quinta-feira, 19 de outubro de 2023

O banco não é responsável em caso de transações realizadas com cartão físico com chip e a senha pessoal do correntista, sem indícios de fraude

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, titular de conta corrente no Banco ZZZ, identificou dois saques indevidos feitos com seu cartão, em dois dias específicos.

Ele procurou o banco afirmando que não foi ele quem fez esses dois saques.

Como a situação não foi resolvida, João ajuizou ação declaratória de inexistência de débito cumulada com pedido de indenização por danos morais e materiais contra o Banco.

Alegou que foram realizados os saques indevidos e afirmou não ter emprestado o cartão ou revelado sua senha a terceiros.

Requereu a declaração de inexistência ou de inexigibilidade dos débitos, bem como a condenação da instituição financeira ao ressarcimento dos valores sacados indevidamente. Pleiteou também pela condenação da ré ao pagamento de danos morais.

O Banco, em contestação, afirmou que o cartão com chip de João somente podia ser utilizado com senha.

Argumentou que a auditoria interna do banco concluiu pela ausência de indícios de fraude, bem como que os saques foram todos realizados na mesma agência e horários que outras transações não contestadas.

Afirmou não ter havido falha no serviço prestado e que se tratava de culpa exclusiva do autor.

A perícia concluiu que todas as transações impugnadas e não impugnadas foram feitas com a via do cartão desbloqueado da parte, nas mesmas agências, mesmos valores, em horários compatíveis.

Além disso, verificou-se que o cartão possuía mecanismos contra a adivinhação de senha, bem como que não era possível a realização de saques sem dispor do cartão com chip e senha.

Assim, não foi detectado qualquer indício de uso do cartão por terceiros ou anomalias que resultassem de fraudes.

Diante desse cenário, em primeira instância o pedido foi julgado improcedente.

A sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça.

Ainda inconformado, João interpôs recurso especial.

 

O pedido de João foi acolhido pelo STJ?

NÃO.

O art. 6º, inciso VIII, do CDC prevê a possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do consumidor:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(...)

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

 

Esse art. 6º, VIII, do CDC se aplica, obviamente, para os contratos bancários envolvendo consumidores.

No entanto, a inversão do ônus da prova, prevista neste dispositivo, tem como pressuposto e limite a real possibilidade de o réu (banco) fazer prova de que os fatos alegados pelo autor não são verdadeiros.

Se não houver possibilidade de o banco provar que os fatos alegados pelo autor não são verdadeiros, não estaremos mais falando em simples inversão do ônus da prova. Estaremos falando em pura e simples presunção absoluta (jure et de jure) de veracidade dos fatos alegados pelo autor. Presunção absoluta porque o réu não teria como, efetivamente, comprovar a falsidade ou inexatidão dos fatos alegados pelo consumidor.

Assim, por exemplo, é possível a inversão do ônus da prova no caso de consumidor que compre um eletrodoméstico e, poucos dias depois, ele não mais funcione. Caso seja verossimilhante a alegação do consumidor, a critério do juízo, poderá ser invertido o ônus da prova, de forma que o autor não terá que provar que comprou a geladeira já com defeito. Presumir-se-á este defeito, detectado pouco tempo após a compra, e o fornecedor deverá comprovar que o defeito não é de fábrica, mas causado pelo mau uso feito pelo consumidor. Esta prova será possível por meio de perícia, cujo ônus de requerer e custear passará a ser do fornecedor.

No caso dos autos, contudo, o Banco não tem como recuperar os arquivos das filmagens para submetê-las à perícia e comprovar não ser verdadeira a alegação do autor, na sua inicial, de que não foi ele ou pessoa por ele autorizada que efetuou o saque. Como não há dispositivo legal algum que obrigue a instituição financeira a manter tais registros por tempo indeterminado, o Banco não tem como provar a autoria do saque e não seria correto incumbir o réu de demonstrar fatos que ele objetivamente não tem como demonstrar, fatos estes constitutivos do direito alegado pelo autor.

