domingo, 30 de abril de 2023

A Súmula 593 do STJ prevê que o consentimento da vítima menor de 14 anos e o seu namoro com o acusado não afastam a existência do delito de estupro de vulnerável. O STJ possui exceções a esse entendimento?

 

PRATICAR SEXO COM MENOR DE 14 ANOS É CRIME

A Lei nº 12.015/2009 acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, criando um novo delito, chamado de “estupro de vulnerável”:

Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

 

Antes do art. 217-A, ou seja, antes da Lei nº 12.015/2009, as condutas de praticar conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos já eram consideradas crimes?

SIM. Tais condutas poderiam se enquadrar nos crimes previstos no art. 213 c/c art. 224, “a” (estupro com violência presumida por ser menor de 14 anos) ou art. 214 c/c art. 224, “a” (atentado violento ao pudor com violência presumida por ser menor de 14 anos), todos do Código Penal, com redação anterior à Lei n.° 12.015/2009.

Desse modo, apesar de os arts. 213, 214 e 224 do CP terem sido revogados pela Lei nº 12.015/2009, não houve abolitio criminis dessas condutas, ou seja, continua sendo crime praticar estupro ou ato libidinoso com menor de 14 anos. No entanto, essas condutas, agora, são punidas pelo art. 217-A do CP. O que houve, portanto, foi a continuidade normativa típica, que ocorre quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário.

 

Antes da Lei nº 12.015/2009, se o agente praticasse atentado violento ao pudor (ex: coito anal) com um adolescente de 13 anos, haveria crime mesmo que a vítima consentisse (concordasse) com o ato sexual? Haveria crime mesmo que a vítima já tivesse tido outras relações sexuais com outros parceiros anteriormente? Essa presunção de violência era absoluta?

SIM. A presunção de violência nos crimes contra os costumes cometidos contra menores de 14 anos, prevista na antiga redação do art. 224, alínea “a”, do CP (antes da Lei nº 12.015/2009), possuía caráter absoluto, pois constituía critério objetivo para se verificar a ausência de condições de anuir com o ato sexual.

Assim, essa presunção absoluta não podia ser afastada (relativizada) mesmo que a vítima tivesse dado seu “consentimento” porque nesta idade este consentimento seria viciado (inválido). Logo, mesmo que a vítima tivesse experiência sexual anterior, mesmo que fosse namorado do autor do fato, ainda assim haveria o crime.

A presunção de violência era absoluta nos casos de estupro/atentado violento ao pudor contra menor de 14 anos. Nesse sentido: STJ. 3ª Seção. EREsp 1152864/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 26/02/2014.

 

E, atualmente, ou seja, após a Lei n.° 12.015/2009?

Continua sendo crime praticar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso contra menor de 14 anos. Isso está expresso no art. 217-A do CP e não interessa se a vítima deu consentimento, se namorava o autor do fato etc. A discussão sobre presunção de violência perdeu sentido porque agora a lei incluiu a idade (menor de 14 anos) no próprio tipo penal. Manteve relação sexual com menor de 14 anos: estupro de vulnerável.

A Lei nº 12.015/2009 acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, criando um novo delito, chamado de “estupro de vulnerável”:

Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

 

A fim de que não houvesse mais dúvidas sobre o tema, o STJ pacificou a questão editando a Súmula 593.

O Congresso Nacional decidiu incorporar na legislação esse entendimento e acrescentou o § 5º ao art. 217-A do CP repetindo, em parte, a conclusão da súmula e estendendo o mesmo raciocínio para outras espécies de pessoa vulnerável. Veja:

Art. 217-A. (...)

§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime. (Inserido pela Lei nº 13.718/2018)

 

Em algumas localidades do país (ex: determinadas comunidades do interior), seria possível dizer que não há crime, considerando que é costume a prática de atos sexuais com crianças? É possível excluir o crime de estupro de vulnerável com base no princípio da adequação social?

