Dizer o Direito

terça-feira, 1 de julho de 2025

A aplicação do in dubio pro societate no recebimento da inicial de ação por improbidade administrativa pressupõe a indicação, ainda que mínima, de elementos que evidenciem o dolo do agente

Imagine a seguinte situação hipotética:

O Ministério Público do Estado descobriu que havia ocorrido uma fraude em uma licitação envolvendo a contratação da empresa Alfa Educação, contratada para prestar serviços educacionais na rede pública de ensino.

A investigação revelou que Luciano, sócio majoritário da empresa, estava impedido de contratar com o Poder Público devido a uma condenação anterior, no entanto, mesmo assim, participou da licitação.

Para viabilizar a fraude, ele agiu em conjunto com o prefeito João e com os diretores da empresa, Maurício e Eduardo, que assinaram documentos declarando falsamente a ausência de impedimentos.

Diante dos fatos, o Ministério Público ajuizou ação de improbidade administrativa contra todos os envolvidos, incluindo:

• o prefeito João (por conivência com a fraude);

• a empresa Alfa Educação;

• Luciano (sócio majoritário que estava impedido);

• os diretores Maurício e Eduardo (que assinaram as declarações falsas);

Regina (sócia minoritária da empresa).

 

Na petição inicial, o Ministério Público descreveu detalhadamente a conduta de todos os réus, exceto a de Regina. Em relação a ela, o MP apenas mencionou que era sócia da empresa, sem apontar nenhuma conduta específica que teria praticado ou como teria participado da fraude.

Regina pediu para ser excluída da ação, alegando que não havia qualquer descrição de conduta ímproba de sua parte na petição inicial.

O juiz recebeu a inicial contra todos os réus, inclusive em relação à Regina. Na decisão, o magistrado afirmou que não era momento para excluir Regina por conta da aplicação do princípio do “in dubio pro societate” (na dúvida, em favor da sociedade), que orienta o recebimento das ações de improbidade mesmo quando há apenas indícios.

 

Princípio do in dubio pro societate

O STJ possui vários julgados afirmando que, se o juiz entender que há meros indícios do cometimento de atos enquadrados como improbidade administrativa, a petição inicial da ação de improbidade deve ser recebida. Isso porque, nessa fase inicial prevalece o princípio do in dubio pro societate, a fim de possibilitar o maior resguardo do interesse público.

Nesse sentido: na fase inaugural do processamento de ação civil pública por improbidade administrativa, vige o princípio do in dubio pro societate. Significa dizer que, caso haja apenas indícios da prática de ato de improbidade administrativa, ainda assim se impõe o recebimento da exordial (STJ. 2ª Turma. AgInt no AREsp 856.348/MG, Rel. Min. Teodoro Silva Santos, julgado em 9/9/2024).

 

Regina recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo, que manteve sua inclusão no processo, argumentando que, por ser sócia da empresa (ainda que minoritária), poderia ter se beneficiado da contratação fraudulenta, e que sua participação no esquema deveria ser analisada após a instrução probatória.

Ainda inconformada, Regina interpôs recurso especial sustentando que não pode haver responsabilização por improbidade administrativa sem a descrição específica de uma conduta, e que sua inclusão baseada apenas no fato de ser sócia configuraria responsabilidade objetiva, que é vedada no direito administrativo.

 

O STJ concordou com os argumentos de Regina? Ela foi excluída do processo?

SIM.

O STJ possui jurisprudência consolidada no sentido de que, na fase de recebimento da petição inicial, deve-se realizar um juízo meramente preliminar, voltado a afastar apenas acusações manifestamente infundadas.

Assim, a regra geral é o recebimento da petição inicial, sendo a rejeição medida excepcional.

De fato, prevalece, nessa fase, o princípio do in dubio pro societate, ou seja, diante de dúvidas, estas devem favorecer a sociedade.

Desse modo, mesmo que existam apenas indícios da prática de ato de improbidade administrativa, é necessário o prosseguimento da ação para análise dos fatos apontados como ímprobos (STJ. 2ª Turma. AgInt no REsp 2.159.833/TO, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 19/2/2025, DJEN de 24/2/2025).

