Dizer o Direito

segunda-feira, 30 de junho de 2025

O crime de falsa identidade consuma-se com o simples fornecimento de dados inexatos sobre identidade, independentemente de resultado naturalístico

Imagine a seguinte situação hipotética:

Os policiais militares estavam fazendo uma ronda no bairro quando avistaram um indivíduo “agachado”, tentando se esconder atrás de uma lixeira.

Os policiais abordaram o homem, que se identificou como sendo Lucas Souza.

Ocorre que o homem abordado, na verdade, se chamava Marcos Souza. Lucas Souza é seu irmão.

Ele afirmou que seu nome era Lucas Souza porque havia um mandado de prisão contra ele.

Os policiais checaram no sistema informatizado e perceberam que Marcos havia mentido.

Ele então confessou seu verdadeiro nome e foi preso em flagrante.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra Marcos, imputando-lhe a prática do crime de falsa identidade, delito previsto no art. 307 do CP:

Falsa identidade

Art. 307. Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa, se o fato não constitui elemento de crime mais grave.

 

O juiz absolveu o réu sob o argumento de que o fato não gerou repercussão administrativa ou penal e que houve arrependimento eficaz, pois o acusado forneceu o nome correto antes do registro do boletim de ocorrência e de ser ouvido na Delegacia.

O Ministério Público recorreu e a questão chegou até o STJ.

 

Houve crime de falsa identidade neste caso?

SIM.

O art. 307 do Código Penal tipifica a conduta daquele que atribui a si mesmo ou a terceiro falsa identidade, com o fim específico de obter vantagem (para si ou para outrem), ou de causar dano a outrem.

A consumação ocorre no momento em que o agente atribui a si ou a terceiro falsa identidade. É indiferente se o destinatário da declaração venha a descobrir posteriormente a verdadeira identidade ou se o próprio agente se retrate em seguida.

A ausência de prejuízo ou de obtenção de vantagem não descaracteriza o crime nem conduz à absolvição. A jurisprudência do STJ é pacífica nesse sentido:

Tratando-se o delito previsto no art. 307 do CP de crime formal, é desnecessária a consumação de obtenção da vantagem própria ou de outrem, ou mesmo a ocorrência de danos a terceiros.

STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1.697.955/ES, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 10/4/2018.

 

O crime de falsa identidade é formal, ou seja, consuma-se com a simples conduta de atribuir-se falsa identidade, apta a ocasionar o resultado jurídico do crime, sendo dispensável a ocorrência de resultado naturalístico, consistente na obtenção de vantagem para si ou para outrem ou de prejuízo a terceiros, ocorrendo inclusive em situação de autodefesa.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 821.195/SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 28/8/2023.

 

Portanto, não há divergência na jurisprudência do STJ quanto à natureza formal do crime de falsa identidade.

 

O delito de falsa identidade é crime formal, que se consuma quando o agente fornece, consciente e voluntariamente, dados inexatos sobre sua real identidade, e, portanto, independe da ocorrência de resultado naturalístico. 

STJ. 3ª Seção. REsp 2.083.968-MG, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 14/5/2025 (Recurso Repetitivo - Tema 1255) (Info 850).

 

Falsa identidade e autodefesa

O STF, no julgamento do Tema 478, fixou a tese de que:

O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP).

STF. Plenário. RE 640139 RG, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 22/09/2011 (Repercussão Geral - Tema 478).

 

No mesmo sentido, a Súmula 522 do STJ dispõe:

Súmula 522-STJ: A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa.

 

Além disso, no Tema 646 STJ, foi fixada a seguinte tese:

É típica a conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial, ainda que em situação de alegada autodefesa (art. 307 do CP).

STJ. 3ª Seção. REsp 1.362.524/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 23/10/2013.

 

Assim, o direito à não autoincriminação não autoriza a prática de outros crimes, como o de falsa identidade.

 

Caso concreto

No caso dos autos, o juízo de origem absolveu o réu com base no entendimento de que, ao ter fornecido sua verdadeira identidade antes do registro do boletim de ocorrência, não teria havido repercussão penal ou administrativa.

Entretanto, como demonstrado, a retratação posterior não afasta a tipicidade da conduta. O crime já se consumara no momento em que o agente, durante a abordagem policial, atribuiu a si o nome de seu irmão, com o claro intuito de ocultar sua condição de foragido.


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