quarta-feira, 18 de junho de 2025
É possível a retificação do registro civil para inclusão de gênero neutro?
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Ariel nasceu em 1990 e foi
registrado com o gênero feminino.
Durante a adolescência, percebeu
que não se identificava com o gênero feminino, enfrentando dificuldades
emocionais e psicológicas significativas, incluindo diagnóstico de transtorno
alimentar e depressão.
Em 2016, Ariel começou a usar um
nome social masculino e, no ano seguinte, iniciou tratamento hormonal para
transição ao gênero masculino. Em 2018, realizou cirurgia de mastectomia
(remoção das mamas).
Naquele mesmo ano, Ariel
solicitou junto ao Cartório de Registro Civil a alteração de nome e gênero,
passando a ser registrado com prenome masculino e gênero masculino.
Contudo, com o passar do tempo,
Ariel percebeu que também não se identificava com o gênero masculino. Na
verdade, Ariel se reconhecia como uma pessoa não-binária - ou seja, não se
identificava nem como homem, nem como mulher.
Uma pessoa
não-binária é alguém cuja identidade de gênero não se encaixa exclusivamente
nas categorias tradicionais de “masculino” ou “feminino”. Isso significa que
essas pessoas não se identificam totalmente como homem nem como mulher, podendo
se reconhecer em uma identidade de gênero que está fora desse binário,
transitar entre gêneros, mesclar características de ambos, ou até mesmo
rejeitar qualquer identificação de gênero.
Diante dessa descoberta sobre sua
própria identidade, Ariel ingressou com uma ação de retificação de registro
civil, solicitando que constasse em sua certidão de nascimento o gênero
“neutro/não-binário/não especificado”, em vez do gênero masculino.
O juízo de primeira instância
julgou o pedido improcedente, alegando ausência de previsão legal para a
inclusão de gênero neutro no registro civil e o risco de criar insegurança
jurídica.
O Tribunal de Justiça de São
Paulo manteve a sentença, argumentando que o ordenamento jurídico brasileiro
reconhece apenas dois gêneros (feminino e masculino) e que a adoção de um
terceiro gênero demandaria amplo debate e regulamentação específica. O TJ também
levantou questões práticas sobre as consequências dessa alteração, como regras
previdenciárias e estabelecimentos prisionais.
Inconformado, Ariel interpôs
recurso especial, argumentando que o direito à autodeterminação de gênero é um
direito da personalidade protegido constitucionalmente, e que não há razão
jurídica para distinguir entre transgêneros binários e não-binários.
O STJ concordou com o
pedido de Ariel?
SIM. A 3ª Turma do STJ deu
provimento ao recurso para autorizar a retificação do registro civil da pessoa
requerente, para excluir o gênero masculino de seu assento de nascimento e
incluir o gênero neutro.
Direito ao livre
desenvolvimento da personalidade
A Constituição Federal de 1988
estabelece, como um de seus pilares axiológicos, a proteção da pessoa humana e
a promoção de sua dignidade. Nesse sentido, a tutela da pessoa envolve,
necessariamente, a proteção de sua personalidade.
O direito ao livre
desenvolvimento da personalidade compreende a proteção conferida à pessoa para
que ela possa escolher livremente seu projeto de vida. Garante-se, assim,
autonomia para a construção de uma identidade livre, sem interferência estatal
ou de terceiros. Trata-se não apenas da proteção do que a pessoa é, mas de
“toda a potencialidade de vir a ser” (MOREIRA, Rodrigo Pereira. Direito ao
livre desenvolvimento da personalidade: âmbito de proteção e reconhecimento
como direito fundamental atípico. In: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; BARROS,
Janete Ricken de. Dignidade da pessoa humana e o princípio da isonomia:
implicações recíprocas. Brasília: IDP, 2014. p. 62).
O direito à autodeterminação de
gênero e à identidade sexual configura-se também como direito da personalidade,
diretamente relacionado ao livre desenvolvimento da personalidade e à
possibilidade de o indivíduo escolher livremente os elementos que dão sentido à
sua existência.
Direito à autodeterminação
de gênero e o gênero neutro/não-binário
É necessário desconstruir o
paradigma de binariedade e heteronormatividade para permitir a inclusão
igualitária de pessoas cujas identidades extrapolam o padrão considerado
“normal”, assegurando-lhes tratamento equitativo.
Pessoas não-binárias não se
reconhecem exclusivamente como do sexo feminino ou masculino, podendo
identificar-se com um terceiro gênero — o gênero neutro.
A sigla LGBTQIAP+ busca incluir
essas diversas identidades e orientações sexuais, conferindo visibilidade a
grupos historicamente marginalizados e que constituem parcela significativa da
população.
O direito à autodeterminação de
gênero e à identidade sexual, nesse sentido, é direito fundamental
personalíssimo, intimamente vinculado à dignidade da pessoa humana. A
identidade funciona como projeção pública da personalidade e instrumento
essencial para sua individualização jurídica (JÚNIOR, Benedito Biserra de
Aguiar et al. Intersexualidade e o direito à identidade... p. 351).
Diversos ordenamentos jurídicos
estrangeiros já reconhecem a existência do terceiro gênero, como a Austrália,
Índia, França, Holanda e Alemanha, demonstrando uma tendência internacional de
reconhecimento da identidade de gênero não-binária e da proteção jurídica
correspondente. Essas decisões afirmam que o Direito deve acompanhar a
pluralidade de existências humanas e suas formas legítimas de autodeterminação.
É juridicamente possível a
retificação de registro civil para gênero neutro/não-binário
O STJ já reconhece, há tempo, a
possibilidade de retificação de prenome e de gênero por pessoas transgêneras.
Contudo, até o momento, essa
possibilidade somente se aplicava para a lógica binária de gênero
(masculino/feminino).
Pessoas com identidade de gênero
não-binária têm o direito de serem tratadas com respeito e dignidade, de forma
a não serem marginalizadas ou invisibilizadas pelo sistema jurídico. Portanto,
reconhece-se o direito da pessoa transgênera não-binária à autodeterminação, o
que inclui a retificação do registro civil para a inclusão do gênero neutro.
Em suma:
Deve ser reconhecido o direito ao livre
desenvolvimento da personalidade da pessoa transgênera não-binária de
autodeterminar-se, possibilitando-se a retificação do registro civil para que
conste gênero neutro.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.135.967-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 6/5/2025 (Info
849).
