Dizer o Direito

domingo, 27 de julho de 2025

O que é o estelionato sentimental? Quais são as suas consequências no campo da responsabilidade civil?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina era uma professora aposentada de 60 anos, que tinha ficado viúva há pouco tempo. Ela conheceu Fernando, um homem 12 anos mais novo, que ainda era casado na época.

Eles iniciaram conversas apaixonadas durante um tempo, até que, em novembro de 2018, Fernando a beijou e disse que iria se separar da esposa.

Na ocasião, Fernando relatou que passava por dificuldades financeiras e pediu ajuda. Regina pagou diversas despesas de Fernando. Em seguida, ele se mudou para a casa da viúva.

A partir daí, Fernando começou a fazer sucessivos pedidos de empréstimo à Regina, sempre alegando estar passando por graves dificuldades financeiras.

Em apenas 10 meses de relacionamento, Regina gastou aproximadamente R$ 40.000,00 com despesas para Fernando, incluindo uma motocicleta, cursos, roupas novas, um saxofone, um cachorro de raça, além de quitar dívidas de faculdade em atraso.

As conversas entre eles (posteriormente analisadas pela Justiça) mostravam que Fernando constantemente se colocava em posição de vulnerabilidade emocional, despertando a compaixão de Regina. Ele frequentemente mencionava sonhos não realizados e necessidades financeiras.

O relacionamento chegou ao fim em junho de 2019, quando Regina negou mais um pedido de empréstimo.

Fernando saiu de casa de forma abrupta e sem justificativa clara, encerrando a relação.

Sentindo-se enganada e percebendo que havia sido vítima de manipulação emocional para fins financeiros, Regina ajuizou uma ação de indenização por danos materiais e morais contra Fernando, alegando ter sido vítima de “estelionato sentimental”.

O juiz julgou procedente o pedido, condenando Fernando a pagar R$ 40.000,00 de danos materiais e R$ 15.000,00 de danos morais.

Fernando apelou, alegando que não houve ato ilícito de sua parte, que não agiu com dolo e que vivia em harmonia com Regina, sendo apenas presenteado por ela.

O Tribunal de Justiça, contudo, negou provimento à apelação, mantendo a condenação.

Ainda inconformado, Fernando interpôs recurso especial ao STJ, sustentando que não praticou ato ilícito e que não foram comprovados danos que justifiquem sua responsabilização civil.

 

O STJ manteve a condenação de Fernando?

SIM.

O denominado estelionato sentimental ocorre com a simulação de relação afetiva, em que uma das partes, valendo-se da vulnerabilidade emocional da outra, busca obter ganhos financeiros.

Segundo o art. 171 do Código Penal, verifica-se que, para a configuração de crimes de estelionato em geral, é necessário o preenchimento dos seguintes requisitos:

i) obtenção de vantagem ilícita, em prejuízo alheio;

ii) emprego de artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento;

iii) induzimento ou manutenção da vítima em erro.

 

No caso concreto, ficou comprovado que:

i) houve obtenção de vantagem ilícita, pois os gastos financeiros suportados pela vítima não advieram de despesas ordinárias de um relacionamento amoroso, mas de desejos patrimoniais exclusivos do recorrente, em curto espaço de tempo;

ii) o recorrente sabia da situação de vulnerabilidade emocional da recorrida e a induziu a erro, simulando a existência de uma relação amorosa; e

iii) o recorrente agiu com ardil, contando histórias de dificuldades financeiras e fazendo pressão para obter dinheiro fácil e rápido da vítima.

 

Diante desse cenário, ainda que o pagamento de despesas tenha ocorrido espontaneamente, sem nenhuma coação, isto não afasta, no caso, a prática de ato ilícito, porque, o que caracteriza o estelionato é, exatamente, o fato de que a vítima não age coagida, mas de forma iludida, acreditando em algo que não existe.

Dessa forma, como consequência da simulação do relacionamento e das condutas com o objetivo de obter ganho financeiro, em princípio, é devida à vítima indenização a título de danos materiais, pelas despesas extraordinárias decorrentes do relacionamento, e de danos morais, pela situação vivenciada.

