quinta-feira, 31 de julho de 2025
A empresa de turismo é responsável pela falha na prestação do serviço ao emitir passagem em classe diversa da solicitada, devendo indenizar o consumidor pelos prejuízos decorrentes
Imagine a seguinte situação
hipotética:
A Embaixada do Reino da Arábia
Saudita no Brasil precisava que sua Embaixatriz realizasse uma viagem oficial
urgente para Jeddah, na Arábia Saudita, para participar de importantes eventos
diplomáticos.
Por questões de segurança e
protocolo diplomático, todos os agentes da missão e seus familiares só podem
viajar em classe executiva, sendo-lhes vedado realizar voos em classe
econômica.
A secretária da Embaixada contratou
uma empresa de turismo para adquirir as passagens aéreas em nome da
embaixatriz, com ida e volta de Brasília para a Arábia Saudita, especificamente
em classe executiva. A empresa foi claramente informada sobre essa exigência
antes da compra.
Após efetuar o pagamento, a
Embaixada recebeu os bilhetes aéreos. Contudo, apenas no momento de verificar o
horário do embarque do voo internacional, descobriram que o bilhete de volta
havia sido emitido erroneamente na classe econômica, sem qualquer aviso prévio.
Diante da impossibilidade de usar
a passagem (devido às regras de protocolo diplomático), a Embaixada exigiu
reparação urgente da situação. A empresa de turismo procedeu ao cancelamento da
reserva, mas não conseguiu confirmar uma nova reserva, deixando a Embaixatriz
em situação de desamparo no exterior, sem data prevista para retorno ao Brasil.
Após várias ligações
internacionais e tentativas frustradas, a Embaixada conseguiu, finalmente,
fazer uma nova reserva com outra empresa de turismo.
A Embaixada ajuizou ação de
indenização contra a agência de turismo, pleiteando reparação por danos morais
e danos materiais (reembolso da passagem inutilizada).
Primeira pergunta: de quem
é a competência para julgar essa ação em primeira instância?
Justiça Federal, nos termos do art. 109, II, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais
compete processar e julgar:
(...)
II - as causas entre Estado
estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou
residente no País;
No caso concreto, o Juiz Federal
rejeitou o pedido de danos morais (por entender que deveria ser pleiteado pela
pessoa física), mas julgou procedente o pedido de danos materiais, condenando a
empresa ao reembolso.
Segunda pergunta: de quem é
a competência para julgar o recurso contra a sentença?
Do STJ, conforme previsão do art.
105, II, “c”, da CF/88.
O recurso cabível contra as decisões proferidas nestas
causas consiste no recurso ordinário constitucional, que é julgado pelo STJ e
não pelo TRF:
Art. 105. Compete ao Superior
Tribunal de Justiça:
(...)
II - julgar, em recurso
ordinário:
(...)
c) as causas em que forem partes
Estado estrangeiro ou organismo internacional, de um lado, e, do outro,
Município ou pessoa residente ou domiciliada no País;
Desse modo, trata-se de
interessante hipótese na qual o STJ julgará um recurso contra sentença de Juiz
Federal.
No caso concreto, a empresa
recorreu ao STJ, alegando ilegitimidade ativa da Embaixada (argumentando que os
danos foram suportados pela Embaixatriz) e ausência de nexo de causalidade,
sustentando que o erro teria sido do sistema da companhia aérea.
O STJ manteve a condenação
da empresa de turismo ao pagamento dos danos materiais?
SIM.
Os documentos demonstram que a compra dos bilhetes aéreos
foi realizada pela Embaixada da Arábia Saudita, através de preposto, e não
diretamente pela Embaixatriz.
Nesse cenário, a autora tem legitimidade ativa para
postular reparação equivalente ao ressarcimento do bilhete aéreo, pois,
efetivamente, suportou o prejuízo material do dano causado.
No mérito, o STJ confirmou a procedência do pedido para
condenar a ré ao pagamento de danos materiais decorrentes da emissão equivocada
de passagem aérea.
Por ser a relação travada entre as partes de cunho
nitidamente consumerista, aplicam-se as disposições previstas no Código de
Defesa do Consumidor.
O art. 14 do CDC estabelece o seguinte:
Art. 14. O fornecedor de serviços
responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos
causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem
como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1º O serviço é defeituoso
quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se
em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que
razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi
fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado
defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3º O fornecedor de serviços só
não será responsabilizado quando provar:
I - que, tendo prestado o
serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do
consumidor ou de terceiro.
Trata-se, portanto, de hipótese de responsabilidade civil
objetiva, baseada na teoria do risco da atividade, e somente pode ser elidida
se demonstrada:
a) a ocorrência de força maior ou caso fortuito externo;
b) a inexistência do defeito; e
c) a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Nos termos do art. 14, caput, do CDC, o fornecedor de
serviços responde objetivamente (ou seja, independentemente de culpa ou dolo)
pela reparação dos danos suportados pelos consumidores, decorrentes da má
prestação do serviço.
Além disso, o § 3º
do referido dispositivo legal prevê hipótese de inversão do ônus da prova ope
legis (a qual dispensa os requisitos do art. 6º, VIII, do CDC), assinalando
que o fornecedor só não será responsabilizado quando provar que, tendo prestado
o serviço, o defeito inexiste, ou a culpa exclusiva do consumidor ou de
terceiro.
A culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro deve ser
cabalmente comprovada pelo fornecedor de serviços, a fim de romper o nexo de
causalidade e, consequentemente, ilidir a sua responsabilidade objetiva, o que
não ocorreu na hipótese.
No presente caso, ficou evidenciada a
má prestação do
serviço, porquanto comprovado que a autora solicitou a compra de
passagem aérea, ida e volta, para o trecho Brasília/Jeddah, na Arábia Saudita,
em classe executiva. Não obstante, o bilhete de volta foi emitido na classe
econômica.
A justificativa da ré para o equívoco, qual seja, de que
o sistema de emissão de passagens da companhia aérea alterou a passagem de
volta para a classe econômica, não isenta de culpa ou afasta o dever de
indenizar.
Na qualidade de prestadora de serviço de venda de
passagens aéreas, a ré tem o dever de conferir os bilhetes por ela emitidos,
verificando se estão adequados às solicitações do consumidor que com ela
contrata. Ademais, a culpa exclusiva de terceiro, qual seja, da companhia
aérea, não foi devidamente demonstrada.
A alegação da ré de que a secretária da Embaixada teria
sido alertada do ocorrido e requerido o cancelamento da volta da Embaixatriz na
classe econômica, não efetuando o pagamento da diferença tarifária relativa à
classe executiva, não foi comprovada. Ainda que assim não fosse, tal situação
não afastaria a responsabilidade da ré. Isso, porque ela tinha a obrigação de
verificar se os bilhetes foram emitidos em conformidade com o solicitado pelo
consumidor. Então, ela não cumpriu com essa obrigação e ocasionou o
cancelamento da passagem, sujeitando a autora a adquirir novo bilhete em outra
companhia aérea. Por isso, deve arcar com os prejuízos materiais sofridos.
Em suma:
A empresa de turismo é responsável pela falha na
prestação do serviço ao emitir passagem em classe diversa da solicitada,
devendo indenizar o consumidor pelos prejuízos decorrentes.
STJ. 4ª
Turma. RO 289-DF, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 28/4/2025 (Info 853).
