sábado, 26 de julho de 2025
É possível que um cassino de Las Vegas cobre, no Brasil, dívida de jogo que foi contraída por brasileiro quando ele estava lá, considerando que o jogo é uma prática lícita em Nevada (EUA)
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Roberto é um empresário
brasileiro que viajou para Las Vegas, nos Estados Unidos, para uma convenção de
negócios.
Durante sua estadia, ele visitou
o famoso cassino Wynn Las Vegas, onde jogou poker e blackjack.
Após algumas horas, Roberto havia
perdido uma quantia considerável e, para continuar jogando, solicitou um
empréstimo ao cassino no valor de US$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares).
O cassino, seguindo seus
procedimentos padrão para clientes VIP, concedeu o crédito mediante a
assinatura de uma nota promissória.
Roberto assinou o documento,
continuou jogando e perdeu todo o valor.
Quando chegou o vencimento da
nota promissória, Roberto não efetuou o pagamento.
A empresa Wynn Las Vegas LLC
propôs então uma ação de execução no Brasil (Justiça estadual de São Paulo,
onde mora Roberto) para cobrar a dívida, apresentando a nota promissória
devidamente traduzida e registrada como título executivo extrajudicial.
Roberto opôs embargos à execução, alegando que a dívida era
inexigível por se tratar de dívida de jogo. Segundo alegou, a obrigação não
seria exequível no Brasil em razão do art. 814 do Código Civil, que estabelece:
Art. 814. As dívidas de jogo ou de
aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que
voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor
ou interdito.
§ 1º Estende-se esta disposição a
qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento, novação ou fiança de
dívida de jogo; mas a nulidade resultante não pode ser oposta ao terceiro de
boa-fé.
§ 2º O preceito contido neste artigo
tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só se excetuando os
jogos e apostas legalmente permitidos.
§ 3º Excetuam-se, igualmente, os
prêmios oferecidos ou prometidos para o vencedor em competição de natureza
esportiva, intelectual ou artística, desde que os interessados se submetam às
prescrições legais e regulamentares.
Para ele, se o Judiciário
aceitasse a cobrança isso violaria a ordem pública e os bons costumes
brasileiros, conforme o art. 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro.
O juiz de primeira instância rejeitou os embargos,
entendendo que a obrigação foi contraída em Nevada (EUA), onde a prática é
legal, devendo aplicar-se a legislação local conforme o art. 9º da LINDB:
Art. 9º Para qualificar e reger as
obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.
O Tribunal de Justiça de São
Paulo manteve a decisão.
Ainda inconformado, Roberto
interpôs recurso especial insistindo nos mesmos argumentos.
O STJ confirmou a decisão
das instâncias inferiores, permitindo a cobrança da dívida de jogo contraída no
cassino em Las Vegas?
SIM.
Conforme explicado, o Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo decidiu que a cobrança da dívida de jogo
contraída em Las Vegas, Nevada não viola a ordem pública ou os bons costumes
brasileiros.
O TJ fundamentou sua decisão na
aplicação do art. 9º da LINDB, que determina que as obrigações devem ser
regidas pela lei do país em que foram constituídas.
A decisão do TJ destacou que a legislação de Nevada
considera lícitas as dívidas de jogo e que há uma equivalência parcial entre a
legislação estrangeira e a brasileira, que permite a cobrança de jogos
legalmente permitidos, conforme o art. 814, § 2º, do Código Civil:
Art. 814 (...)
§ 2º O preceito contido neste artigo
tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só se excetuando os
jogos e apostas legalmente permitidos.
Assim, o Tribunal de origem
concluiu que não há óbice à execução da dívida, pois impedir a cobrança
possibilitaria o enriquecimento sem causa, o que contraria o ordenamento
jurídico brasileiro (fls. 250-252).
O STJ concordou com esses argumentos.
Na verdade, o STJ já possui
outros julgados reconhecendo a possibilidade de cobrança de dívida de jogo
contraída em países onde a prática é legal, aplicando a lei estrangeira
conforme o art. 9º da LINDB.
A ordem pública é um conceito
mutável e, na hipótese, não há vedação para a cobrança, pois existe
equivalência entre a legislação estrangeira e a brasileira.
Além disso, o STJ destacou que se
deve evitar o enriquecimento sem causa, além de valorizar a boa-fé.
Em suma:
Admite-se a cobrança em solo pátrio de dívida de jogo
contraída por brasileiro em país onde a prática é legal.
STJ. 4ª
Turma. REsp 1.891.844-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em
13/5/2025 (Info 852).
No mesmo sentido:
A cobrança de dívida de jogo contraída por brasileiro em cassino
que funciona legalmente no exterior é juridicamente possível e não ofende a
ordem pública, os bons costumes e a soberania nacional.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.628.974-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas
Cueva, julgado em 13/6/2017 (Info 610).
