segunda-feira, 17 de abril de 2023

É inconstitucional o § 17 do art. 74 da Lei 9.430/96, que previa a aplicação de multa pelo simples fato de o pedido de declaração de compensação não ter sido homologado

 

O que é compensação?

Compensação é a extinção de duas ou mais obrigações, cujos credores são ao mesmo tempo devedores um do outro.

Assim, se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem (art. 368 do CC).

Ex: João deve 10 mil reais a Pedro por conta de uma obrigação (contrato de compra e venda); por força de outra obrigação (contrato de prestação de serviços), Pedro deve 10 mil reais a João.

No exemplo acima, a compensação foi total (as dívidas eram iguais). Mas é possível (e bem mais comum) que a compensação seja parcial (quando os valores são diferentes). Seria a hipótese caso Pedro devesse apenas 6 mil reais a João. Logo, somente restaria um crédito de 4 mil reais.

 

É possível que ocorra a compensação no direito tributário?

SIM. Ocorre quando o contribuinte possui um crédito a receber do Fisco, podendo ser feito o encontro de contas do valor que o sujeito passivo tem que pagar com a quantia que tem a receber da Administração.

Trata-se de causa de extinção da obrigação tributária (art. 156, II do CTN):

Art. 156. Extinguem o crédito tributário:

(...)

II - a compensação;

 

Por ser matéria sujeita à reserva legal, tal como disposto no art. 97, VI, do CTN, só é admitida na forma e nas condições previstas em lei (art. 170):

Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:

(...)

VI - as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.

 

Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda pública.

 

Assim, cabe ao legislador ordinário do ente que detiver a competência tributária estabelecer as condições e garantias para a compensação dos créditos tributários com os créditos que o sujeito passivo possuir em face da Fazenda Pública.

 

Direito subjetivo

Atendidos os requisitos legais, a compensação tributária configura direito subjetivo do sujeito passivo que não se subordina à apreciação de conveniência e oportunidade da administração tributária.

 

Lei nº 9.430/96

No âmbito federal, a autorização para que o contribuinte realize a compensação consta, dentre outros diplomas, no art. 74 da Lei nº 9.430/96.

A Lei nº 9.430/96 admite a possibilidade de compensação entre débitos e créditos oriundos de espécies tributárias distintas, desde que sujeitos à administração da Receita Federal, mas condiciona a compensação à autorização da Receita Federal, mediante requerimento do interessado.

O § 17 do art. 74 prevê que o contribuinte deve ser multado caso peça declaração de compensação e esse requerimento não seja atendido. Essa multa será de 50% sobre o valor do débito objeto da declaração e, pela redação do dispositivo, deveria ser aplicada mesmo que não houvesse falsidade na declaração. Confira:

Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão.

(...)

§ 17. Será aplicada multa isolada de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor do débito objeto de declaração de compensação não homologada, salvo no caso de falsidade da declaração apresentada pela sujeito passivo. (Redação dada pela Lei nº 13.097/2015)

 

Veja agora a regulamentação infralegal da Receita Federal para o dispositivo:

Instrução Normativa RFB nº 2.055/2021

Art. 74. O tributo objeto de compensação não homologada será exigido com os acréscimos legais previstos na legislação.

§ 1º Sem prejuízo do disposto no caput, será exigida do sujeito passivo, mediante lançamento de ofício, multa isolada, no percentual de:

I - de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor do débito objeto de declaração de compensação não homologada; ou

II - de 150% (cento e cinquenta por cento) sobre o valor total do débito tributário indevidamente compensado, se comprovada a falsidade da declaração apresentada pelo sujeito passivo.

 

ADI

A Confederação Nacional da Indústria (CNI) ajuizou ADI contra essa previsão.

A autora alegou que o § 17 do art. 74 teve o propósito de desencorajar o contribuinte de exercitar o seu direito constitucional de compensação, por meio de ameaça de punição.

Afirmou, ainda, que, além de resultar em verdadeira sanção política, a imposição violaria: (i) o direito de petição aos poderes públicos; (ii) o contraditório e a ampla defesa; (iii) o princípio da vedação da utilização de tributos com efeito de confisco; e (iv) os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Os argumentos do Autor da ADI foram acolhidos pelo STF?

SIM.

A declaração de compensação é um pedido em sentido amplo (lato sensu) submetido à análise da administração, que decidirá de forma definitiva, expressa ou tacitamente, pela homologação ou não.

Nesse contexto, a norma impugnada não se mostra proporcional, porque:

(i) não é adequada para coibir fraudes, falsidade ou abuso de direito, eis que essas condutas não fazem parte do preceito antecedente para a aplicação da sanção. Em outras palavras, o dispositivo prevê punição mesmo que não seja demonstrada fraude; e

(ii) a penalidade de multa não atende ao teste da necessidade. Isso porque mecanismos menos gravosos ao contribuinte de boa-fé para a proteção dos interesses do Fisco.

