sexta-feira, 14 de abril de 2023

Médico que atendeu mulher que havia acabado de fazer aborto não pode comunicar esse fato à autoridade policial

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Viviane estava grávida de aproximadamente 16 semanas.

Desejando pôr fim à gestação, ela tomou um medicamento abortivo em sua casa.

Viviane passou mal e foi encaminhada ao serviço de emergência de um hospital, sendo atendida por Ricardo, médico plantonista.

Ao examinar a paciente, Ricardo percebeu que Viviane havia praticado um aborto. Ele então comunicou essa sua percepção à Polícia, que instaurou inquérito policial.

Ao final, Viviane foi denunciada pela prática do crime de aborto (art. 124 do CP) figurando o médico como testemunha.

A Defensoria Pública impetrou habeas corpus perante o TJ/MG, visando o trancamento da ação penal originária, sob o fundamento de que seriam nulas as provas da materialidade do crime, uma vez que foram coletadas por meio da quebra do sigilo profissional entre médico e paciente.

O TJ/MG, por maioria, denegou a ordem.

O voto vencido concedia a ordem em razão dos seguintes fundamentos, dentre outros (obs: leitura deste trecho não é indispensável):

“Conforme Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/18), é vedado ao médico ‘revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão’. Não obstante existam exceções à mencionada regra, nos casos de ‘motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente’, o art. 73, parágrafo único, da citada Resolução, prevê, de forma expressa, que a vedação em questão permanece ‘na investigação de suspeita de crime’, contexto em que o médico ‘estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal’ (art. 73, parágrafo único, “c”, da Resolução CFM nº 2.217/18). Com efeito, o médico não possui, via de regra, o dever legal de comunicar a ocorrência de fato criminoso ou mesmo de efetuar prisão de qualquer indivíduo que se encontre em situação de flagrante delito. (...)

Válido destacar que a citada resolução também registra que ‘na investigação da hipótese de cometimento de crime o médico está impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo criminal” (art. 3º). Ou seja, o profissional da saúde não pode, com as informações adquiridas a partir de atendimento médico, e em contexto abarcado pelo sigilo, dar causa a investigação criminal do paciente, comunicando fato à polícia, por exemplo, ou mesmo contribuir, com tais informações, para a produção probatória em processo já em curso’. (...)

Deve-se destacar, também, que a paciente procurou atendimento médico, e chegou ao local se ‘queixando de muitas dores e aos gritos’ (fl. 39 –doc. único), conforme relatado pelo próprio profissional, havendo registro, inclusive, de necessidade de internação.  Ora, evidente que (...) se dirigiu ao pronto-socorro em contexto de extrema fragilidade, em que sua integridade física, quiçá até mesmo sua vida, encontrava-se em risco. Assim, utilizar as informações por ela repassadas ao médico nessa situação para processá-la criminalmente não me parece minimamente razoável, ou compatível com balizas constitucionais”. (...)

‘Não bastasse, em razão de solicitação da autoridade policial, a administração do hospital encaminhou à delegacia de polícia o prontuário médico da paciente, contendo informações também sigilosas (fl. 50 –doc. único). Com isso, todo o acervo probatório advindo das citadas condutas deve ser considerado ilícito e, consequentemente, desentranhado dos autos, nos termos do art. 157 do CPP”.

 

A DPE/MG, então, impetrou habeas corpus perante o STJ. Reiterou a alegação de que seriam nulas as provas da materialidade do crime, uma vez que foram coletadas por meio da quebra do sigilo profissional entre médico e paciente.

 

O STJ concordou com os argumentos da Defensoria Pública?

SIM.

O modo como ocorreu a descoberta do crime invalidou a persecução penal.

O próprio médico que realizou o atendimento da paciente acionou a autoridade policial, figurando, inclusive, como testemunha da ação penal que resultou na pronúncia da acusada.

O art. 207 do Código de Processo Penal dispõe que:

Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.

 

O médico que atendeu a paciente se encaixa na proibição legal, uma vez que se mostra como confidente necessário, estando proibido de revelar segredo de que tem conhecimento em razão da profissão intelectual, bem como de depor sobre o fato como testemunha.

O STJ assim já se manifestou a respeito do sigilo profissional:

O interesse público do sigilo profissional decorre do fato de se constituir em um elemento essencial à existência e à dignidade de certas categorias, e à necessidade de se tutelar a confiança nelas depositada, sem o que seria inviável o desempenho de suas funções, bem como por se revelar em uma exigência da vida e da paz social.

STJ. 4ª Turma. RMS 9.612/SP, Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 9/11/1998.

 

Ademais, o Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018) enuncia que é vedado ao médico “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão”.

Não obstante existam exceções à mencionada regra, nos casos de “motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”, o art. 73, parágrafo único, da citada Resolução, prevê, de forma expressa, que a vedação em questão permanece “na investigação de suspeita de crime”, contexto em que o médico “estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal” (art. 73, parágrafo único, ‘c’, da Resolução CFM nº 2.217/2018).

Com efeito, o médico não possui, via de regra, o dever legal de comunicar a ocorrência de fato criminoso ou mesmo de efetuar prisão de qualquer indivíduo que se encontre em situação de flagrante delito.

Mesmo nos casos em que o médico possui o dever legal de comunicar determinado fato à autoridade competente, como no contexto de doença cuja notificação seja compulsória (art. 269 do CP), ainda assim é vedada a remessa do prontuário médico do paciente (art. 2º da Resolução nº 1.605/2000 do CFM).

Dessa forma, considerando que a instauração do inquérito policial decorreu de provocação da autoridade policial por parte do próprio médico que, além de ter sido indevidamente arrolado como testemunha, encaminhou o prontuário médico da paciente para a comprovação das afirmações, encontra-se contaminada a ação penal pelos elementos de informação coletados de forma ilícita, devendo ser trancada.

 

Em suma:

Médico não pode acionar a polícia para investigar paciente que procurou atendimento médico-hospitalar por ter praticado manobras abortivas, uma vez que se mostra como confidente necessário, estando proibido de revelar segredo do qual tem conhecimento, bem como de depor a respeito do fato como testemunha.

STJ. 6ª Turma. HC 783.927/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 14/3/2023 (Info 767).

 

O acórdão determinou, ainda, que o juízo de origem encaminhe os autos do inquérito policial e da ação penal para o Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, bem como ao Ministério Público local, para a tomada das medidas que entenderem pertinentes quanto à conduta do médico que atendeu a paciente e realizou a notícia do crime.

 

 


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