sexta-feira, 7 de abril de 2023

A absolvição na ação de improbidade administrativa em virtude da ausência de dolo e da ausência de obtenção de vantagem indevida esvazia a justa causa para manutenção da ação penal

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Ao final de inquérito instaurado pela Polícia Federal para apurar crimes contra a administração pública, João foi indiciado como sendo autor do crime de corrupção ativa (art. 333 do Código Penal) em relação a contrato que a sua empresa firmou com o poder público após dispensa de licitação.

Com base nesses elementos informativos, o Procurador da República Silvio ofereceu denúncia (ação penal) contra João, perante a 1ª Vara Criminal Federal.

Além disso, pelos mesmos fatos, o Procurador da República Rafael ajuizou ação de improbidade administrativa contra João, na 2ª Vara Cível Federal.

O juízo da 2ª Vara Cível jugou o pedido improcedente, ou seja, absolveu o réu, por entender que ele não agiu com dolo e que não houve obtenção de vantagem indevida. Para o magistrado, ficou demonstrado apenas o dolo do gestor público, não justificando a condenação do particular (João). Essa sentença transitou em julgado.

Diante desse cenário, a defesa impetrou habeas corpus no TRF pedindo o trancamento da ação penal que tramita na 1ª Vara Criminal Federal.

O TRF denegou a ordem sob o argumento de que “a absolvição do paciente em acusação de improbidade administrativa, ainda que haja correlação entre os fatos, não é empecilho para a persecutio criminis, se presente, como na hipótese, justa causa para tanto”.

Irresignada, a defesa interpôs recurso ordinário endereçado ao STJ, alegando, em síntese, que, diante da absolvição no âmbito da ação de improbidade ajuizada pelos mesmos fatos, revela-se imperativo o trancamento da ação penal.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

SIM. Vamos entender com calma.

 

Independência das instâncias

As esferas civil, penal e administrativa são independentes e autônomas entre si, de tal sorte que as decisões tomadas nos âmbitos administrativo ou cível não vinculam a seara criminal (STJ. 6ª Turma. EDcl no AgRg no REsp 1.831.965/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 7/12/2020).

No entanto, os argumentos contidos na decisão absolutória em uma instância podem ser aproveitados na outra. Nesse sentido:

A sentença absolutória por ato de improbidade não vincula o resultado da ação penal, porque proferida na esfera do direito administrativo sancionador, que é independente da instância penal, embora seja possível, em tese, considerar como elementos de persuasão os argumentos nela lançados.

STJ. 5ª Turma. REsp 1.847.488/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 26/4/2021.

 

Por força do princípio da independência das instâncias, exige-se o exame particularizado dos fatos

A independência das esferas tem por objetivo o exame particularizado do fato narrado, com base em cada ramo do direito, devendo as consequências cíveis e administrativas ser aferidas pelo juízo cível e as consequências penais pelo Juízo criminal, dada a especialização de cada esfera. No entanto, as consequências jurídicas recaem sobre o mesmo fato.

 

A ausência de dolo ficou bem demonstrada

No caso, verifica-se que a absolvição ocorreu em virtude da ausência de comprovação do elemento subjetivo dos particulares.

Ficou consignado pela instância cível que a prova dos autos demonstra apenas o dolo do gestor público, não justificando a condenação dos particulares.

A pessoa jurídica titularizada pelo réu precisou baixar seu preço para ser escolhida.

Por fim, ficou demonstrado que o réu não auferiu benefício, uma vez que o contrato foi anulado pelo TCU.

Diante de todo esse contexto, não é possível admitir que o dolo da conduta não tenha ficado demonstrado no juízo cível e se revele presente no juízo penal. Isso porque se trata do mesmo fato.

 

Ausente dolo, não existe crime

A ausência de prova do requisito subjetivo (dolo) interfere na caracterização da própria tipicidade do crime, especialmente se considerarmos a doutrina finalista, que insere o elemento subjetivo no tipo.

Vale ressaltar que o delito imputado (corrupção ativa – art. 333 do CP) não admite figura culposa. Logo, se não houve dolo, deve-se reconhecer a atipicidade da conduta.

Anote-se, por oportuno, que se trata de crime contra a Administração Pública, cuja especificidade recomenda atentar para o que decidido, a respeito dos fatos, na esfera cível.

 

 

Art. 21, § 4º da Lei nº 8.429/92 procurou ampliar as exceções à regra da independência de instâncias

Deve-se levar em consideração que o art. 21, § 4º, da Lei nº 8.429/92, incluído pela Lei nº 14.230/2021, prevê que:

Art. 21 (...)

§ 4º A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021) 

 

Embora referido dispositivo esteja com a eficácia suspensa por liminar deferida pelo Supremo Tribunal Federal, em 27/12/2022, na ADI 7.236/DF, tem-se que o legislador pretendeu definir ampla exceção legal à independência das esferas que, apesar de não autorizar o encerramento da ação penal em virtude da absolvição na ação de improbidade administrativa por qualquer fundamento, revela que existem fundamentos tão relevantes que não podem ser ignorados pelas demais esferas. Pela letra da lei, uma absolvição na seara penal, por qualquer fundamento, não pode permitir a manutenção da ação de improbidade.

A suspensão do art. 21, § 4º, da Lei nº 8.429/92, na redação dada pela Lei nº 14.230/2021 (ADI 7.236/DF) não atinge a vedação constitucional do ne bis in idem (Rcl 57.215/DF MC, Rel. Ministro Gilmar Mendes, julgado em 6/1/2023), e, sem justa causa não há persecução penal.

Portanto, apesar de, pela letra da lei, o contrário não justificar o encerramento da ação penal, inevitável concluir que a absolvição na ação de improbidade administrativa em virtude da ausência de dolo e da ausência de obtenção de vantagem indevida, esvazia a justa causa para manutenção da ação penal. De fato, não se verifica mais a plausibilidade do direito de punir, uma vez que a conduta típica, primeiro elemento do conceito analítico de crime, depende do dolo para se configurar, e este foi categoricamente afastado pela instância cível.

Tendo a instância cível afirmado que não ficou demonstrado que os particulares induziram ou concorreram dolosamente para a prática de ato que atente contra os princípios da administração, registrando que “a amplitude da previsão legislativa não pode induzir o intérprete a acolher ilações do autor da ação civil pública, pois ausente a subsunção dos fatos à norma que prevê a responsabilização dos particulares na Lei n. 8.429/92 (art. 3º)”, não pode a mesma conduta ser violadora de bem jurídico tutelado pelo direito penal.

Constata-se, assim, de forma excepcional, a efetiva repercussão da decisão de improbidade sobre a justa causa da ação penal em trâmite, motivo pelo qual não se justifica a manutenção desta última. Nas palavras do Ministro Humberto Martins, “a unidade do Direito” deve se pautar pela coerência.

 

Em suma:

 

 

 

 

 

 


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