Dizer o Direito

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

As declarações proferidas durante trote universitário, dirigidas a grupo específico e posteriormente divulgadas em redes sociais, não configuram dano moral coletivo

Imagine a seguinte situação adaptada:

Marcelo era aluno do curso de Medicina de uma Universidade no interior do Estado.

Em fevereiro de 2019, ele foi convidado a participar do trote universitário de recepção aos calouros, organizado pelos alunos veteranos.

Durante o evento, Marcelo conduziu os novos estudantes a entoarem o que ele apresentou como sendo o “hino da instituição”. Na verdade, tratava-se de um juramento com conteúdo machista e de cunho sexual. As declarações incluíam frases que objetificavam as mulheres e as colocavam em posição de submissão, além de promover comportamentos desrespeitosos em relação às estudantes de outros cursos.

O juramento foi entoado por diversos calouros, com risadas e aplausos da plateia, composta majoritariamente por estudantes. O evento foi filmado por um dos presentes, e o vídeo logo se espalhou pelas redes sociais, gerando repercussão nacional.

Diversos perfis, veículos de imprensa e coletivos feministas se manifestaram repudiando o conteúdo, apontando-o como ofensivo à dignidade das mulheres e perpetuador da cultura do estupro.

Diante da repercussão, o Ministério Público do Estado ajuizou ação civil pública contra Marcelo, pedindo a sua condenação ao pagamento de indenização por danos morais coletivos (no valor de quarenta salários-mínimos) e por danos sociais.

Segundo o MP, o discurso de Marcelo ofendeu a dignidade de todas as mulheres, feriu princípios constitucionais fundamentais e desestabilizou a tranquilidade social ao promover discriminação, machismo e misoginia.

O juiz julgou o pedido improcedente, entendendo que, apesar de vulgar e imoral, o discurso não causou ofensa à coletividade das mulheres, pois foi dirigido apenas a um grupo restrito de pessoas.

O Tribunal de Justiça manteve a sentença, destacando que as declarações foram proferidas em tom jocoso, tanto por Marcelo quanto pelos participantes que as repetiram de livre e espontânea vontade, o que eliminava a gravidade necessária para configurar dano coletivo.

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso especial ao STJ, sustentando, dentre outros argumentos, que a conduta ultrapassou os limites de uma brincadeira, reforçando o machismo, atentando contra a dignidade feminina e estimulando a cultura do estupro, devendo ser reconhecido o dano moral coletivo, especialmente diante da ampla repercussão negativa nas redes sociais e das manifestações de repúdio.

 

O STJ deu provimento ao recurso do Ministério Público e condenou Marcelo ao pagamento de indenização por danos morais coletivos e danos sociais?

NÃO.

 

Liberdade de expressão na sociedade democrática moderna

A liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais da sociedade democrática moderna, encontrando amparo não apenas no ordenamento jurídico pátrio, mas também nos principais tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

Essa liberdade não se manifesta apenas como direito individual, mas como garantia institucional indispensável ao funcionamento do regime democrático, permitindo o livre debate de ideias, a formação de opinião pública e o controle social do poder. Assim, a liberdade de manifestação do pensamento é direito de personalidade que consiste na exteriorização de conceitos, opiniões e juízos de valor sobre os mais diversos objetos.

Contudo, nenhum direito fundamental é absoluto, e a liberdade de expressão encontra limites, tanto explícitos quanto implícitos, no texto constitucional.

 

Limites explícitos e implícitos da liberdade de expressão

Os limites explícitos decorrem de vedações expressas, como a proibição do anonimato (art. 5º, IV).

Os limites implícitos surgem da necessária harmonização com outros direitos fundamentais de igual hierarquia, como a dignidade da pessoa, a honra, a imagem e a intimidade.

O excesso no exercício da liberdade de expressão deve ser combatido pelo direito, especialmente quando se manifesta por meio de discursos que incitem à violência, promovam a discriminação ou atentem gravemente contra a dignidade humana.

 

Intervenção estatal é excepcional

Vale ressaltar, no entanto, que a intervenção estatal no âmbito da expressão deve ser excepcional e cuidadosamente delimitada. A regulação do discurso em sociedades democráticas exige extrema cautela, pois o risco de censura indevida pode sufocar o debate público e comprometer a própria democracia. Daí a necessidade de critérios rigorosos para distinguir entre manifestações legítimas, ainda que controversas ou ofensivas, e aquelas que efetivamente ultrapassam os limites constitucionalmente toleráveis.

 

O dano moral coletivo é também excepcional

O dano moral coletivo é um instituto jurídico de aplicação excepcional, caracterizado pela lesão à esfera extrapatrimonial de uma determinada comunidade. Para sua configuração, exige-se a comprovação rigorosa da violação efetiva de valores fundamentais compartilhados pela coletividade. Não se confunde com a simples desaprovação moral de determinada conduta, pois pressupõe a violação de interesse transindividual juridicamente tutelado.