NÃO. Segundo afirmou o Min. Rogério Schietti, a prática sexual envolvendo menores de 14 anos não pode ser considerada como algo dentro da "normalidade social". Não é correto imaginar que o Direito Penal deva se adaptar a todos os inúmeros costumes de cada uma das microrregiões do país, sob pena de se criar um verdadeiro caos normativo, com reflexos danosos à ordem e à paz públicas.

Ademais, o afastamento do princípio da adequação social aos casos de estupro de vulnerável busca evitar a carga de subjetivismo que acabaria marcando a atuação do julgador nesses casos, com danos relevantes ao bem jurídico tutelado, que é o saudável crescimento físico, psíquico e emocional de crianças e adolescentes. Esse bem jurídico goza de proteção constitucional e legal, não estando sujeito a relativizações.

 

Na sentença, durante a dosimetria, o juiz pode reduzir a pena-base do réu alegando que a vítima (menor de 14 anos) já tinha experiência sexual anterior ou argumentando que a vítima era homossexual?

Claro que NÃO.

Em se tratando de crime sexual praticado contra menor de 14 anos, a experiência sexual anterior e a eventual homossexualidade do ofendido não servem para justificar a diminuição da pena-base a título de comportamento da vítima.

A experiência sexual anterior e a eventual homossexualidade do ofendido, assim como não desnaturam (descaracterizam) o crime sexual praticado contra menor de 14 anos, não servem também para justificar a diminuição da pena-base, a título de comportamento da vítima.

STJ. 6ª Turma. REsp 897.734-PR, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 3/2/2015 (Info 555).

 

As conclusões acima expostas foram consolidadas pelo STJ no julgamento do Recurso Especial n. 1.480.881/PI (Tema 918) e na Súmula 593:

Súmula 593-STJ: O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

 

O que acontece se um garoto de 13 anos praticar sexo consensual com a sua namorada de 12 anos?

Haverá o que a doutrina denomina de estupro bilateral. Assim, ocorre o “estupro bilateral” quando dois menores de 14 anos praticam conjunção carnal ou outro ato libidinoso entre si. Em outras palavras, tanto o garoto como a garota, neste exemplo, serão autores e vítimas, ao mesmo tempo, de ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável.

 

Em que consiste a chamada “exceção de Romeu e Julieta”?

Trata-se de uma tese defensiva segundo a qual se o agente praticasse sexo consensual (conjunção carnal ou ato libidinoso) com uma pessoa menor de 14 anos, não deveria ser condenado se a diferença entre o agente e a vítima não fosse superior a 5 anos. Ex: Lucas, 18 anos e 1 dia, pratica sexo com sua namorada de 13 anos e 8 meses. Pela “exceção de Romeu e Julieta” Lucas não deveria ser condenado por estupro de vulnerável (art. 217-A do CP).

A teoria recebe esse nome por inspiração da peça de Willian Shakespeare na qual Julieta, com 13 anos, mantém relação sexual com Romeu. Assim, Romeu, em tese, teria praticado estupro de vulnerável.

A “exceção de Romeu e Julieta”, em regra, não é aceita pela jurisprudência, ou seja, mesmo que a diferença entre autor e vítima seja menor que 5 anos, mesmo que o sexo seja consensual e mesmo que eles sejam namorados, em regra, há crime.

 

CASO CONCRETO JULGADO PELO STJ NO AGRG NO RESP 1.919.722/SP (RELATIVIZAÇÃO DO QUE FOI EXPLICADO ACIMA)

O caso concreto, com adaptações e nomes fictícios, foi o seguinte:

Tiago, na época com 18 anos de idade, conheceu Larissa, que tinha 12 anos e alguns meses.

Depois de conversarem por algum tempo, Tiago foi até a casa de Larissa e pediu aos seus pais permissão para namorá-la.

A permissão foi dada, apesar da idade da declarante (12 anos).

Cerca de quatro meses após o início do namoro, Tiago e Larissa mantiveram a primeira relação sexual.

Os pais da menina não sabiam que ela estava mantendo relação sexual com Tiago.

Larissa só contou para a mãe que estava mantendo relação sexual quando desconfiou que estava grávida.

Após a confirmação da gravidez, os pais de Larissa conversaram com Tiago e decidiram que o melhor para a menina e para o bebê era que fossem “morar juntos”.