 

Em suma:

O estelionato sentimental configura ato ilícito que gera o direito à indenização a título de danos morais e de danos materiais pelas despesas extraordinárias decorrentes do relacionamento. 

STJ. 4ª Turma. REsp 2.208.310-SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 20/5/2025 (Info 852).

 

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Quais são os elementos caracterizadores do estelionato sentimental conforme a jurisprudência do STJ?

O estelionato sentimental caracteriza-se pela simulação de relação afetiva em que uma das partes se vale da vulnerabilidade emocional da outra para obter ganhos financeiros. Os elementos configuradores são: obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio, emprego de artifício, ardil ou meio fraudulento, e induzimento ou manutenção da vítima em erro. A conduta deve ser pautada na má-fé com objetivo específico de ludibriar o parceiro e obter vantagens patrimoniais da relação amorosa.

 

Como se diferencia o estelionato sentimental de despesas ordinárias de um relacionamento amoroso?

A distinção reside na natureza, quantidade e timing dos gastos. No estelionato sentimental, os gastos são excessivos, de natureza diversa e concentrados em curto período, não se tratando de presentes pontuais ou atos de carinho. Os gastos decorrem de desejos patrimoniais exclusivos do estelionatário, que se aproveita da vulnerabilidade emocional da vítima para induzir despesas extraordinárias que fogem à normalidade de um relacionamento.

 

Qual é a configuração do ato ilícito no estelionato sentimental sob a perspectiva do Código Civil?

O ato ilícito configura-se pela conduta de má-fé com objetivo de ludibriar o parceiro e obter vantagens patrimoniais, enquadrando-se nos termos dos arts. 186 e 927 do Código Civil. A simulação da relação afetiva e a exploração da vulnerabilidade emocional da vítima constituem violação ao dever de agir com boa-fé, gerando responsabilidade civil por danos materiais e morais causados.

 

Como a jurisprudência trata a questão da voluntariedade dos pagamentos no estelionato sentimental?

O fato de os pagamentos terem ocorrido espontaneamente, sem coação física, não afasta a configuração do ato ilícito. O que caracteriza o estelionato é precisamente o fato de a vítima não agir coagida, mas de forma iludida, acreditando em algo que não existe. A voluntariedade aparente é resultado do ardil empregado pelo estelionatário, que induz a vítima ao erro através da simulação da relação afetiva.

 

Quais são os tipos de danos indenizáveis no estelionato sentimental?

São devidas indenizações por danos materiais e morais. Os danos materiais correspondem às despesas extraordinárias decorrentes do relacionamento fraudulento, que não seriam suportadas em uma relação genuína. Os danos morais decorrem da lesão à autoestima da vítima, que se sente enganada, humilhada e ridicularizada ao descobrir que foi ludibriada em seus sentimentos mais íntimos.

 

Como a teoria do enriquecimento sem causa se aplica ao estelionato sentimental?

Mesmo que não configurado o estelionato sentimental, a devolução dos valores seria medida adequada para evitar o enriquecimento sem causa do beneficiário. Quando há consciência de que os valores constituem empréstimos e não presentes, especialmente pelo considerável valor envolvido, surge o dever de restituição para impedir que alguém se locuplete indevidamente em detrimento de outrem.

 

Qual é o padrão comportamental típico do estelionatário sentimental identificado pela jurisprudência?

O padrão envolve: percepção da vulnerabilidade emocional e psicológica da vítima, envolvimento amoroso de curto a médio prazo com fim específico de obter vantagem econômica, promessas de devolução dos valores, e encerramento abrupto e injustificado do relacionamento após obter os ganhos desejados. O agente costuma se colocar em posição de inferioridade e vulnerabilidade para despertar a compaixão da vítima.

 

Como a diferença de idade e situação financeira influencia na caracterização do estelionato sentimental?

A disparidade de idade e situação financeira constitui elemento relevante para demonstrar a vulnerabilidade da vítima e a estratégia do estelionatário. A escolha de vítimas com melhor situação financeira e em estado de vulnerabilidade emocional (como viuvez) evidencia o planejamento e a má-fé na conduta, reforçando a caracterização do ato ilícito e justificando a aplicação de penalidades mais rigorosas.


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