segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Requisitos estipulados pelo STF para a validade da decretação da prisão temporária

 

Prisão temporária

A prisão temporária é...

- uma espécie de prisão cautelar (prisão antes da sentença condenatória definitiva)

- prevista não no CPP, mas sim na Lei nº 7.960/89

- decretada durante a fase de investigação criminal (antes da ação penal)

- somente cabível em casos envolvendo determinados crimes mais graves previstos na Lei.

A prisão temporária, ao lado da prisão em flagrante e da prisão preventiva, configura uma das modalidades de prisão cautelar. Ela ostenta natureza pré-processual e tem a finalidade de assegurar o resultado útil da investigação criminal.

 

Hipóteses

O art. 1º da Lei nº 7.960/89 prevê as hipóteses de cabimento da prisão temporária:

Art. 1º Caberá prisão temporária:

I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;

II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;

III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes:

a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2°);

b) sequestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ 1° e 2°);

c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°);

d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1° e 2°);

e) extorsão mediante sequestro (art. 159, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°);

f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);

g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);

h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único);

i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1°);

j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285);

l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal;

m) genocídio (arts. 1°, 2° e 3° da Lei n° 2.889, de 1° de outubro de 1956), em qualquer de sua formas típicas;

n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976);

o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986).

p) crimes previstos na Lei de Terrorismo.

 

ADI

Foram ajuizadas duas ações diretas de inconstitucionalidade contra essa previsão.

A ADI 4109/DF foi proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PDT) e a ADI 3360/DF ajuizada pelo Partido Social Liberal (PSL).

Na ADI 3360, o autor alegou que o art. 1º da Lei nº 7.960/89 contrariaria direitos fundamentais constitucionalmente assegurados e que a decretação da prisão temporária somente seria possível se os requisitos previstos nos incisos do dispositivo questionado estivessem presentes de forma conjunta, sob pena de descumprir o devido processo legal material.

Sustentou, em síntese, que a redação imprecisa dos art. 1º, incisos I, II e III, da Lei nº 7.960/89 provoca controvérsias interpretativas na comunidade jurídica, com soluções desarrazoadas, em ofensa à cláusula do devido processo legal material.

Argumentou a inconstitucionalidade da lei diante do direito à liberdade provisória e da presunção de inocência, por ser uma modalidade de prisão com menos requisitos que a prisão preventiva e, portanto, inconstitucional.

 

O que o STF decidiu?

O STF, julgando conjuntamente as duas ações, julgou parcialmente procedentes os pedidos para dar interpretação conforme a Constituição Federal ao art. 1º da Lei 7.960/89.

Em outras palavras, o STF afirmou que a prisão temporária é constitucional, mas desde que siga os critérios de interpretação fixados pela Corte.

Vamos entender um pouco mais abaixo.

 

Inciso I. Pela análise do inciso I do art. 1º, percebe-se que a prisão temporária é uma prisão criada para servir aos interesses da investigação criminal. O objetivo dessa prisão é facilitar a investigação criminal. Diante disso, indaga-se: esse inciso I é constitucional? É possível uma espécie de prisão criada com esse objetivo?

SIM.

A prisão temporária, como vimos acima, é uma espécie de prisão de natureza cautelar.

A CF/88 autoriza a imposição de prisões cautelares no inciso LXI do art. 5º:

Art. 5º (...)

LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

 

No entanto, como a Constituição consagra o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII), toda prisão cautelar (inclusive a prisão temporária) deve ser considerada como medida excepcionalíssima e somente se mostra cabível quando preenchidos os estritos requisitos legais e de forma devidamente fundamentada pela autoridade judicial competente.

Assim, desde que respeitado o princípio da não culpabilidade (que veda a execução antecipada da pena), nada impede que o legislador ordinário estabeleça uma modalidade de prisão cautelar voltada a assegurar o resultado útil da investigação criminal ou do processo penal.

Vale ressaltar que, além da Constituição Federal, a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos também não impedem ou proíbem a criação de prisões cautelares pelos Estados-partes.

Importante esclarecer, contudo, que a prisão temporária não pode servir como uma prisão para averiguação.

Leonardo Barreto Moreira Alves nos explica o que é uma prisão para averiguação, sendo ela inconstitucional:

“Antes da Constituição Federal de 1988, havia no país a denominada prisão para averiguações, que era uma prisão realizada pela polícia, sem ordem judicial, para auxiliar as suas atividades rotineiras e cotidianas de investigação, ou seja, no intuito de verificar se a pessoa presa possuía qualquer vínculo com alguma infração penal ou mesmo para apurar a sua vida pregressa, consultando, por exemplo, se havia contra ela algum mandado de prisão em aberto ou se estava foragida.

