quarta-feira, 17 de dezembro de 2025
Hotel responde pelos danos causados à saúde de uma criança em decorrência de acidente provocado pela fixação inadequada de extintor de incêndio em suas dependências
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Mariana e Eduardo decidiram tirar
férias com o filho, Gabriel, de apenas 5 anos, em um resort à beira-mar chamado
“Costa do Sol Eco Resort”, conhecido por sua ampla estrutura de lazer voltada
para famílias.
Um dos principais atrativos do
hotel era o “Clube Pequenos Navegantes”, uma área especialmente projetada para
recreação infantil.
Durante uma tarde de brincadeiras
no clube, Gabriel, acompanhado de sua avó, aproximou-se de um extintor de
incêndio que estava posicionado sobre um carrinho com rodas, sem qualquer
fixação ou barreira de segurança.
O equipamento, que pesava cerca
de 100 kg, tombou ao ser tocado pela criança, caindo sobre seu abdômen. O
impacto causou a fratura de seis costelas e uma grave lesão no fígado, exigindo
internação hospitalar por 12 dias.
A família precisou custear o
transporte médico de urgência, além de hospedagem extra, passagens aéreas e o
fretamento de uma aeronave com estrutura adequada para o retorno de Gabriel a
São Paulo.
Ação de indenização
Mariana, Eduardo e Gabriel
ajuizaram ação de indenização por danos morais e materiais contra hotel resort.
O juiz julgou o pedido
improcedente argumentando que não havia responsabilidade do hotel considerando
que o acidente teria sido causado por descuido da criança e de seus
responsáveis.
O Tribunal de Justiça manteve a
sentença.
Inconformados, os autores interpuseram
recurso especial alegando que:
• Houve falha na prestação do
serviço por parte do hotel, pois o extintor de incêndio, de grande porte, não
estava fixado adequadamente e foi colocado em uma área de recreação infantil, o
que configuraria risco previsível e evitável;
• A responsabilidade do hotel é
objetiva, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, e o caso se enquadra
como acidente de consumo (fato do serviço);
• Não houve culpa dos pais ou da
criança, pois ela estava sob vigilância no momento do acidente e, mesmo assim,
o extintor tombou — o que evidencia falha de segurança estrutural.
O STJ deu provimento ao
recurso dos autores? O hotel foi condenado a indenizar?
SIM.
O inquérito do hotel não
serve como prova
O hotel havia produzido um
inquérito administrativo interno para apurar o ocorrido. Contudo, o STJ
considerou que esse documento não poderia ser utilizado como prova no processo
judicial. Isso porque o inquérito foi feito de forma unilateral pelo próprio
hotel, ouvindo apenas seus funcionários, sem que a família da criança tivesse
oportunidade de participar, fazer perguntas ou apresentar sua versão. Isso
viola princípios básicos do direito processual, como o contraditório e a ampla
defesa.
Tal documento poderia até ser
útil para questões internas do hotel, como eventual responsabilização de
funcionários, mas não tem valor como prova judicial.
A relação de consumo e a
responsabilidade objetiva
A situação configura uma típica
relação de consumo. De um lado, a família era consumidora dos serviços de
hospedagem. De outro, o hotel era fornecedor desses serviços. Esse
enquadramento é importante porque o Código de Defesa do Consumidor estabelece
regras específicas para esse tipo de relação.
A principal delas, para o caso em análise, é a
responsabilidade objetiva prevista no art. 14 do CDC:
Art. 14. O fornecedor de serviços
responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos
causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem
como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
Isso significa que o fornecedor
de serviços responde pelos danos causados aos consumidores independentemente de
culpa. Não é necessário provar que o hotel agiu com negligência ou imprudência.
Basta demonstrar três elementos:
que houve um defeito na prestação do serviço, que ocorreu um dano e que existe
uma ligação entre o defeito e o dano (nexo causal).
O CDC também define quando um
serviço é considerado defeituoso: quando não oferece a segurança que o
consumidor legitimamente espera.
O STJ entendeu que todos esses
elementos estavam presentes no caso, o que afastava a tese de culpa exclusiva
da vítima levantada pelo hotel.
Por que os pais não tiveram
culpa?
Um dos principais argumentos do
hotel era que os pais teriam falhado no dever de vigiar a criança.
O STJ rejeitou essa tese.
A chamada culpa in vigilando
só existiria se os responsáveis não tivessem exercido adequadamente o dever de
cuidar da criança. Porém, os autos demonstravam justamente o contrário: o
menino não estava sozinho nem abandonado. Ele se encontrava na área de
recreação acompanhado de sua avó, que estava sentada em um quiosque próximo.
O próprio hotel, em sua defesa,
reconheceu que a criança estava sob a guarda dos pais e avós.