Depois que o bebê nasceu e já tinha alguns dias, a polícia instaurou inquérito para apurar o crime de estupro de vulnerável praticado por Tiago.

No inquérito, Larissa declarou que todas as relações sexuais foram consensuais, que mora com Tiago e que deseja viver com ele para criarem o filho juntos.

Tiago foi denunciado e condenado em 1ª instância como incurso no art. 217-A c/c art. 234-A, III, do Código Penal, em continuidade delitiva, à pena de 14 anos de reclusão, em regime fechado. A sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça.

Inconformada, a defesa recorreu ao STJ que absolveu o réu:

(...) 1. A hipótese trazida nos presentes autos apresenta particularidades que impedem a simples subsunção da conduta narrada ao tipo penal incriminador, motivo pelo qual não incide igualmente a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial Repetitivo n. 1.480.881/PI e no enunciado sumular n. 593/STJ.

2. Atualmente, o estupro de vulnerável não traz em sua descrição qualquer tipo de ameaça ou violência, ainda que presumida, mas apenas a presunção de que o menor de 14 anos não tem capacidade para consentir com o ato sexual. Assim, para tipificar o delito em tela, basta ser menor de 14 anos. Diante do referido contexto legal, se faz imperativo, sob pena de violação da responsabilidade penal subjetiva, analisar detidamente as particularidades do caso concreto, pela perspectiva não apenas do autor mas também da vítima.

3. Um exame acurado das nuances do caso concreto revela que a conduta imputada, embora formalmente típica, não constitui infração penal, haja vista a ausência de relevância social e de efetiva vulneração ao bem jurídico tutelado. De fato, trata-se de dois jovens namorados, cujo relacionamento foi aprovado pelos pais da vítima, sobrevindo um filho e a efetiva constituição de núcleo familiar. Verifica-se, portanto, particularidades que impedem o julgamento uniforme no caso concreto, sendo necessário proceder ao distinguishing ou distinção.

4. A condenação de um jovem de 20 anos, que não oferece nenhum risco à sociedade, ao cumprimento de uma pena de 14 anos de reclusão, revela uma completa subversão do direito penal, em afronta aos princípios fundamentais mais basilares, em rota de colisão direta com o princípio da dignidade humana. Dessa forma, estando a aplicação literal da lei na contramão da justiça, imperativa a prevalência do que é justo, utilizando-se as outras técnicas e formas legítimas de interpretação (hermenêutica constitucional).

(...)

6. Ademais, a incidência da norma penal, na presente hipótese, não se revela adequada nem necessária, além de não ser justa, porquanto sua incidência trará violação muito mais gravosa de direitos que a conduta que se busca apenar. Dessa forma, a aplicação da norma penal na situação dos autos não ultrapassa nenhum dos crivos dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

(...)

9. Há outros aspectos, na situação em foco, que afastam a ocorrência da objetividade jurídica do art. 217-A do CP. Refiro-me não só à continuidade da união estável mas também ao nascimento do filho do casal. E a partir disso, um novo bem jurídico também merece atenção: a absoluta proteção da criança e do adolescente (no caso um bebê). Submeter a conduta do recorrente à censura penal levará ao esfacelamento da união estável, ocasionando na vítima e em seu filho traumas muito mais danosos que se imagina que eles teriam em razão da conduta imputada ao impugnante. No jogo de pesos e contrapesos jurídicos não há, neste caso, outra medida a ser tomada: a opção absolutória na perspectiva da atipicidade material. - Essa particular forma de parametrar a interpretação das normas jurídicas (internas ou internacionais) é a que mais se aproxima da Constituição Federal, que faz da cidadania e da dignidade da pessoa humana dois de seus fundamentos, bem como tem por objetivos fundamentais erradicar a marginalização e construir uma sociedade livre, justa e solidária (incisos I, II e III do art.3º). Tudo na perspectiva da construção do tipo ideal de sociedade que o preâmbulo da respectiva Carta Magna caracteriza como "fraterna" (HC n. 94163, Relator Min. Carlos Britto, julgado em 2/12/2008, DJe 22/10/2009). (AgRg no RHC 136.961/RJ, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 15/06/2021, DJe 21/06/2021). (...)