Com o advento da Carta Magna de 1988, passou-se a exigir, como regra, ordem judicial para a efetivação das prisões (cláusula de reserva de jurisdição), salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar e na prisão em flagrante. Em razão disso, a polícia não mais pôde proceder à prisão para fins de averiguações por conta própria, necessitando, para tanto, da autorização do juízo competente. Esclareça-se, contudo, que a exigência de ordem judicial para a prisão não impede seja feita abordagem policial, se preciso, solicitando identificação de indivíduos ou realizando busca pessoal deles: impede-se apenas a prisão sem autorização judicial para esse fim. No mais, atualmente, a simples prisão para averiguações (sem ordem judicial) é ilegal, configurando a prática de crime de abuso de autoridade (art. 9º, caput, da Lei nº 13.869/19).” (Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1097).

 

Conforme vimos acima, a prisão para averiguação não é compatível com a Constituição Federal de 1988.

Desse modo, não se pode admitir qualquer interpretação que transforme a prisão temporária em um meio de prisão para averiguação.

De igual forma, a prisão temporária não pode violar o direito à não autoincriminação.

A pessoa, ainda que suspeita de um crime, tem o direito de não se autoincriminar. Isso inclui o direito de não ser obrigada a ser interrogada.

Logo, a prisão temporária não pode servir como um instrumento para se impor, por vias transversas, que a pessoa preste depoimento na fase inquisitorial.

 

Inciso II. Não se trata de requisito necessário para a decretação da prisão temporária nem pode ser utilizado isoladamente para se decretar a custódia de ninguém

O inciso II do art. 1º da Lei nº 7.960/89 afirma que:

Art. 1º Caberá prisão temporária:

(...)

II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;

 

O STF explicou que esse inciso II do art. 1º da Lei nº 7.960/89, mostra-se dispensável ou, quando interpretado isoladamente, é inconstitucional.

Isso porque ou a circunstância de o representado não possuir residência física evidencia de modo concreto que a prisão temporária é imprescindível para as investigações (inciso I) ou não se pode decretar a prisão pelo simples fato de que alguém não possui endereço fixo.

Nesse sentido, não é constitucional a decretação da prisão temporária quando se verificar, por exemplo, apenas uma situação de vulnerabilidade econômico-social – pessoas em situação de rua, desabrigados – por violação ao princípio constitucional da igualdade em sua dimensão material.

 

Inciso III. O rol ali previsto é taxativo

O STF também decidiu que o rol do inciso III do art. 1º da Lei nº 7.960/89 é taxativo.

Trata-se de uma opção feita pelo Poder Legislativo, que, dentro de sua competência constitucional, entendeu que deveria dar especial atenção a determinados crimes. Essa escolha é perfeitamente compatível com a Constituição Federal.

Esse rol não admite analogia ou interpretação extensiva. Isso porque quando se está em jogo a imposição de medidas cautelares penais restritivas da liberdade individual, vigora o princípio da legalidade estrita.

O processo penal não é apenas forma, mas também garantia limitadora do direito de punir estatal, o qual deverá ocorrer sem arbítrios, estritamente com base na lei e, sobretudo, na Constituição Federal.

Dessa maneira, para que a intervenção estatal opere nas liberdades individuais com legitimidade, é necessário o respeito à estrita legalidade e às garantias fundamentais.

 

Novo requisito instituído pelo STF e não previsto na Lei nº 7.960/89: existência de fatos novos e contemporâneos (aplicação do § 2º do art. 312 do CPP à prisão temporária)

O art. 312, § 2º do CPP prevê o seguinte:

Art. 312 (...)

§ 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.

 

A doutrina denomina isso de princípio da atualidade ou contemporaneidade, segundo o qual a urgência no decreto de uma medida cautelar deve ser contemporânea à ocorrência do fato que gera os riscos que tal medida pretende evitar.

“A contemporaneidade diz respeito aos fatos que autorizam a medida cautelar e os riscos que ela pretende evitar, sendo irrelevante, portanto, se a prática do delito é atual ou não.

(...)

Por exemplo, se um crime é cometido em 2018 e o réu ameaça seriamente de morte testemunha-chave da acusação em 2021, é possível o decreto da prisão preventiva por conveniência da instrução criminal nesse mesmo ano; todavia, se a ameaça às testemunhas se deu em 2018, não se verifica a contemporaneidade do decreto da preventiva proferido em 2021.

(...)

Ademais, a contemporaneidade não está diretamente vinculada ao início ou ao fim de uma investigação criminal, tampouco à data da prática do fato delitivo, e sim à necessidade da medida cautelar, o que pode se revelar a qualquer tempo. É possível que uma investigação dure anos e, mesmo assim, ser constatada a necessidade de uma prisão preventiva, o que se dá principalmente em crimes de grande complexidade.” ((Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 984-985).

 

Desse modo, a motivação da prisão preventiva deve estar baseada em fatos novos ou contemporâneos. Não se pode decretar a prisão com base em fatos antigos.

