terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Competência no caso de crimes praticados contra consulado estrangeiro (atualização 15 do Livro 2014)



Imagine a seguinte situação adaptada:
Cinco pessoas invadiram o consulado dos EUA existente em Porto Alegre, riscaram as paredes, rasgaram uma bandeira norte-americana e mantiveram a agente consular presa no interior de sua sala, impedindo-a de sair.
O Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra essas pessoas pelos crimes de violação de domicílio (art. 150 do CP), dano (art. 163) e cárcere privado (art. 148).
Segundo o MPF, a competência para julgar tais delitos seria da Justiça Federal, com base no art. 109, IV e V, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
IV — os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;
V — os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;

Para o Parquet, o interesse da União surgiria em virtude de o Brasil ser signatário da Convenção de Viena sobre Relações Consulares assinada em 1963 (Decreto 61.078/67). Segundo os artigos 31º, 40º e 59º da Convenção, os locais consulares são invioláveis e o Estado receptor (no caso, o Brasil) deverá adotar medidas apropriadas para protegê-los. Veja:

ARTIGO 31º
Inviolabilidade dos locais consulares
1. Os locais consulares serão invioláveis na medida do previsto pelo presente artigo.
2. As autoridades do Estado receptor não poderão penetrar na parte dos locais consulares que a repartição consular utilizar exclusivamente para as necessidades de seu trabalho, a não ser com o consentimento do chefe da repartição consular, da pessoa por ele designada ou do chefe da missão diplomática do Estado que envia. Todavia, o consentimento do chefe da repartição consular poderá ser presumido em caso de incêndio ou outro sinistro que exija medidas de proteção imediata.
3. Sem prejuízo das disposições do parágrafo 2 do presente artigo, o Estado receptor terá a obrigação especial de tomar as medidas apropriadas para proteger os locais consulares contra qualquer invasão ou dano, bem como para impedir que se perturbe a tranqüilidade da repartição consular ou se atente contra sua dignidade.
(...)

ARTIGO 40º
Proteção aos funcionários consulares
O Estado receptor tratará os funcionários consulares com o devido respeito e adotará todas as medidas adequadas para evitar qualquer atentado a sua pessoa, liberdade ou dignidade.

ARTIGO 59º
Proteção dos locais consulares
O Estado receptor adotará tôdas as medidas apropriadas para proteger os locais consulares de uma repartição consular dirigida por um funcionário consular honorário contra qualquer intrusão ou dano e para evitar perturbações à tranqüilidade da repartição consular ou ofensas à sua dignidade.

Existem dispositivos semelhantes na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas assinada em 1961 (Decreto 56.435/65) garantindo a inviolabilidade das sedes de embaixadas e dos agentes diplomáticos e afirmando que o Estado acreditado (no caso, o Brasil) tem a obrigação especial de adotar todas as medidas apropriadas para proteger tais locais contra qualquer intrusão ou dano e evitar perturbações à tranquilidade da Missão ou ofensas à sua dignidade.


STJ

A tese do MPF foi aceita pelo STJ? A competência para julgar os delitos em tela é da Justiça Federal?
NÃO. Compete à Justiça ESTADUAL (e não à Justiça Federal) processar e julgar supostos crimes de violação de domicílio, de dano e de cárcere privado — este, em tese, praticado contra agente consular — cometidos por particulares no contexto de invasão a consulado estrangeiro.
De acordo com o disposto no art. 109, IV e V, da CF, a competência penal da Justiça Federal pressupõe que haja ofensa a bens, serviços ou interesses da União ou que, comprovada a internacionalidade do fato, o crime praticado esteja previsto em tratados ou convenções internacionais.
A hipótese não se enquadra no inciso IV porque os crimes não foram praticados contra bens, serviços ou interesse da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas.
De igual modo, a situação não se amolda ao inciso V. Isso porque a Convenção de Viena não prevê quaisquer crimes para o caso de invasão a consulados ou embaixadas.
Os supostos delitos praticados pelos cinco indivíduos estão previstos no Código Penal (e não em tratados internacionais), não havendo qualquer indício de internacionalidade dos fatos.
O fato de competir à União a manutenção de relações diplomáticas com Estados estrangeiros — do que derivam as relações consulares — não altera a competência penal da Justiça Federal.
STJ. 3ª Seção. AgRg no CC 133.092-RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 23/4/2014 (Info 541).

STF

Ocorre que o MPF não se conformou com a decisão do STJ e, contra ela, interpôs recurso extraordinário. O que decidiu o STF? A competência para julgar os delitos em tela é da Justiça Federal?
SIM. Segundo o tratado internacional assinado e promulgado pelo nosso país (Convenção de Viena sobre Relações Consulares), a proteção das repartições consulares é de incumbência e interesse do Estado receptor, ao qual compete impedir eventuais invasões e atentados aos Consulados e respectivos agentes, assim como o ocorrido no caso em análise.
Em outras palavras, o Brasil comprometeu-se, por tratado internacional, a proteger as repartições consulares. Logo, é responsabilidade da União garantir a incolumidade de agentes e agências consulares, já que o funcionamento de uma repartição consular é decorrência direta das relações diplomáticas que a União mantém com Estados estrangeiros.
Dessa feita, as condutas ilícitas praticadas ofenderam diretamente interesse da União, situação na qual se fixa a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, IV, da CF/88.
STF. Decisão Monocrática. RE 831996, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 12/11/2015.

Obs1: vale ressaltar que a decisão da Relatora foi monocrática, ou seja, tomada sozinha, sem levar o caso à Turma, conforme autoriza o art. 557, § 1º-A, do CPC 1973 (art. 932, V, do CPC 2015) porque a Ministra entendeu que a decisão do STJ estava em manifesto confronto com jurisprudência dominante do STF.

Obs2: contra essa decisão monocrática ainda cabe, em tese, agravo regimental para a 2ª Turma do STF.

Obs3: o caso concreto acima tratava sobre consulado, mas o raciocínio pode ser aplicado também para embaixadas.

Resumindo:
A competência para julgar invasão de consulado ou embaixada é da Justiça Federal?

STJ: NÃO
A competência é da Justiça ESTADUAL
STF: SIM
A competência é da Justiça FEDERAL

STJ. 3ª Seção. AgRg no CC 133.092-RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 23/4/2014 (Info 541).


STF. Decisão Monocrática. RE 831996, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 12/11/2015.


Em concursos públicos, ficar atento à redação do enunciado. Se não especificar nada, assinar o entendimento do STF (Justiça Federal).

Clique AQUI para baixar a ATUALIZAÇÃO 15 do Livro Principais Julgados de 2014.


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