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.919.722/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 17/8/2021.

 

Existem alguns outros julgados no mesmo sentido, como é o caso do STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.019.664/CE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13/12/2022.

 

NO CASO ENVOLVENDO O AGRG NO HC 804.741/MS, O STJ ENTENDEU QUE DEVERIA SEGUIR A REGRA GERAL (TEMA 918 e SÚMULA 593) E MANTEVE A CONDENAÇÃO DO RÉU

O caso concreto, com adaptações e nomes fictícios, foi o seguinte:

Antônio, 49 anos de idade, era professor em um Município do interior, e participava de um projeto escolar.

No projeto, ele conheceu Aline, então com 13 anos de idade, e iniciou um relacionamento amoroso.

Após algum tempo, a menina manteve sua primeira relação sexual com Antônio.

Esse relacionamento foi mantido em segredo dos pais de Aline. Inclusive, frequentemente a menina mentia para a mãe para poder se encontrar com Antônio.

A genitora de Aline finalmente tomou conhecimento do relacionamento amoroso por meio de um guarda do parque, ocasião em que relatou os fatos à polícia e ao Conselho Tutelar.

Naquela oportunidade, Antônio chegou a ir até a residência de Aline para pedir autorização para namorá-la, o que foi negado pela mãe em razão da diferença de idade entre eles.

Em razão desses fatos, Antônio foi denunciado pelo Ministério Público pelo crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP).

Ao final da instrução, Antônio foi condenado à pena privativa de liberdade de 10 anos e 8 meses de reclusão, em regime inicial fechado.

Após o trânsito em jugado, a defesa ingressou com revisão criminal alegando que o seu caso é semelhante ao que o STJ decidiu no AgRg no REsp 1.919.722/SP, acima explicado, razão pela qual deveria ser aplicado o mesmo entendimento.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

NÃO.

De início, reitera-se que, nos termos da Súmula 593 do STJ, o consentimento da vítima menor de 14 anos e o seu namoro com o acusado não afastam a existência do delito de estupro de vulnerável.

Nessa linha de intelecção, a jurisprudência do STJ tem sistematicamente rejeitado a tese de que a presunção de violência - termo que nem é mais utilizado na atual redação do CP - no estupro de vulnerável pode ser relativizada à luz do caso concreto (STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.934.812-TO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 14/9/2021).

No caso concreto, conforme fundamentadamente apontado pelo Tribunal de Justiça, o caso não se amolda ao distinguishing realizado no julgamento do AgRg no REsp 1.919.722/SP.

No AgRg no REsp 1.919.722/SP, a situação envolvia dois jovens namorados, cujo relacionamento foi aprovado pelos pais da vítima, sobrevindo um filho e a efetiva constituição de núcleo familiar.

No AgRg no HC 804.741/MS, a situação envolve uma relação amorosa que não foi consentida pela genitora da vítima, tanto que, ao tomar conhecimento de que sua filha estava se relacionando com o homem, acionou o Conselho Tutelar e registrou os fatos na Delegacia de Polícia. Ademais, a genitora da menor relatou que sua filha, após se relacionar com o acusado, apresentou comportamento agressivo, além de reprovar de ano na escola, tendo de ser submetida a tratamento psicológico. Somado a isso, conforme foi consignado pelo magistrado de primeiro grau, que se encontra mais próximo dos fatos, a vítima e o acusado tinham a gritante diferença de 36 anos.

A própria vítima e a sua genitora mencionaram espontaneamente que as relações aconteciam na chácara do acusado, localizada em área rural. Assim, mesmo ciente da tenra idade da vítima e do não consentimento de sua responsável legal, o acusado manteve relação sexual com a menor.

Logo, no presente caso (AgRg no HC 804.741/MS) são plenamente válidas a Súmula 593 do STJ e a tese do REsp repetitivo 1.480.881/PI (Tema 918) sobre a impossibilidade de relativização da presunção de vulnerabilidade da vítima.

 

Em suma:

 

 

 


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