Ainda que esse dispositivo tenha sido pensado para a prisão preventiva, o STF afirmou que ele deve ser obrigatoriamente aplicado também para a prisão temporária.

Trata-se não apenas de uma decorrência lógica da própria cautelaridade das prisões provisórias, como também consequência do princípio constitucional da não culpabilidade.

Vale ressaltar, mais uma vez, que esse dispositivo não impede que a prisão temporária seja decretada por crimes antigos. O que se proíbe apenas é a imposição de prisão caso não haja fato contemporâneo ao decreto que justifique, de maneira objetiva, o periculum libertatis.

 

Novo requisito instituído pelo STF e não previsto na Lei nº 7.960/89: aplicação do art. 282, II, do CPC à prisão temporária

A prisão temporária deve, ainda, ser adequada à gravidade concreta do crime, às circunstâncias do fato e às condições pessoais do indiciado, nos termos do art.  282, inciso II, CPP:

Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:          

(...)

II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.

 

Ainda que a prisão temporária esteja prevista em lei extravagante (Lei nº 7.960/89), o art. 282, II, do CPP traz uma regra geral de aplicação a incidir sobre todas as modalidades de medida cautelar – seja de prisão ou não –, as quais, em atenção ao princípio da proporcionalidade, devem observar a necessidade e a adequação em vista da gravidade do crime, das circunstâncias do fato e das condições pessoais do representado.

 

STF afirmou que não se deve aplicar o art. 313 do CPP à prisão temporária

O art. 313 do CPP prevê o seguinte:

Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:

I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;

II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal;

III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;

 

Havia uma posição que defendia que esse art. 313 também fosse aplicado para a prisão temporária. O STF não acolheu esse entendimento.

Não se pode adotar interpretação que exija, para a prisão temporária, a observância do art. 313 do CPP.

Isso porque se trata de dispositivo específico para a prisão preventiva, uma vez que, no caso da prisão temporária, o legislador ordinário, no seu legítimo campo de conformação, já escolheu os delitos que julgou de maior gravidade para sua imposição (inciso III do art. 1º da Lei nº 7.960/89).

Entender de modo diverso implicaria confusão entre os pressupostos de decretação das prisões preventiva e temporária, bem como violação aos princípios da legalidade e da separação entre os poderes

 

STF não declarou a inconstitucionalidade da expressão “será” prevista no caput art. 2º da Lei nº 7.960/89

O caput do art. 2º da Lei nº 7.960/89 prevê o seguinte:

Art. 2º A prisão temporária será decretada pelo Juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, e terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.

 

Argumentava-se que esse verbo “será” deveria ser declarado inconstitucional porque imporia uma obrigação de o juiz sempre decretar a prisão temporária.

O STF não concordou com essa linha de raciocínio.

Apesar de o dispositivo utilizar a expressão “será”, isso não significa que o magistrado seja sempre obrigado a decretar a prisão. A decretação da prisão terá que ser obrigatoriamente fundamentada levando-se em consideração os aspectos acima mencionados.

Logo, o STF decidiu que não é incompatível com o texto constitucional a expressão “será” prevista no art. 2º, caput, da Lei nº 7.960/89 já que a decretação da prisão temporária não se revela como medida compulsória, devendo ser obrigatoriamente fundamentada (§ 2º do art. 2º da Lei nº 7.960/89 e art. 93, IX, da CF/88).

 

STF não declarou a inconstitucionalidade do prazo de 24h previsto no § 2º do art. 2º da Lei nº 7.960/89

O § 2º do art. 2º da Lei nº 7.960/89 prevê o seguinte:

Art. 2º (...)

§ 2º O despacho que decretar a prisão temporária deverá ser fundamentado e prolatado dentro do prazo de 24 (vinte e quatro) horas, contadas a partir do recebimento da representação ou do requerimento.

 

Havia pedido para que esse prazo fosse declarado inconstitucional. O STF não concordou com isso.

O prazo de 24 horas previsto no art. 2º, § 2º, da Lei nº 7.960/89 não possui qualquer vício de inconstitucionalidade considerando que:

• trata-se de prazo impróprio (que não produz consequências processuais caso seja descumprido); e

• que se justifica pela urgência na análise do pedido pelo magistrado visando à eficiência das investigações.

 

Resumindo o que o STF decidiu:

A decretação de prisão temporária somente é cabível quando

(i) for imprescindível para as investigações do inquérito policial;

(ii) houver fundadas razões de autoria ou participação do indiciado;

(iii) for justificada em fatos novos ou contemporâneos;

(iv) for adequada à gravidade concreta do crime, às circunstâncias do fato e às condições pessoais do indiciado; e

(v) não for suficiente a imposição de medidas cautelares diversas.

STF. Plenário. ADI 4109/DF e ADI 3360/DF, Rel. Min. Carmen Lúcia, redator para o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 11/2/2022 (Info 1043).



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