Se apenas isto não bastasse, as Turmas de Direito Privado do STJ têm decidido que cabe ao correntista, em caso de eventuais saques irregulares na conta, feitos com o cartão e a senha cadastrada pelo consumidor, a prova de que o banco agiu com negligência, imperícia ou imprudência na entrega do dinheiro.

Para o STJ, basta à instituição financeira comprovar que o saque foi feito com o cartão do cliente e a respectiva senha, não tendo que demonstrar que foi ele pessoalmente que efetuou a retirada:

A responsabilidade da instituição financeira deve ser afastada quando o evento danoso decorre de transações que, embora contestadas, são realizadas com a apresentação física do cartão original e mediante uso de senha pessoal do correntista.

STJ. 3ª Turma. AgInt no REsp 1.855.695/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 24/08/2020.

 

Em relação ao uso do serviço de conta-corrente fornecido pelas instituições bancárias, cabe ao correntista cuidar pessoalmente da guarda de seu cartão magnético e sigilo de sua senha pessoal no momento em que deles faz uso. Não pode ceder o cartão a quem quer que seja, muito menos fornecer sua senha a terceiros. Ao agir dessa forma, passa a assumir os riscos de sua conduta, que contribui, à toda evidência, para que seja vítima de fraudadores e estelionatários.

STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1.954.042/DF, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 30/5/2022.

 

Deve-se ressaltar, também, que, mesmo que fosse comprovado que não foi o autor e nem outra pessoa por ele autorizada que realizou os saques, ainda assim, ressalvada a excepcionalidade de saques atípicos, não poderia o Banco ser responsabilizado, pois, cabia ao autor, como correntista, o devido zelo pelo seu cartão e senha bancária de modo a impedir que terceiros tivessem, de alguma forma, acesso a este. Ao se tornar cliente de qualquer banco, o correntista assume inteira responsabilidade por sua senha e pelo cartão magnético.

No caso concreto, não houve retiradas frequentes e repetitivas da conta do autor em diferentes caixas eletrônicos, com valores significativos em relação ao saldo, o que poderia indicar um possível golpe ou clonagem do cartão, situação em que a instituição financeira teria a obrigação de tomar medidas para evitar a continuação da fraude. Se não o fizesse, isso implicaria uma falha no serviço.

Desse modo, na situação analisada, não é possível responsabilizar o banco por saques realizados ao longo de quatro meses na mesma agência bancária, usando o cartão físico com chip do autor e sua senha pessoal.

 

Em suma:

Não se pode responsabilizar instituição financeira em caso de transações realizadas mediante a apresentação de cartão físico com chip e a senha pessoal do correntista, sem indícios de fraude. 

STJ. 4ª Turma. REsp 1.898.812-SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 15/8/2023 (Info 784).

 

DOD Plus – cuidado com um julgado no qual foi feito distinguishing

O banco responde civilmente quando descumpre o dever de segurança que lhe cabe e não obsta a realização de compras com cartão de crédito em estabelecimento comercial suspeito, com perfil de compra de consumidor que discrepa das aquisições fraudulentas efetivadas

O STJ possui o entendimento no sentido de que a responsabilidade da instituição financeira fica afastada se o evento danoso decorre de transações realizadas com a apresentação física do cartão original e mediante uso de senha pessoal do correntista.

Porém, no caso, apesar de o consumidor ter entregue seus cartões a motoboy após telefonema de um suposto funcionário da instituição financeira, o qual detinha conhecimento dos dados pessoais e das informações referentes às suas últimas transações, não há como afastar a responsabilidade da instituição financeira.

Há evidente descumprimento do dever de segurança do banco ao não obstar a realização de compras por cartão de crédito em estabelecimento comercial objeto de suspeita em transações anteriores, na mesma data, e que discrepam do perfil de gastos do consumidor nos meses anteriores.

Por fim, não se pode olvidar que a vulnerabilidade do sistema bancário, que admite operações totalmente atípicas em relação ao padrão de consumo dos consumidores, viola o dever de segurança que cabe às instituições financeiras e, por conseguinte, cristaliza a falha na prestação de serviço.

STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 1.728.279-SP, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 8/5/2023 (Info 776).


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