Para o STJ, essa circunstância
afastava definitivamente qualquer alegação de que a família teria sido
negligente.
A presença da avó no local não
foi suficiente para evitar o acidente, mas isso não significa que ela tenha
sido descuidada.
O STJ utilizou o conceito de “homem
médio”, que representa uma pessoa comum dotada de prudência e bom senso. Essa
pessoa jamais imaginaria que um extintor pudesse estar mal fixado a ponto de
tombar sobre alguém. Em áreas de recreação, é natural e razoável que os pais
presumam que o ambiente foi preparado para receber crianças com segurança.
A expectativa de segurança
em ambientes infantis
Quando um estabelecimento
disponibiliza uma área voltada ao público infantil, cria nos usuários uma
expectativa legítima de que aquele ambiente seja completamente seguro. Essa
expectativa não é um capricho. Ela decorre do fato de que crianças são seres em
formação, com capacidade de discernimento reduzida, e por isso especialmente
vulneráveis. Um adulto pode identificar situações de risco e evitá-las; uma
criança de cinco anos não tem essa mesma capacidade.
Por isso, ambientes infantis
exigem cuidados redobrados.
O STJ também destacou que muitos
pais escolhem hotéis com áreas de recreação justamente porque esperam que seus
filhos possam brincar com segurança enquanto eles aproveitam outras
instalações. A existência de monitores e recreadores é um atrativo precisamente
porque transmite a ideia de que as crianças estarão protegidas.
No caso concreto, os monitores
sequer estavam presentes no local no momento do acidente.
O defeito na prestação do
serviço
O acidente não foi uma simples
fatalidade imprevisível. Houve um defeito na prestação do serviço. Isso porque o
hotel mantinha um extintor de 100kg em uma área de recreação infantil sem
qualquer fixação adequada. O equipamento estava apenas apoiado sobre rodas, sem
estar preso a uma parede, pilar ou qualquer outra estrutura.
Após o acidente, o próprio hotel
providenciou a fixação do extintor por meio de correntes em um pilar. Essa
providência demonstrou que a medida de segurança era simples e perfeitamente
viável. Além disso, fica implicitamente reconhecido que a situação anterior era
inadequada.
Não seria possível que uma
criança de cinco anos, pesando cerca de 20kg, conseguisse derrubar um
equipamento de 100kg se ele estivesse devidamente fixado. Se o extintor tombou,
é porque não estava adequadamente instalado.
Além disso, por se tratar de uma
área frequentada por crianças, o hotel deveria ter previsto que elas poderiam
tocar no equipamento, seja por curiosidade, seja confundindo-o com um brinquedo
devido às rodas e à alça.
O risco não pode ser
transferido ao consumidor
O risco da atividade é do
fornecedor, não do consumidor. O hotel explora comercialmente o serviço de
hospedagem e obtém lucro com isso. Os riscos inerentes a essa atividade devem
ser suportados por ele, não pelos hóspedes.
Os consumidores chegaram ao hotel
sem conhecer previamente as instalações. Eles confiaram que o ambiente seria
seguro, como qualquer pessoa razoável confiaria. Transferir a responsabilidade
para a família seria um contrassenso diante do sistema protetivo do Código de
Defesa do Consumidor.
O art. 8º do CDC é claro ao
determinar que produtos e serviços colocados no mercado não devem acarretar
riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto aqueles considerados
normais e previsíveis. A queda de um extintor de 100kg sobre uma criança
certamente não se enquadra nos riscos normais e previsíveis de uma hospedagem
em hotel.
Qual foi o valor fixado?
Quanto aos danos morais e
estéticos, o STJ fixou o valor em R$ 100 mil.
Essa quantia leva em conta duas
funções da indenização por dano moral: a função punitiva, que representa uma
sanção ao ofensor pela conduta inadequada, e a função compensatória, que busca
proporcionar algum conforto à vítima pelo sofrimento experimentado.
Sobre esse valor, devem incidir
juros de mora desde a data do acidente, conforme determina a Súmula 54 do STJ,
e correção monetária desde a data em que o valor foi fixado, nos termos da
Súmula 362 do STJ.
Quanto aos danos materiais e
lucros cessantes, como despesas médicas, hospedagem alternativa, passagens e
outros gastos, o STJ determinou que os valores exatos sejam apurados em uma
fase posterior do processo, chamada liquidação de sentença. A correção
monetária desses valores deve incidir desde a data em que cada despesa foi
efetivamente realizada, conforme a Súmula 43 do STJ.
Em suma:
Há responsabilidade civil de estabelecimento
hoteleiro que, em razão da fixação inadequada de extintor de incêndio de grande
porte em suas dependências, causa acidente que resulta em graves danos à saúde
de menor de idade.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.155.235-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em
11/11/2025 (Info 871).