Entretanto, a aplicação do princípio do in dubio pro societate pressupõe que a petição inicial aponte ao menos indícios de conduta que se amolde aos atos previstos nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/1992, com a devida indicação de elementos que evidenciem o dolo na conduta do agente público e, se for o caso, a existência de dano ao erário. Nesse sentido:

Ainda que na fase de recebimento da inicial não seja necessário um juízo definitivo quanto à presença do dolo, o autor da ação deve indicar expressamente elementos que evidenciem a existência do elemento subjetivo, não bastando a mera indicação de ilegalidade do ato impugnado.

STJ. 2ª Turma. AgInt no AREsp 2.374.743/SE, Rel. Min. Afrânio Vilela, julgado em 1/4/2025.

 

No caso concreto, diferentemente do que se observa em relação aos demais réus, não há qualquer indicação de conduta atribuída à Regina. A petição inicial deixa claro que o controle da empresa era exercido pelo sócio majoritário Luciano.

Ademais, os diretores Maurício e Eduardo foram os responsáveis por representar legalmente a empresa no procedimento licitatório, tendo, inclusive, assinado a declaração de ausência de impedimento para contratar com o Poder Público.

Em relação à Regina, o único dado apresentado é o fato objetivo de ser sócia minoritária da empresa supostamente contratada de forma indevida.

Assim, diante da ausência de imputação de ato doloso de improbidade administrativa, o STJ entendeu que ele deveria ser excluída do polo passivo da ação civil pública.

 

Em suma:

Ainda que na fase de recebimento da inicial em ações de improbidade administrativa prevaleça o princípio do in dubio pro societate, o autor da ação deve indicar expressamente elementos que evidenciem a existência do elemento subjetivo na conduta do agente público e, se for o caso, o dano causado ao erário, não bastando a mera indicação de ilegalidade do ato.

STJ. 2ª Turma. AREsp 2.080.146-SP, Rel. Min. Francisco Falcão, Rel. Acd. Min. Afrânio Vilela, julgado em 20/5/2025 (Info 851).

 

DOD Teste: revisão em perguntas

Qual é o alcance do princípio in dubio pro societate nas ações de improbidade administrativa?

O princípio in dubio pro societate não autoriza o recebimento automático de qualquer inicial. Sua prevalência apenas indica que, quando apontados na petição inicial indícios da prática de ato de improbidade administrativa (algum ato previsto nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/1992, com a indicação de elementos que evidenciem a presença do elemento subjetivo na conduta do agente público e, se for o caso, o dano causado ao erário), a ação deve ser processada.

 

Quais elementos são necessários para o recebimento válido da inicial em ação de improbidade administrativa?

Ainda que na fase de recebimento da inicial não seja necessário um juízo definitivo quanto à presença do dolo, o autor da ação deve indicar expressamente elementos que evidenciem a existência do elemento subjetivo, não bastando a mera indicação de ilegalidade do ato impugnado. É fundamental a descrição de conduta específica imputada a cada réu.

 

É possível a responsabilização objetiva em ações de improbidade administrativa?

Não se admite responsabilidade objetiva em matéria de improbidade administrativa. O magistrado deve expor as razões de fato e de direito que ensejam a responsabilização de cada um dos réus para reconhecer a procedência do pedido, sendo necessária a demonstração do elemento subjetivo (dolo ou culpa grave, conforme o caso).

 

O simples fato de ser sócio de empresa envolvida em irregularidades implica automaticamente em legitimidade passiva para responder por ato de improbidade administrativa?

Não. É necessária a imputação específica de conduta, com indicação de que o sócio induziu, concorreu para a prática do ato ou dele se beneficiou de forma direta ou indireta, conforme o art. 3º da Lei 8.429/1992.

 

Como deve ser feita a descrição das condutas na petição inicial de ação de improbidade?

A petição inicial deve conter descrição pormenorizada de como cada réu concorreu para o ato ímprobo, não bastando alegações genéricas ou presunções baseadas apenas na posição formal ocupada. A ausência de individualização concreta da conduta praticada pelo réu pode levar à sua exclusão do polo passivo.


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