 

Ademais, a aplicação automática da referida multa inibe o sujeito passivo — atingindo principalmente os contribuintes de boa-fé — de pleitear a homologação da declaração de compensação, de modo que representa obstáculo ao exercício de seu direito de petição.

A Constituição assegura o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder (art. 5 º, XXXIV, alínea “a”, da CF/88):

Art. 5º (...)

XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

 

No conceito de petição, há de se compreender a reclamação dirigida à autoridade competente para que reveja ou eventualmente corrija determinada medida, como também qualquer pedido ou reclamação relativos ao exercício ou à atuação do Poder Público.

A declaração de compensação a que alude a Lei nº 9.430/96 está no campo de proteção do direito fundamental de petição. Está-se diante de um direito subjetivo do sujeito passivo da obrigação tributária.

Com isso, a aplicação de multa isolada pela mera não homologação de declaração de compensação, sem que esteja caracterizada a má-fé, falsidade, dolo ou fraude, fere o direito fundamental de petição e o princípio da proporcionalidade.

A legislação tributária confere à Receita Federal do Brasil um arsenal de multas para coibir condutas indevidas do sujeito passivo atinentes à declaração de compensação, mais gravosas do que a prevista no § 17 do art. 74 da Lei nº 9.430/96. Diferentemente da norma impugnada, os pressupostos daquelas penalidades estão bem delimitados e definidos. O tipo cumpre suas funções pedagógica e preventiva sem implicar insegurança jurídica, ou inibir o exercício do direito subjetivo à compensação tributária.

Em suma:

É inconstitucional — por violar o direito fundamental de petição e o princípio da proporcionalidade — a aplicação de multa isolada pela mera não homologação de declaração de compensação quando não caracterizados má-fé, falsidade, dolo ou fraude.

STF. Plenário. ADI 4905/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 20/03/2023 (Info 1087).

 

Com base nesses entendimentos, o Plenário do STF, por maioria, conheceu em parte da ação e, nessa extensão, a julgou procedente para declarar a inconstitucionalidade do § 17 do art. 74 da Lei nº 9.430/96, incluído pela Lei nº 12.249/2010 e alterado pela Lei nº 13.097/2015. Por arrastamento, o STF também declarou a inconstitucionalidade do inciso I do § 1º do art. 74 da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 2.055/2021.

 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO TRATANDO SOBRE A MESMA TEMÁTICA

Havia no STF um recurso extraordinário, submetido à sistemática da repercussão geral, tratando sobre o mesmo tema acima explicado, ou seja, a inconstitucionalidade do § 17 do art. 74 da Lei nº 9.430/96. Em razão disso, o STF julgou o recurso extraordinário conjuntamente com a ADI 4905, chegando à mesma conclusão:

O pedido de compensação tributária não homologado, ao invés de configurar ato ilícito apto a ensejar sanção tributária automática (art. 74, § 17, Lei nº 9.430/96), configura legítimo exercício do direito de petição do contribuinte (art. 5º, XXXIV, CF/88).

STF. Plenário. RE 796.939/RS, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 20/03/2023 (Repercussão Geral – Tema 736) (Info 1087).

 

Não há motivo para se aplicar a multa em caso de mero indeferimento do pedido administrativo de compensação tributária. Isso porque esse requerimento se traduz em legítimo exercício do direito de petição do contribuinte.

Esse pedido de compensação não se compatibiliza com a função repressora das multas tributárias, pois a automaticidade da sanção, sem se considerar a índole subjetiva do agente, tornaria ilícito o próprio exercício de um direito subjetivo público garantido pela Constituição.

Além disso, o art. 74, § 17, da Lei nº 9.430/96 viola o princípio do devido processo legal em suas duas dimensões.  Quanto à dimensão processual, não se observa, no processo administrativo fiscal sob exame, uma garantia às partes em relação ao exercício de suas faculdades e poderes processuais. Quanto à material, inexiste razoabilidade, pois a legitimidade tributária é ignorada na hipótese, dada a insatisfação simultânea do binômio eficiência e justiça fiscal por parte do Estado.

Nesse contexto, somente a partir de um necessário juízo concreto, motivado e fundamentado em relação à observância, ou não, do princípio da boa-fé pelo contribuinte que pretende a compensação tributária na via administrativa, será possível afirmar eventual abusividade no exercício do seu direito constitucional de petição, e aplicar a sanção tributária correspondente.

 

Veja a tese fixada pelo STF:

É inconstitucional a multa isolada prevista em lei para incidir diante da mera negativa de homologação de compensação tributária por não consistir em ato ilícito com aptidão para propiciar automática penalidade pecuniária.

STF. Plenário. RE 796.939/RS, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 20/03/2023 (Repercussão Geral – Tema 736) (Info 1087).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, ao apreciar o Tema 736 da repercussão geral, conheceu do recurso extraordinário e negou-lhe provimento para declarar a inconstitucionalidade do já revogado § 15, e do atual § 17 do art. 74 da Lei nº 9.430/1996.

 

 


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