A caracterização do dano moral coletivo requer que a conduta ofensiva atinja um elevado grau de reprovabilidade, ultrapassando os limites do interesse meramente individual. É necessário que a ofensa, por sua gravidade e repercussão, afete o núcleo essencial dos valores sociais.

Trata-se de conduta que agride, de forma injusta e intolerável, o ordenamento jurídico e os valores éticos fundamentais da sociedade, gerando um sentimento coletivo de repulsa e indignação.

O dano moral coletivo é aferível in re ipsa, pois decorre da própria lesão a interesses essencialmente coletivos, cuja reprovação social é elevada. Contudo, para que ele se caracterize “não basta a mera infringência à lei ou ao contrato”. “É essencial que o ato antijurídico praticado atinja alto grau de reprovabilidade e transborde os lindes do individualismo, afetando, por sua gravidade e repercussão, o círculo primordial de valores sociais. Com efeito, para não haver o seu desvirtuamento, a banalização deve ser evitada" (STJ. 3ª Turma. REsp 1.726.270/BA, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 27/11/2018.).

 

Da necessária cautela ante o fenômeno da amplificação digital

A mera capacidade de mobilização da opinião pública digital não constitui parâmetro juridicamente idôneo para aferir a gravidade objetiva da lesão exigida para caracterização do dano coletivo. Do contrário, estaríamos subordinando a aplicação de institutos jurídicos excepcionais à lógica algorítmica das plataformas digitais e aos critérios subjetivos e voláteis da viralização de conteúdo.

É necessário demonstrar nexo causal direto entre a conduta específica do agente e a alegada lesão coletiva, não bastando a repercussão posterior provocada por terceiros ou a dimensão que o fato adquiriu nas mídias sociais. Deve-se distinguir entre a repercussão negativa nas redes sociais e a efetiva lesão a interesse transindividual juridicamente protegido.

 

Dos elementos configuradores

Para a caracterização do dano moral coletivo, impõe-se a presença cumulativa dos seguintes elementos:

i) conduta antijurídica;

ii) lesão a interesse transindividual;

iii) nexo de causalidade; e

iv) gravidade objetiva da lesão.

 

O segundo elemento exige demonstração de ofensa a valores fundamentais compartilhados pela coletividade, com potencial de abalar a ordem social ou atingir direitos de grupos determinados.

 

Analisando o caso concreto

No caso sob análise, as manifestações foram dirigidas a grupo específico e restrito de estudantes universitários, em evento privado, sem intenção inicial de divulgação ampla. A posterior repercussão em redes sociais decorreu de ação de terceiros, circunstância não provocada diretamente pelo réu.

É fundamental reconhecer que os efeitos das declarações na esfera pessoal devem ser analisados casuisticamente, em relação a cada um dos participantes do evento. Nem todos necessariamente sofreram o mesmo impacto, devendo-se considerar: a percepção individual do contexto; o grau de constrangimento efetivamente experimentado; a capacidade de discernimento sobre a natureza das manifestações; e a participação voluntária no evento.

Embora o conteúdo das declarações seja moralmente reprovável e mereça censura social, a análise conjunta dos elementos probatórios (contexto jocoso, participação voluntária dos envolvidos, ausência de reação negativa imediata, direcionamento a grupo específico e restrito), sugere que a resposta mais adequada deve se dar no plano individual, e não necessariamente no âmbito da responsabilidade civil coletiva.

Assim, a configuração do dano moral coletivo exige rigor na análise de seus elementos constitutivos, não podendo resultar de mera reprovação moral de determinada conduta ou de sua repercussão midiática. No caso dos autos, mostram-se ausentes os requisitos cumulativos para caracterização do instituto, especialmente a demonstração de lesão a interesse transindividual e a gravidade objetiva da lesão que transborde os limites individuais.

O STJ afirmou que esta decisão não implica tolerância ou aprovação do conteúdo discriminatório das manifestações, que permanecem merecendo absoluto repúdio moral e social. Trata-se, antes, de reconhecer os limites da responsabilidade civil coletiva e a necessidade de critérios rigorosos para sua configuração, preservando-se o equilíbrio entre a proteção de direitos fundamentais e a liberdade de expressão em suas múltiplas manifestações.

 

Teses de julgamento:

A configuração do dano moral coletivo exige demonstração de conduta antijurídica, lesão a interesse transindividual, nexo de causalidade e gravidade objetiva da lesão.

A repercussão negativa em redes sociais não constitui, por si, parâmetro juridicamente idôneo para caracterizar dano moral coletivo.

STJ. 4ª Turma. REsp 2.060.852-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 14/10/2025 (Info 870).


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