Dizer o Direito

sábado, 29 de novembro de 2025

A perda da propriedade rural em favor da União pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes deve se compatibilizar com a boa-fé de terceiros, o princípio da intranscendência da pena e outros valores constitucionais relevantes

Imagine a seguinte situação hipotética:

Antônio é um jovem que foi preso em flagrante por tráfico de drogas.

Durante as investigações, descobriu-se que ele utilizava parte da antiga fazenda de seus pais para armazenar e distribuir os entorpecentes.

A fazenda em questão pertencia aos seus pais, João e Regina, que já estavam com mais de 80 anos de idade e enfrentavam sérios problemas de saúde, o que os levou a se afastar completamente da administração do local. A propriedade, há décadas, era utilizada para atividades de pecuária leiteira e, com o avanço da idade dos proprietários, passou a ser cuidada por Antônio.

Além disso, metade da fazenda pertencia legalmente à ex-esposa de Antônio, Juliana, como parte da meação após o divórcio. Juliana, por sua vez, nunca teve qualquer envolvimento com as atividades ilegais do ex-marido, nem sequer residia mais na propriedade.

Com a condenação de Antônio por tráfico, o Ministério Público pediu o perdimento integral da fazenda, alegando que o imóvel havia sido utilizado como instrumento da prática criminosa.

O juiz acolheu o pedido e determinou a expropriação total da propriedade em favor da União, com base nos arts. 60 e 63 da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006).

Os pais de Antônio e sua ex-esposa opuseram embargos de terceiros, alegando que não tinham conhecimento das atividades ilícitas e que não poderiam ser punidos por um ato que não cometeram, especialmente considerando sua idade avançada, saúde fragilizada e o fato de que a fazenda ainda era produtiva.

 

O STJ concordou com os argumentos dos embargantes?

SIM.

 

O fundamento constitucional da expropriação

O art. 243 da CF/88 prevê o seguinte:

Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.

Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.

 

Parte da doutrina denomina este art. 243 de "desapropriação confiscatória" em virtude de não conferir ao proprietário direito à indenização, como ocorre com as demais espécies de desapropriação (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2016, p. 1044).

Outros autores preferem falar em "confisco" (MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 2135).

O STF também reafirmou que se trata de confisco. Veja o que disse o Ministro Gilmar Mendes:

"O instituto previsto no art. 243 da CF não é verdadeira espécie de desapropriação, mas uma penalidade imposta ao proprietário que praticou a atividade ilícita de cultivar plantas psicotrópicas, sem autorização prévia do órgão sanitário do Ministério da Saúde. Portanto, a expropriação é espécie de confisco constitucional e tem caráter sancionatório."

 

Existem dois motivos que geram esse confisco:

a) o fato de no imóvel estarem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas; ou

b) o fato de no imóvel haver exploração de trabalho escravo.

 

Extensão da expropriação

A expropriação irá recair sobre a totalidade do imóvel, ainda que o cultivo ilegal ou a utilização de trabalho escravo tenham ocorrido em apenas parte dele. Nesse sentido: STF. Plenário. RE 543974, Rel. Min. Eros Grau, julgado em 26/03/2009.

 

O problema da aplicação automática aos casos de terceiros

No caso concreto, não há dúvidas de que o sítio foi realmente usado para o tráfico de drogas. A questão central é se a perda pode atingir toda a propriedade rural quando ela pertence a terceiros que não participaram do crime e quando não ficou comprovado que o imóvel era usado exclusivamente para atividades ilícitas.

O Ministério Público sustentou a aplicação do Tema 399 do STF, que presume culpa dos coproprietários (culpa in eligendo ou in vigilando), cabendo a eles provar que não sabiam ou não tinham como saber do uso criminoso da propriedade:

A expropriação prevista no art. 243 da Constituição Federal pode ser afastada, desde que o proprietário comprove que não incorreu em culpa, ainda que in vigilando ou in eligendo.

STF. Plenário. RE 635336/PE, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 14/12/2016 (Repercussão Geral - Tema 399) (Info 851).

 

O STJ, contudo, entendeu que não é possível essa aplicação automática do Tema 399, argumentando que aquele precedente foi criado para situações de terras utilizadas para plantio de drogas, onde há evidente desvirtuamento da função social da propriedade. No caso concreto, porém, a terra mantinha sua função social (exploração de pecuária leiteira) e também era utilizada para fins ilícitos. Trata-se de situações não análogas, que não permitem a simples transposição do entendimento sem reflexões mais profundas sobre as especificidades do caso.

Embora o combate ao narcotráfico seja extremamente relevante e tenha até mandado constitucional de criminalização, isso não pode se sobrepor às garantias fundamentais de terceiros que não estão envolvidos com a prática criminosa. A perda da propriedade é uma das sanções civis mais severas que existe, razão pela qual as normas que a determinam devem ser interpretadas com cautela, sempre considerando sua conexão com o direito à moradia e com a dignidade da pessoa humana.

Não se pode falar em expropriação baseada em presunção de culpa de terceiro na hipótese do art. 243, parágrafo único, da Constituição Federal. Isso porque o objetivo da norma constitucional é punir o criminoso, e não o terceiro de boa-fé. Permitir a expropriação automática de bens de pessoas não envolvidas no crime violaria esse propósito fundamental.

 

Princípio da proporcionalidade

Mesmo que se admitisse a aplicação do Tema 399 ao caso, o STJ argumentou que isso deveria ser feito em consonância com outros princípios constitucionais, especialmente o da proporcionalidade.

 

Princípio da personalidade da pena

Além disso, conforme o princípio constitucional da personalidade da pena e da razoabilidade, ninguém pode ser responsabilizado por ato cometido por outra pessoa sem dolo ou culpa próprios. Portanto, a expropriação não pode recair sobre herdeiros inocentes que não cultivaram substâncias entorpecentes nem contribuíram para a plantação de drogas.

 

Limites do dever de vigilância do proprietário

A função social da propriedade aponta para um dever do proprietário de zelar pelo uso lícito de seu terreno, mesmo que não esteja na posse direta. Porém, esse dever não é ilimitado.

Só se pode exigir do proprietário que evite o ilícito quando isso estava razoavelmente ao seu alcance. Não é um dever absoluto e irrestrito, mas um dever proporcional às possibilidades concretas de cada pessoa.

 

Circunstâncias concretas dos proprietários

No caso concreto, as circunstâncias fáticas demonstraram a ausência de culpa dos terceiros. A propriedade pertencia aos pais do réu condenado, que exploravam pecuária leiteira há mais de 50 anos. Com a velhice e doenças, precisaram se afastar do trabalho e da supervisão da terra, que passou a ser administrada pelos filhos. Na época dos embargos de terceiro, a mãe já havia falecido e o pai tinha 81 anos. Esse contexto revela manifesta impossibilidade de supervisão pelos pais idosos e ausência de qualquer indicativo de que deveriam se preocupar com o uso da terra pelos filhos, pois até então as atividades eram lícitas.

Dessa forma, a interpretação abrangente dada aos arts. 60, caput, e 63, I, da Lei nº 11.343/2006, não pode prevalecer, devendo a aplicação das perdas patrimoniais se harmonizar com os pilares do regime democrático de direito e com compreensões mais adequadas ao direito penal moderno.

 

Em suma:


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