidade total dessas normas, o STF adotou
interpretação conforme à Constituição: o valor devido seria calculado com base
no salário mínimo vigente na data do julgamento, permanecendo “congelado” a
partir de então. Dessa forma, eventuais reajustes futuros do salário mínimo não
atualizariam automaticamente o valor da verba, eliminando o efeito de indexação
econômica.
O STF utilizou o congelamento da
base de cálculo em diversos julgados que tratavam de pisos salariais e verbas
remuneratórias fixados em múltiplos do salário mínimo. O caso paradigmático é a
ADPF 325, que analisou a Lei 3.999/1961, a qual estabelecia o piso salarial de
médicos, cirurgiões-dentistas e seus auxiliares em múltiplos do salário mínimo.
O STF julgou a norma constitucional, mas determinou que os valores fossem
calculados com base no salário mínimo vigente na data da publicação da ata de
julgamento, vedando reajustamentos automáticos futuros.
A mesma técnica foi adotada em
outros precedentes: ADPF 149, ADPF 171, ADI 4.726 e ADPF 151.
Por que essa técnica foi
necessária nesses casos? Porque as verbas remuneratórias possuem
características que geram potencial de indexação econômica. É precisamente esse
efeito cascata que a vedação do art. 7º, IV, da Constituição Federal busca
evitar.
Por que a técnica não se aplica
às multas administrativas? Porque as multas administrativas possuem natureza
completamente distinta das verbas remuneratórias, de modo que não apresentam
qualquer potencial de indexação econômica. Além disso, o valor da multa não se
relaciona diretamente com o poder de compra dos trabalhadores, diferentemente
do que ocorre com verbas remuneratórias. O reajuste do salário mínimo não gera,
por meio das multas, qualquer pressão inflacionária ou cadeia de aumentos na
economia.
Tese fixada:
A fixação de multa administrativa em múltiplos do
salário mínimo não viola o disposto no art. 7º, IV, da Constituição Federal.
STF. Plenário.
ARE 1.409.059/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 05/11/2025 (Repercussão
Geral 1.244) (Info 1197).

